terça-feira, janeiro 27, 2009

9.

A estranheza não vinha tanto de tudo parecer novo. Diferente. Mas de tudo parecer contrário à realidade. Como se João tivesse entrado num universo com leis imponderáveis. Como se a ordem do mundo tivesse sucumbido ao odor das alfarrobeiras a ser varejadas, ao vento do levante e ao seu rumor, à salsugem misturada à resina dos pinheiros bravos litorais, ao labirinto de ruas que começava e acabava num mesmo pátio comum. O restaurante do Castro ficava onde antigamente deveria ser a duna. Onde o mar e o vento acumularam areias ao longo dos anos, erguendo barreiras com inclinação diversa, com pendentes suaves ou rampas declivosas, com recuos por erosão, com avanços pela reposição sazonal dos sedimentos. Até à terraplenagem por usos contínuos da cumeada e do flanco da duna. Porque o restaurante parecia enterrado na praia. Com o areal a subir em redor e os grãos persistentes a ser varridos do chão de blocos da esplanada e das passadeiras contíguas de cimento. E tudo parecia irreal: as cervejas poisadas na mesa de resina, os jarros de vinho da serra, a panela com esse molho ligeiramente espesso e o odor a alho e coentros, as vozes misturadas a falar de tempestades e tumultos, do silêncio subterrâneo de noites sem uma aragem nem outra luz que a da lua poisando nas águas, de ventos que enlouquecem ou fazem perder a memória de tudo o que não ficou inscrito na infância do lado de dentro da pele. A tarde a vir do mar e a perder-se no mar. O crepúsculo a descer na linha do horizonte, e depois a noite, Tatiana e uma saia muito curta, a música num outro bar onde a cerveja continuava a suceder-se sobre as mesas. Paola. Uma dedicatória. Três versos. Os ombros nus de Tatiana, concretos, a iluminar o espaço minúsculo do quarto. A iluminar o mundo entre realidade e ficção.