terça-feira, outubro 23, 2007

Os destroços das anémonas mortas


para o Hugo Cavaco


Sei hoje, Thereza, quão pouco e precário é o poder de quem governa os impérios e os reinos ou os lugares da terra. Sei hoje que só ilusoriamente nos pertencem as mercês que não vêm do povo a que pertencermos. Sei hoje que o nosso pecado maior, e o nosso erro maior, é procurarmos em Deus a pequena parte de Deus que nos serve para justificar o exercício do domínio e do arbítrio.

Deixa-me ficar contigo mais uma noite, Thereza. Deixa-me tocar de novo os teus ombros nus, os teus joelhos breves, as tuas mãos trémulas, o teu corpo igual a esta noite de Junho quando a manhã começa a anunciar-se em terras de Castela e depois avança, vagarosamente, erguendo-se na linha do horizonte numa luz tão leve que fica sobre as águas da baía dos mares de Monte Gordo como se o mundo só então estivesse a nascer e só então as coisas começassem a ter um nome.

Eu conheci a glória, Thereza. Fui capitão de Alcácer Seguer e Sainal, de Azamor e Mazagão. Mas conheci também a cicatriz da conquista, as lágrimas e o ultraje, o logro de submeter pela espada, o sonho e o seu reverso nos campos de batalha em que ninguém venceu, em que ninguém poderia ter vencido. Nós avançávamos protegidos pela bandeira de um Deus que julgávamos ser nosso dever impor aos infiéis. Era essa a ilusão dos que, como eu, estiveram nas margens do Umme Arrebia ou na foz do rio Sebou, ou que, muitos anos antes, acompanharam D. Afonso em Alcácer Seguer com as mãos manchadas de sangue e se dirigiram assim à mesquita convertida de súbito em igreja cristã sob a invocação de Santa Maria da Misericórdia.

Deixa-me ficar contigo para sempre, Thereza. Deixa-me ficar a ver-te adormecer nestas noites em que apenas as estrelas desenham o mundo, em que o mar parece de súbito apaziguado pela nossa presença e da memória do levante ficam apenas os destroços das anémonas mortas no areal. Deixa-me ver-te respirar enquanto dormes, enquanto o quarto crescente começa a iluminar os medos de areia que vão de Cacela a Santo António de Arenilha. Deixa-me ficar contigo, aqui, em Monte Gordo. Deixa-me ficar contigo e com a tua gente rude que desespera o poder instituído, neste lugar de gente livre cuja honra foi transformada em insídia pelas posturas da lei.

Em Mamora, em nome de Deus, perdemos cem navios num único dia. Muitas vezes penso como terá reagido D. Manuel ao saber que quatro mil dos seus homens haviam sucumbido na foz do rio Sebou. Que Deus era este que levávamos desenhado nos estandartes, que desígnio era este de nos expandirmos em nome da fé? Terá a indecisão, a dúvida, a descrença, tocado por um instante o coração magnânimo de sua majestade? Do outro lado, do outro lado de Deus, outros homens lutavam em nome de Deus. Davam-lhe um nome diferente, claro, e lutavam em seu nome. A verdade é que os sonhos de conquista de D. Manuel iam provocando nos mouros uma reacção violenta que passou a ancorar-se mais num crescente fundamentalismo religioso, numa guerra santa, do que na simples necessidade de defesa dos territórios. De que lado estava a intolerância? Não sei. Sei que regressei ao reino, investido como senhor de Santo António de Arenilha por mercê de D. João III, e que só agora compreendo, junto do meu povo, quão pouco e precário é o poder de quem governa os impérios e os reinos ou os lugares da terra se as mercês não vêm desse mesmo povo a que pertencemos.

Aqui, em Monte Gordo, sinto-me finalmente livre. Aqui, Thereza, sinto-me livre pela primeira vez. Entre gente rude, é certo. Gente de faca e sovelão, de estoque e adaga, de alevantamentos e distúrbios. Gente que desrespeita os decretos e as normas do reino. Gente que procura apenas o seu próprio destino num mundo em que Deus e as leis não deveriam ter uma única face.

Também por isso abdico da glória e das mercês. Também por isso quero apenas ficar aqui contigo, Thereza, nos areais e nas cabanas precárias dos areais de Monte Gordo. Fora do mundo. Olhando assim a noite, como hoje, como nesta noite em que só as estrelas desenham o universo e as águas do mar parecem ter ficado paradas para que o silêncio seja a única testemunha do preciso momento em que toco as tuas mãos, os teus ombros nus, o teu corpo adormecido no meu corpo.



in Jornal do Baixo Guadiana, Outubro de 2007