juro que não vou morrer de um ataque de coração
pode trair-me o fígado
podem os rins deixar de funcionar
pode um micróbio atacar-me o cérebro indefeso
porque de resto marco no chão a raia do distanciamento
olho a luz do fim da manhã poisada nos muros do cadastro
olho a sombra invertida dos planos de água inscrevendo nas paredes uma cronologia imune à fita regular da passagem do tempo
amanhece
anoitece
e tudo isso é superior a tudo
aos discursos dos assessores que medem a eficácia das palavras em folhas de cálculo
às manchetes do expresso e do correio da manhã
tão idênticas a procurarem diferenças onde há mais a unir do que a separar
deixo passar os automóveis nas avenidas largas
deixo passar o ruído dos comícios e as frases dos comentadores a abrir os noticiários
afasto-me de quem regressa à política para defender a legitimidade de se comprar um zeppellin de acrobacias
afasto-me da oposição que se opõe a tudo quanto se opuser à narrativa
afasto-me dos poderes que enchem balões com hélio comprado a prestações nas feiras de salvados
afasto-me de tudo
deixo que as cortinas dos bordados antigos separem o deve e o haver
corro as gelosias
procuro no telheiro a lenha do inverno
o pão e o vinho
não espero os pareceres do tribunal constitucional
não me interessam as previsões do governo para o comportamento da economia no próximo semestre
limito-me a fechar a porta
a afastar-me do barulho
a afastar-me de tudo
a adormecer
a deixar que apenas o vento ou a chuva me sobressaltem ao ponto de me levantar do escano
a confirmar que o portão do pátio não ficou aberto
a rodar nos gonzos
durante a noite