olhar as pedras disparadas a capear a água das represas
e reflectir sobre o peso insustentável das coisas
a ausência a fazer sombra nas varandas dos inúmeros meses de novembro
a distância a esticar os arames das vinhas até à vibração interior
as despedidas a trazerem a humidade às fotografias guardadas nas gavetas das cómodas
o rosto a que nos encostávamos em agosto para não morrermos de frio
as colinas e os rios dos romances
os mapas das cidades que rasurávamos para nos podermos afastar das ruas conhecidas
um dia compreendemos que não temos mais nada senão o que perdemos
senão o que nem chegámos a ter
e procuramos de novo
o rosto dos primeiros versos
os cadernos de caligrafia
os trabalhos domésticos
uma criança a correr e a ideia de um sistema de justiça como um espelho que devolvesse as imagens puras
uma criança a olhar o azul dos montes e a ideia de um país que privilegiasse o mérito
e procuramos de novo um pouco da luz que julgávamos ter chegado a pertencer-nos
por uma espécie de direito consuetudinário
em que a hipocrisia dos poderes
apenas tinha a lenha abundante
onde havia de queimar-se