segunda-feira, janeiro 05, 2009

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Capítulo I
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(Onde se apresenta Aline, se reflecte sobre o prazer e o tédio e se fala de uma casa afastada do mundo)
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Interrogamo-nos sobre o que é o prazer e descobrimos com surpresa que não há uma definição possível. A ideia de prazer depende de variáveis inúmeras: geográficas, temporais, sociais, culturais. Depende de quase tudo. Numa aldeia do interior, na montanha, nos anos sessenta do século vinte, o prazer poderia decorrer da possibilidade de se ficar à noite junto ao fogo da lareira com uma caneca de vinho e um caldo do pote. Hoje, mesmo entre pequenos burgueses, confunde-se facilmente com o hedonismo. Uma finíssima membrana separa o prazer e os seus perigos. A sensação de bem-estar tende para a preguiça, o prazer da comida tende para a gula e o prazer sexual tende para a anulação do desejo. A temperança é uma exigência do prazer e simultaneamente a sua bomba-relógio.
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As ruínas da casa e dos seus anexos são hoje disputadas a preços imoderados. Os promitentes compradores antecipam o prazer de ficar à sombra dos carvalhos centenários numa tarde de Verão, de ver as crianças a jogar à bola na parte de cima do lameiro das águas sesserigas, de subir a escaleira de pedra, de acordar com o silêncio apenas cortado pelo rumor do vento nos ramos das tílias ou da água dos gralheiros do rio. A ironia é imensa: Aline nasceu nesta casa e esta casa e os seus anexos caracterizaram sempre a impossibilidade do prazer. Aline recorda o desconforto, a solidão, a tempestade, o afastamento do mundo. O que faz o tempo: os promitentes compradores privilegiam hoje a ausência de infra-estruturas, o carácter periférico, o isolamento, a distância. Uns antevêem a ideia de prazer exactamente no mesmo objecto que significou para outros o seu reverso.
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A descoberta da sexualidade é mais precoce no mundo rural porque no mundo rural a sexualidade é mais reprimida. É tão reprimida que está sempre presente. A igreja ajudou ao decidir esconder a sexualidade com uma rede de fios de néon. A ilegitimidade do prazer físico colocou sobre o corpo um lençol opaco que deixou quase tudo à mostra no muito que procurou ocultar. O tema da sexualidade é recorrente no mundo rural e joga-se em permanência num universo de metáforas e alusões em que é inevitável falar do que não se pode dizer. Foder ou matar a fome não andavam longe nos seus pressupostos: libertar o corpo dos seus excessos ou da sua voracidade insustentável. Só muito mais tarde, só muitos anos depois, Aline compreendeu a diferença entre o prazer e o sexo, a pele e o corpo.
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Aline também descobriu muito tarde (quase não acreditava) que havia pessoas a sonhar com a neve e que a neve era "um destino turístico". É verdade que às vezes se desejava a chegada da neve: quando o sincelo persistia dias a fio e o frio ficava entranhado nos ossos e congelava a água dos tanques e dos remansos. Mas a neve, na infância, erguia-se nos caminhos de terra e nas calçadas e misturava-se rapidamente na lama. É verdade que às vezes se desejava a chegada da neve para que a temperatura deixasse de ser insuportável quando as geadas sucessivas espetavam as suas facas de vidro nos largos e nos pátios: mas a neve atravessava o forro dos quartos soprada pelo vento. Ao descobrir que havia pessoas que sonhavam com a neve, Aline esforçou-se por imaginar o prazer de acordar e correr à janela a ver as encostas pintadas de branco. Fechou os olhos por instantes: mas só sentia o desconforto do Inverno e não via mais que a neve muito escura misturada na lama das ruas.
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Aline tem nas mãos uma fotografia antiga da casa. Aline viveu dezasseis anos nesta casa afastada do mundo, longe do asfalto, erguida entre a linha de festo e um ligeiro talvegue. A casa é hoje uma ruína. Aline não assistiu ao modo como o telhado foi ganhando um ondulado insólito até o espigão da cumeeira ceder ao Inverno, como a hera e a vinha-virgem treparam as paredes até ocupar as juntas do perpianho e desalinhar as pedras arrumadas, como as portas e as janelas deixaram apenas o vazado dos vãos, como as grades das varandas se inclinaram e desmoronaram no pátio num amontoado de escombros. Aline, muito tempo depois, tem nas mãos uma fotografia da casa a que nunca mais regressou. Olha a fotografia. E descobre, num súbito sobressalto, que a imagem da casa e a memória que tinha da casa são completamente diferentes. Aline olha a fotografia com a estranha sensação de que nunca viveu neste lugar. Como se o tempo tivesse apagado os anos da infância e da adolescência ou como se a infância e a adolescência não tivessem feito parte da sua vida.
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O tédio é o contrário do sobressalto. O tédio é uma aranha de silêncio a tecer as suas teias recônditas: a urdidura e a trama. Não é possível definir o momento preciso em que esse delicado tecido, depois de cruzados todos os fios da lançadeira, se mistura na pele e a vai atravessando por osmose: até à indiferença. Aline olha a fotografia da casa e enreda-se na contradição de supor que não viveu uma parte da sua vida e de simultaneamente saber que não poderia deixar de a ter vivido. Aline recorda o desconforto, a solidão, a tempestade, o afastamento do mundo. Imagens vagas: a neve a misturar-se na lama dos caminhos, a água da chuva, muros de pedra, caminhos de terra, as árvores e os bosques. E no entanto uma funda inquietação a percorre e Aline esforça-se por trazer de longe uma imagem nítida, límpida, uma âncora, um momento em que a vida e a sensação de estar viva possam coincidir e fazer sentido: uma imagem nítida, límpida, em vez da sombra e da urdidura do tédio. E só então compreende que é possível ainda o sobressalto e que é preciso começar tudo de novo.
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O Poeta, um dos poucos namorados de Aline nos últimos anos (Manuela não conta), diria agora, chamado a terreiro: «o tédio, Aline, é inversamente proporcional ao desassossego de estar vivo; o tédio, Aline, é a demonstração de que a labareda do prazer se alimenta do seu próprio combustível; há quanto tempo, Aline, uma nuvem não é para ti senão uma nuvem, há quanto tempo não te percorre verdadeiramente a inquietação de um corpo que se deseja, há quanto tempo não choras a olhar a chuva a bater nos vidros das janelas num fim de tarde de Novembro, há quanto tempo não agitas as mãos na água de um tanque a ver a leve ondulação da corrente, há quanto tempo não adormeces com o desassossego de saber que o mundo permanece vivo por dentro dos sonhos?» Isso diria o Poeta, chamado a terreiro, caso o seu depoimento fosse relevante depois da condenação por associação criminosa num processo de roubo de automóveis de luxo. O certo é que Aline encontrou na cidade as suas defesas. Sente-se protegida pelo ruído, pelo anonimato, pelo movimento das ruas. Da varanda do apartamento vê o rio, os barcos e o rasto de prata que deixam nas águas, a outra margem, os telhados dos antigos armazéns, uma alameda com lódãos, uma estrada com automóveis correndo incessantemente a caminho de um lugar de onde um número igual de automóveis parte em sentido contrário. Mas Aline olha a fotografia da casa antiga e sente um súbito sobressalto; uma cicatriz no quotidiano; uma incursão inaceitável nas suas defesas. E parece evidente que o tédio há muito enrolou nos seus pulsos os fios da trama. E parece evidente que há muito, na sua vida, o prazer deixou de ser alvoroço e exaltação.
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Aline compreende que o tédio há muito enrolou nos seus pulsos os fios da trama. Aline compreende que há muito, na sua vida, o prazer deixou de ser alvoroço e exaltação. Mas Aline sabe (julga saber) que a vida não é possível sem a aceitação desses fios invisíveis que o destino vai tecendo à passagem das horas: entre a alba e a penumbra dos fins de tarde; entre a noite e o seu reverso imperscrutável; entre a aparição e o distanciado sépia dos retratos antigos. Talvez a procura da felicidade implique o prévio reconhecimento da inevitabilidade da tristeza e da incompletude. Talvez o prazer não seja mais que uma fogueira acesa no Inverno; uma lâmpada a iluminar por instantes breves as encostas da umbria; a pedra disparada; o comprimento entre duas ondas sucessivas. E Aline sente-se tentada a pensar que o tédio, provavelmente, delimita um território onde se erguem defesas contra a precariedade do prazer e as incertezas do mundo.
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Aline nasceu em mil novecentos e sessenta e oito numa casa afastada do mundo a cinco quilómetros duma aldeia (de cujo nome não quer recordar-se) afastada do mundo. Pela primeira vez desde o dia distante em que saiu para não mais voltar, espalhadas numa mesa com tampo de vidro, Aline tem diante de si fotografias da casa. Numa delas, a mais antiga, poderia ser o seu rosto o que se desenha, difuso, por detrás dos vidros da janela da cozinha. Mas é como se as fotografias e a sua vida contassem histórias diferentes. Aline olha o rosto que se esconde por detrás dos vidros da janela da cozinha mas o rosto que se esconde por detrás dos vidros não poderá ser o seu rosto. As fotografias mais recentes, curiosamente, parecem-lhe mais próximas do tempo antigo da infância. São retratos do abandono, da ruína, de escombros. O abandono (o tempo) investiu contra os telhados e as paredes, a varanda e o pátio, o terraço e a escaleira de pedra, o muro de xisto e as árvores do terreiro. E é nesse retrato de escombros que mais se revê. Como se não fosse já possível regressar senão à ruína e ao abandono. Ao que não existe. Como se a ruína e o abandono, sobre todas as coisas (o prazer, o tédio, o desejo, o sobressalto), fizessem parte da sua vida.
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Capítulo II
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(Onde o dr. João Marcos fala do pai de Aline e de um amor tocado pela tragédia)
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Claro (conta o dr. João Marcos) que o conheci. Vivemos em casas contíguas. (Não, ele não morava com os pais. Peço desculpa, mas isso é outra história; e não vem ao caso.) Se éramos amigos? Sim. Quer dizer. A amizade é hoje um conceito volúvel; a frivolidade uma das principais características deste tempo que me foi dado ainda viver. A amizade, então, era um objecto raro. Não sei se deva dizer que a amizade nos tocava um ao outro. Conhecemo-nos, partilhámos uma infância que hoje não saberia classificar entre a ferida e a felicidade, a sombra e o iluminado êxtase. Corríamos nas encostas da urze e nas veredas que seguiam da escola a caminho do vale, pescávamos trutas palmeiras no regato do Covas, guardávamos gado, ajudávamos no campo, armávamos esparrelas aos melros. Mas eu saí cedo. A cidade. Os estudos. O meu tio queria fazer de mim um homem. Eram essas as suas palavras. O meu pai acabou por ceder. O meu tio dizia que as raízes dos negrilhos se misturavam em nós e nos agarravam à terra. Que era preciso cortar cerce essa matéria vegetal incombustível. Para que a pele e o chão da aluvião não acabassem por misturar-se e confundir-se. Mas eu regressava muitas vezes. Sempre que podia. Nos dias festivos. No Verão. Eu era o seu confidente. O pai da Aline contava-me tudo. Pedia conselhos. Partilhávamos medos, júbilos, apreensões. Sim, talvez possa dizer que éramos amigos. Mesmo considerando que a amizade era então um objecto raro, precioso, singular.
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A infância passou a correr. A infância é um vórtice, um tempo sem cronologia. A infância, verdadeiramente, não existe. A infância é a memória que guardamos dela num tempo futuro. Passa sempre a correr. Passou a correr e eu saí a caminho da cidade. Saí cedo, como lhe disse. Mas tarde de mais para que fosse já possível cortarem-me por inteiro as raízes dos negrilhos que se misturam em nós. Por isso fiquei a fazer parte da terra, agarrado a ela por laços invisíveis e inverosímeis. Regressava muitas vezes. O pai de Aline procurava-me sempre. O fascínio da cidade é imenso num jovem que vive na montanha, afastado do mundo, por detrás de demoradas cumeadas que se sucedem e perdem na distância entre o cinzento e o azul ténue da melancolia. Ele queria saber do mar e das avenidas, das mulheres e dos aviões, dos barcos e da iluminação das praças e dos grandes edifícios do comércio. Sentia o apelo forte do desconhecido mundo. Veja como são as coisas: sentia esse apelo forte e teve várias oportunidades de sair; quase todos os jovens do nosso tempo acabaram por sair. Mas não. Foi ficando, ficou sempre, ficou para sempre. O mais certo é que fosse tarde: que as raízes dos negrilhos se tivessem já misturado, irrevogáveis, à sua pele e ao ar que respirava.
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O pai de Aline era pouco expansivo. Tímido. Mas de uma timidez que parecia reverter do orgulho. Havia qualquer coisa de nobre, de distintivo, de delicado, no modo como caminhava ou se sentava à mesa ou batia a pedra do isqueiro até iluminar a torcida de trapos. Por isso ficava quase sempre de fora dos jogos raros do mundo rural: os dias festivos associados aos trabalhos do campo. Por isso ficava quase sempre de fora do jogo recorrente de subentendidos e alusões relativos ao sexo. A sexualidade, a ideia de prazer, numa aldeia de montanha, nesse tempo, eram reprimidas até ao exagero. Compreende-se, pois, que estivessem sempre presentes. Mas o pai de Aline era pouco expansivo. E portanto se levou tão a sério a sua paixão sem reservas (pública) por uma mulher. Lúcia. Era esse o seu nome. A tragédia, olhando os seus lábios e as suas pernas esguias, os seus olhos fundos, o seu aparente distanciamento das coisas do mundo, era como se estivesse anunciada nas folhas dos negrilhos ou nas páginas dos livros.
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O sobrenatural não configurava um mundo subliminar ou uma entidade desligada do terreno chão e concreto. O sobrenatural insinuava-se no quotidiano até não haver separação entre o prodígio ou o milagre e a realidade material. O sobrenatural estava presente nas mínimas coisas; misturava-se nelas. Ora acontece que Lúcia era duma beleza trágica: porque à sua beleza se acrescentava uma sobranceria que parecia reverter do tédio e da distância. Isso fundava na comunidade um elemento de instabilidade (de desequilíbrio) inaceitável e que só poderia inscrever-se no domínio do oculto. A Lúcia, portanto, se começaram a atribuir estranhos poderes; a ela se começaram a associar inusitadas ocorrências. Porque caiu a neblina sobre os campos da veiga no dia em que nasceu uma criança e aí permaneceu, numa nuvem espessa, até que morreu uma outra afogada num poço? Porque caiu um relâmpago na torre da igreja à meia-noite do dia doze de Dezembro e os dois ponteiros do relógio ficaram parados, sobrepostos, apontando ao número doze? Porque começaram a ver-se fogueiras em deriva nos montes saindo dos buracos dos canhotos furados dos torgos da urze? Porque Lúcia, necessariamente, tinha estrangeirinha com o demo. O pai de Aline, claro, ria-se de tudo isto. Ele e Lúcia continuavam o namoro. Eram vistos de mãos dadas. Tinham casamento marcado. E foi então que Lúcia desapareceu. Sem deixar rasto. No dia em que tinha sido vista na cortinha, a manhã inteira, a recolher as giestas de que se faziam as vassouras das bruxas.
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O tempo raramente cura as feridas. Mas as feridas ficam e o tempo corre. O pai de Aline (conta o dr. João Marcos) acabou por acordar o casamento com a irmã de Lúcia. Ana Paula tinha uma beleza e uns modos que não ultrapassavam os limites do decoro. A aldeia não sentiu os perigos insustentáveis da lascívia ou do prazer ostensivo (Lúcia desaparecera para sempre). A aldeia, aliviada, estendeu-lhe um chão de alecrim e alfazema a caminho da igreja; ergueu-lhe grinaldas e arcos de loureiro e vinha-virgem. Era um dia muito quente de meados de Maio. Sem uma nuvem. Claro, quase transparente nas mãos inclinadas contra o horizonte. O ar iluminado e leve até à iridescência. Ana Paula entrava na igreja quando se ouviu um grito. As aves ergueram-se dos ramos dos freixos do largo. A aldeia, num sobressalto, correu ao adro: uma criança destapava um lençol de linho na pedra do cruzeiro e o corpo de Lúcia, como se estivesse ainda vivo, os olhos abertos e fundos, estendia-se imóvel no chão do fim da manhã de Maio como uma aparição do desassossego.
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(Não. Não nasceu na Aldeia. Por favor: isso é outra história. Não vem ao caso.)
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Não sei que mais lhe diga. (Há pouco mais a dizer: e algumas dessas coisas, por pertencerem a um reduto de intimidade, não devem dizer-se.) A tragédia, como imagina, ficou agarrada ao pai de Aline como uma doença do corpo. Menos de vinte linhas resumirão tudo o que falta dizer: Aline nasceu num domingo de Páscoa; ele, nesse dia (eu tinha regressado da cidade), procurou-me num alvoroço: mas nem assim um sorriso foi capaz de abrir o seu rosto; deixou a aldeia, claro: foi viver para uma casa que o seu avô tinha deixado à ruína (afastada do mundo: chegava-se por um caminho de pé posto) a jusante da Ponte de Arame; arroteou o pequeno vale confinante, despedregou a encosta, semeou centeio e um milho de regadio, fez uma horta, erigiu um forno, arrumou um curral. Reconstruiu a casa, vagarosamente, uma pedra e depois outra. Ergueu muros. O tempo corria sem aparente agitação ou sobressalto. A Ana Paula nunca mais se ouviu uma palavra. Aline, depois dos seis anos, foi à escola. Passava a semana na aldeia; em casa dos tios. Eu continuei a visitá-lo como se a tragédia não tivesse alterado tudo. Nunca se falou de Lúcia. Nunca se falou desse dia em que ela apareceu, ninguém sabe como nem porquê, morta, à hora do casamento da irmã, coberta por um lençol de linho no chão do adro. Desculpe ter falado tanto (e tão pouco). Você perguntou-me apenas se conhecia o pai de Aline; se éramos amigos. Sei lá que lhe diga. A vida é o caralho.
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Capítulo III
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(Onde Aline intui que é possível regressar ou perder uma casa para sempre)
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Talvez a evidência da precariedade do prazer tenha levado à invenção do amor. Talvez o amor seja o esforço (a ilusão, a vontade) de cimentar esse muro defensivo erguido com tijolos frágeis (Aline intui que o tédio decorre da aceitação da evidência da precariedade do prazer). Talvez o amor, a ser assim, se constitua como uma das mais belas e perfeitas e comoventes construções humanas. Porque, a ser assim, o amor decide-se no território da sua própria impossibilidade; porque, a ser assim, o amor exige a entrega, a permanente disponibilidade, a abdicação do que julgávamos pertencer-nos. Aline reflecte sobre tudo isto e conclui que merece o tédio. Nunca fez nada pela construção do amor; do mesmo modo que nunca fez nada para que a casa que lhe pertencia pudesse verdadeiramente pertencer-lhe.
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Aline olhou repetidamente as fotografias da casa. Demoradamente. Durante vários dias. E é como se uma parte da sua vida começasse a regressar de um lugar que nunca existiu, de um tempo que chegou a julgar nunca ter vivido. A tristeza e o sobressalto, a melancolia e o desassossego, aos poucos, pareciam juntar-se na memória das coisas. Não havia uma linha condutora, um fio que ligasse um acontecimento a outro, uma lógica, uma cronologia: apenas imagens isoladas emergindo de entre a poeira muito fina de camadas sucessivas de escombros, resíduos, sedimento. Aline sentou-se. Ligou o computador. Abriu um programa de texto. E começou a escrever:
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Capítulo IV
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(Onde Aline escreve sobre memórias dispersas)
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Deus, a que outros chamam Natureza, formou e aplanou as montanhas, deformou os materiais que tinha sedimentado, colmatou bacias, comprimiu os relevos, juntou e separou blocos continentais, formou fossos tectónicos, afastou continentes, fez o mar avançar pela terra dentro e depois afastar-se; concebeu a chuva e o relâmpago, a neve e o fogo, o poço e a nuvem, a geada e a luz, o dia e a treva; criou os peixes e as aves, os escalos e os gaios, a truta e a calhandra; criou a raposa e o saca-rabos, o cão e a salamandra, a galinha e o lobo, a lebre e o texugo; criou os carvalhos e as faias, a aveleira e o escalheiro, a madressilva e o trovisco, a salsaparrilha e o codorno, a urze e o tojo, o azevinho e a bétula; criou finalmente o Homem para que tudo comandasse; e depois, cansado, retirou-lhe uma costela e criou a Mulher. O mais certo é que fosse já tarde; que a fadiga lhe impedisse a perfeição final. E então, dando a tarefa por terminada, coibiu-a de sentir o desejo e de experimentar o prazer.
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Ela adivinha o quanto ele a deseja. Consegue sentir o seu desejo no modo como respira ou (subindo ela a escaleira) faz uma pausa na tarefa de rachar a lenha para poder olhá-la simulando olhar o horizonte. É uma tarde quente de fim de Verão. Os salgueiros e os amieiros, com as suas folhas escuras e os fustes densos, marcam o talvegue do rio. O brilho quase incandescente dos troncos muito brancos das bétulas parece inverosímil. O tojo e a urze, na encosta, não perderam ainda as flores amarelas e roxas. Os robles mais jovens erguem na umbria os troncos lisos de um cinzento ténue. Do lado de dentro da casa, defendida pela obscuridade do interior, ela olha-o através dos vidros da janela a admirar o movimento preciso do corte, os músculos distendidos erguendo o machado, a distensão depois acompanhada de um grito brevíssimo no momento preciso em que a lâmina toca a madeira. Não há uma nuvem. Esse grito e esse som da lâmina a atravessar os paus de lenha, quase simultâneos, quebram o silêncio, a espaços, repercutindo o estampido de um disparo na abóbada do vale.
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[Modernidade, num determinado tempo antigo, significava humanismo: o conceito separava da vasta barbárie a minoria dos que partilhavam os valores da vida e da dignidade e lutavam pela liberdade e os direitos do homem (palavrão, lugar-comum). A modernidade, hoje, confunde-se com a cultura de massas; hoje somos todos modernos (ou ainda menos). Compreender-se-á que a grande exigência do nosso tempo não seja outra que a de nos libertarmos desta modernidade rasca (varrendo-a) sob pena de chafurdarmos todos nela. Um dos caminhos (não o único) para desatar os nós da urdidura passa pela reinvenção da nossa relação com o meio em que nos movemos. Quem são os modernos de hoje? Imagine-se o blogger moderno (nascido, é um supor, em 1975) a ler um texto sobre um mundo que já não existe em que um lenhador deseja uma mulher e em que os amieiros e os freixos da margem do rio servem de enquadramento à cena. O blogger moderno, vindo de comprar umas calças modernas numa loja das periferias urbanas de Lisboa iguais às calças compradas pelo adolescente de Pequim ou de Manchester ou pelo cota de Baião, não apenas haverá de sorrir como, superior, sobranceiro, resistirá com dificuldade a um comentário displicente. Do género: «Ela adivinha o quanto ele a deseja… com o pescoço no cepo. Assim a carga dramatica seria muito melhor! Ah ah eh eh eh» Este seria um comentário digno, verosímil, do blogger moderno que vem de fazer um download pirata (relevem-se as dificuldades ortográficas do comentário). Acontece que o lenhador desse mundo que já não existe estava certo com o seu mundo e aprendia a evoluir dentro dos condicionalismos geográficos, temporais, culturais, em que vivia; o blogger moderno não sabe quanta da urina que mijou ontem vem no copo de água que acabou de beber, e os condicionalismos culturais e ambientais em que se move são os que ele mesmo, ululante, prescreveu. O lenhador dos anos sessenta tem um caminho a percorrer, embora sem consciência perfeita do caminho que percorreu e do caminho que lhe falta percorrer; o blogger moderno julga conhecer o chão que pisa e não intui que, não obstante encontrar-se em plena corrida e pronto para a aceleração, o mais certo é que bata com os cornos contra uma parede invisível erguida (por ele) no caminho que ele mesmo escolheu percorrer.]
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A memória desse encontro, como um segredo por desvendar, ficará perdida nas folhas das árvores e no sobressaltado voo do milhafre que desce da colina em voo picado. Ele sabe (presume saber) que ela não pode desejá-lo como ele a deseja; ela sabe que lhe está guardado um papel e conhece o lugar das antigas marcações no palco em que lhe é dado mover-se. Por isso olha do lado de dentro da casa; guardada pela obscuridade do interior; ainda a defender-se de si mesma. É uma tarde quente de fim de Verão. Ela olha-o através dos vidros da janela e imagina-o a subir a escaleira, a entrar, a aproximar-se, a ficar por um momento a olhá-la; e depois os seus braços fortes a apertá-la contra a parede, a tocá-la com fúria, a erguer-lhe a saia, a despi-la, a deitá-la no chão de soalho da cozinha. Mas ambos acabam por representar os papéis que lhes estão destinados segundo códigos antigos. Haverão ainda de encontrar-se várias vezes nos meses seguintes, trocar algumas frases breves de circunstância. Até que o mundo separará para sempre as suas vidas. E depois será tarde. É quase sempre tarde quando aprendemos tarde que a transgressão faz parte do jogo.
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O Inverno começava com a sementeira do centeio e os carretos de mato. Queimadas as cavadas, em terreno onde mal entrava o arado, assim fertilizada a terra escassa com as cinzas dos torrões, era o tempo de tirar os guiços dos telheiros e as rachas de carvalho – e começava o Inverno. As noites iam arrefecendo por altura das escanadas do milho; insinuavam-se os namoros nos bailes de realejo; principiavam os serões sucessivos. Os homens adormeciam nos escanos ou, em havendo companhia, ficavam sentados à lareira a beber vinho, a jogar à sueca ou a tentar a chiadela na bisca do nove; as mulheres bordavam enxovais, enchiam as rocas de lã, faziam os fiandeiros para os cobertores, fiavam o linho dos lençóis e das colchas, rasgavam as tiras de roupa velha para os liteiros e os tapetes. Vinha então o vento da barra, a geada e o sincelo, a neve: o tempo corria suspenso de fios invisíveis. Os homens tiravam das cortes os estercos velhos, matavam os porcos que penduravam nas traves das adegas por uma soga de cabedal, aricavam os centeios. As mulheres, houvesse ou não houvesse serão, ficavam em casa. No seu pequeno e imenso mundo. A guardar a casa e o mundo e a garantir que os ramos da oliveira protegiam as suas crianças e os seus homens da tempestade e do relâmpago.
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(E isto quer dizer o quê?)
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Capítulo V
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(Onde Aline é atravessada por uma imprevista melancolia)
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Aline imprime em duas folhas os textos que acaba de escrever. Levanta-se da mesa, vai à varanda, fuma um cigarro. Olha os barcos e o rasto de prata que deixam nas águas, as paredes cinzentas dos antigos armazéns, a alameda de lódãos e a estrada com automóveis correndo a caminho de lugar nenhum. A tarde declina. A sombra começa a descer sobre os telhados e as árvores da cidade. A noite trará as sua luzes, os candeeiros das ruas e das praças, os faróis acesos, o néon, as lâmpadas das casas e dos apartamentos a desenhar-se nos rectângulos das janelas; a noite trará os seus silêncios, os seus segredos, a inquietude. Aline entra de novo, senta-se de novo à mesa. Relê os textos que acaba de escrever e compreende, na memória viva dessas imagens dispersas, a impossibilidade da narrativa. Sorri. E invade-a a estranha melancolia de quem recupera uma parte do mundo que julgava ter perdido para sempre.
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Capítulo VI
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(Onde Maria Teresa acaba por contar a história duma manhã distante de 1921 como se pegasse em peças dispersas de um puzzle, onde vamos percebendo que há histórias que ficam sempre por contar e onde o Autor verdadeiro deste folhetim se limita a transcrever o conto e a acrescentar um ponto)
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É-me difícil falar de Aline (diz Maria Teresa). Pela razão simples de que falar dela é também falar de mim. E nós falamos sempre de nós por metáforas. Em abstracto. Nunca falamos verdadeiramente dos nossos medos e nunca falamos verdadeiramente dos nossos desejos. Contamos histórias distorcidas pela impossibilidade da transparência. Mentimos mesmo quando supomos estar a dizer a verdade. Falamos de nós pela voz de um outro que nos olha erguendo defesas. Por isso se usa a expressão «dizer a verdade a mentir». Porque por vezes só é possível dizer a verdade quando a mentira deixa de ser um obstáculo a essa busca da verdade objectiva. Posso falar-lhe de Aline, sim. Mas procurando evitar, em nome do rigor possível, a descrição factual e a cronologia. Dois observadores diferentes descrevem um mesmo evento de modo diverso. Veja como os sindicatos e os governos diferem inevitavelmente na contabilidade do número de grevistas; veja a falta de pudor com que uns e outros falam de forma inconciliável de uma mesma realidade. A manipulação dos factos parece fazer parte intrínseca dos processos de descrição – quando não acreditamos deveras nas mentiras que dizemos. O que nos leva a interrogarmo-nos sobre o que é o real e que mentira é essa a que chamamos verdade.
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Aline (conta Maria Teresa) nasceu em mil novecentos e sessenta e oito. Mas a sua história podia começar no dia distante em que os cães do Pai Ventura morreram afogados na corrente gelada das águas da ribeira do Fontão. Ou umas décadas depois, nessa manhã de Setembro em que a camioneta da carreira chegou à Vila e encontrou o Lalice desavindo. Ou mais tarde ainda, em mil novecentos e cinquenta e nove, quando um topógrafo de Lisboa foi visto a tirar miras na Ponte Pedrinha e se descobriu que uma mulher deslumbrante o acompanhava. É indiferente. Porque as histórias repetem-se ao longo do tempo: só mudam os nomes, os lugares, a paisagem. É como se as pessoas fossem sempre as mesmas. A repetir os mesmos gestos. A insistir nos mesmos erros. Por isso há-de desculpar a minha desatenção quando subverter a cronologia dos factos, quando a inverosimilhança baralhar os fios do relato, quando um personagem desaparecer sem que se lhe dê paradeiro, quando um outro surgir a despropósito.
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Comecemos, pois (conta Maria Teresa), por essa manhã de fins de Setembro de mil novecentos e vinte e um em que a camioneta da carreira chegou pela primeira vez à Vila. A manhã tinha nascido clara, sem uma nuvem, sem uma aragem a agitar as folhas das árvores. Lalice estava no torno e veio à pedra da entrada. Acendeu um cigarro. No ar, olhando na direcção do nascente, via-se agora uma nuvem de gases e poeira, de cinza e gasóleo queimado, de tisne e fuligem. E Lalice imaginava essa sombra a erguer-se, essa película espessa e peganhosa a revolutear, a alargar-se, a cobrir, aos poucos, a urze da encosta, o espinheiro-da-virgínia do Toural e o jardim dos Correios, os carvalhos da Rua de Cima, os vidoeiros do Noro, a sebe de sempre-noiva, uma nuvem de pó e gasóleo a espalhar-se pelo chão e pelas paredes do armazém de mobílias. «Hão-de foder tudo», dizia Lalice enquanto apagava o cigarro com as botas gaspeadas de couro e desaparecia de novo no armazém iluminado por uma janela larga rasgada ao nascente. «Hão-de foder tudo», dizia, como se a combustão dos gases quebrasse o ciclo do ozono, como se temesse que o gasóleo ou o ruído sobressaltado do motor da camioneta da carreira queimassem as folhas das árvores ou abrissem fendas nas paredes de taipa, como se a sua preocupação fosse o aquecimento global, ou a destruição da camada de ozono, ou o consumo insustentável de recursos fósseis, ou a poluição atmosférica, como se os ecologistas trouxessem do futuro os seus folhetos coloridos em papel reciclado e doutrinassem Lalice contra o ruído sobressaltado dos motores das camionetas. Não: Lalice concedia que o mundo fosse maior que o perímetro da bacia hidrográfica do Terva. Mas o seu mundo era esse: começava nas cumeadas da serra da Seixa, descia a encosta, prolongava-se até à Raposeira, continuava por alturas do Barco de Pedra e fechava, a poente, na Colina do Engenheiro. O resto era apenas um silêncio ameaçador, um rumor de promessas por cumprir. Temia o desconhecido, portanto, e não tanto a fusão dos gelos do Ártico.
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E então Lalice veio à janela e olhou a casa do largo como se também ela pudesse ruir, de súbito, por entre o tisne e a fuligem. O doutor Magalhães acaba de subir à varanda. Puxou a cadeirinha de lona branca e azul para junto do gradeamento de ferro e arregaçou as mangas da camisa em dobras simétricas. Não tardará que venha a sentar-se flectindo cuidadosamente os joelhos e puxando ligeiramente as calças, tirando depois os sapatos de verniz e as peúgas de algodão, enfiando finalmente os pés descamados na bacia de porcelana. Mas por enquanto fica ainda a olhar o perímetro do mundo: a encosta do outro lado do vale, virada ao norte, os pinheiros que a seus olhos se erguem cinzentos e castanhos, o voo de um milhafre sobre a cumeada, a nuvem de gases e poeira que começa a espalhar-se em redor e a precipitar até ao ocre do saibro. Também ele, como Lalice, teme a chegada da camioneta da carreira. Também ele concede que o mundo seja maior que o perímetro da bacia hidrográfica do Terva. Mas custa-lhe admitir que alguém possa chegar de longe; teme que alguém possa chegar e instituir uma nova ordem ou impor um novo conjunto de regras. Porque tudo tinha já os seus limites estabelecidos, as suas fronteiras desenhadas. E a camioneta da carreira trazia consigo, mais que o rumor dos motores e uma nuvem de fuligem, a ameaça do que não tem ainda um nome.
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A camioneta tinha chegado exactamente às dez e quinze. E estava anunciado que a camioneta da carreira chegasse às dez e quinze, duas vezes por semana, do outro lado do mundo. O doutor Magalhães olhou na direcção da casa de mobílias, olhou a camioneta, sentou-se na cadeirinha de lona, sentia-se infeliz, não se teve que não dissesse «veio à tabela a filha da puta».
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Um desconhecido sai da camioneta da carreira. Fica por instantes interdito como se procurasse um ponto de referência. É magro como um espeto. Tem ar de maricas. Tira o relógio do bolso do colete e abre a tampa de prata. Olha depois em direcção ao sol da meia manhã de Setembro com as mãos transparentes em pala: deve estar a confirmar pela ordem do mundo as qualidades mecânicas do seu instrumento suíço de precisão. Depois, sacudindo a poeira do casaco escuro, troca breves palavras com o motorista da camioneta. E avança para a entrada da Pensão Americana. A mala de carneira e passos decididos. Como se um outro mundo, sacudindo a poeira do casaco escuro, pudesse começar (o orgulho, a displicência) a partir das suas frases e do seu modo de olhar em redor.
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Lá terá as sua razões (continua Maria Teresa) o doutor Magalhães. Que não nasceu ontem. Que já lhe tirou as medidas. Que já viu este filme, que é como quem diz. Olha o desconhecido e senta-se na cadeirinha de lona. Tem o sobrolho carregado e enfia os pés na bacia de porcelana. E sente essa turva exalação do enxofre da água das caldas santas. E deixa que o sol lhe percorra as pernas e os braços. Que a luz inicie os seus trabalhos de lenta depuração. É alérgico à sombra: doença filha da puta. A sombra não o deixa em repouso durante a noite. A sombra a dilacerar-lhe a pele. Noite após noite. Um formigar em hélice. A pele a escamar, a fender, a encapelar. Depois estica o pescoço e vê o desconhecido a entrar na Pensão Americana. E imagina já a Fernanda a estender-lhe a mão, a cumprimentá-lo, talvez a apreciar o seu rosto esquálido, os seus modos estrangeiros. E recorda o dia longínquo em que tocou o corpo de Fernanda. Em que ela se despiu diante de si. Em que a tocou a medo. Como se tivesse medo do seu próprio corpo. Lembra-se. Lembra-se de ter corrido as portadas até a penumbra os envolver em intimidade e silêncio. E de um incêndio, uma espécie de incêndio, de súbito, encher o quarto. E de ver assim esse corpo que desejava tanto a erguer-se numa labareda. A iluminar as paredes quase nuas. A transformar em fogo a última ceia emoldurada em pau de cerejeira. A irromper numa espiral de vertigem. Lembra-se. Lembra-se ainda de ter ousado tocar esse fogo. De quase ter tocado esse fogo. Esse lume leve. E de sair depois numa corrida. Como se ardesse. E de pensar por um instante breve que talvez fugisse de si mesmo e que talvez fugisse para sempre da luz do amor. Da luz em espiral do amor. E depois disso é alérgico à sombra. E precisa da luz. Há doenças do caralho, que parecem de romance, e é bem certo.
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Há um odor intenso de alecrim (conta Maria Teresa) misturado no ar de fuligem. Como no primeiro capítulo dos romances sul-americanos. Lalice abriu o portão das traseiras e saiu ao combarro, desviou umas tábuas de esquadria e pegou num caibro de quinze arrobas, levou-o atravessado um pouco acima da cintura e estendeu-o de lado a lado na estrada de saibro; arrumou-se de novo à pedra da entrada e ficou à espera, os braços cruzados, a perna esquerda flectida ligeiramente, até que a camioneta da carreira arrancou e parou quarenta metros depois com a passagem impedida: as crianças num alarido como se tivesse parido a galega. A camioneta parou com o motor ao ralentim. O motorista saiu e pediu «ao cavalheiro, em nome do progresso», que desviasse o pau. E o Lalice ria-se. E perguntou se a camioneta «não fazia cavalinhos». E riu-se de novo. E puxou um novo cigarro (a manhã clara, sem uma nuvem) em gestos de uma lentidão exasperante.
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Manuel Pequeno, pai de João Pequeno, está sentado no murete da taberna da Emília. Dia após dia, quando as aves da lagoa do Alto da Ribeira começam a afastar-se na direcção das encostas viradas ao norte, em sendo o Verão, e sobrevoam depois a cumeada planando em voos largos, ou rumam à veiga e se acolhem no leito de cheia à procura da precária luz dos meses frios do Outono e do Inverno, Manuel Pequeno desce a caminho do Toural e bebe aguardente com açúcar na taberna da Emília. Nem o álcool traz aos seus olhos uma única luz, um reflexo, um movimento, uma fugidia sombra. Como hoje: a camioneta da carreira chegou pela primeira vez à Vila, parou no Toural, partiu e parou de novo junto ao armazém de mobílias de Lalice. Pedro, o Louco, viu Lalice a levar um caibro de quinze arrobas atravessado um pouco acima da cintura e a estendê-lo de lado a lado na estrada de saibro; e começou a rir-se tão alto que as aves da Corredoura se desprenderam dos ramos das tílias.
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Pedro, como num romance sul-americano, escolheu nesse dia o odor do alecrim. Desceu o caminho do Toural e sentou-se no muro dos correios à espera da camioneta da carreira. Não é ainda a alba. Uma leve aragem cresce do rio quando a névoa começa a levantar-se e se estende pelo jardim da casa em ruína. Pedro acorda com o rumor das folhas dos salgueiros, levanta-se da esteira, passa o umbral, recolhe um minúsculo ramo de alecrim, senta-se na escaleira do pátio e olha a luz que há-de começar a levantar-se, em levantando a névoa, sobre os pinheiros mais altos da serra da Seixa. A Vila, não tarda, começará também ela a erguer-se de entre o lixo das ruas, de entre a sombra das paredes escalavradas, de entre a humidade dos muros, de entre o cheiro de excrementos humanos vazados dos alpendres. Homens e mulheres sairão de casa, entrarão em casa, descerão à veiga, subirão ao monte. Muitos haverão de escolher a sombra em vez da luz. A indiferença em vez do alecrim misturado no ar.
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[Maria Teresa faz uma pausa e pede-me desculpa pelos «excessos de linguagem», pela «inusitada cópia de pormenores», pela «quantidade de personagens» que vai entrando na narração: «e isto ainda não é nada.» Diz saber que ficarei confuso, que me obrigarei a rever as minhas notas procurando ligações insuspeitas. E defende-se: «Tenho para mim que uma história deve contar-se como nos foi contada; se ma contaram assim, assim lha entrego: sem acrescentar um ponto; sem mudar um til. Já quanto ao que disser da minha lavra, enfim, tenho os meus critérios.» Não posso deixar de sorrir: enquanto autor responsável pelo produto final desta história, passando a limpo textos apócrifos e cartas missivas, reproduzindo os diversos relatos, organizando a estrutura narrativa, não procuro outra coisa que não seja não mudar um til. Mas afinal sabemos ambos, eu e Maria Teresa, que a verdade fica sempre algures entre o que se ouve e o que se escreve, o que se viu e o que julgámos ver.]
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Manuel Pequeno (conta Maria Teresa) desce a rua do Toural. Pedro, o Louco, segue-o à distância e senta-se depois no muro dos correios. Fernanda, dona Fernanda, vem à janela da Pensão Americana, afasta os cortinados com suas cornucópias vermelhas e azuis e desaparece de novo. O doutor Magalhães acaba de subir à varanda da casa do largo. Uma nuvem de gases e poeira anuncia a chegada da camioneta da carreira. Lalice fuma um cigarro à porta do armazém de mobílias. Manuel Pequeno entra e sai da taberna, acaba por sentar-se no murete adossado à empena escalavrada, o seu ângulo de visão condicionado ao movimento em arcos de círculo do pescoço e ao trabalho quase mecânico das suas veias muito salientes. O seu corpo estremece quando o olhar, e portanto a cabeça em bloco, sobe à varanda da casa do largo no momento preciso em que o doutor Magalhães puxa uma cadeirinha de lona branca e azul para junto do gradeamento de ferro forjado e arregaça as mangas da camisa em dobras simétricas.
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Na rua Direita, entretanto, Américo Matias sobe os três degraus que separam do acesso o espaço amplo da loja envolvida permanentemente por uma gaze de sombra. O Comércio Central tem o monopólio local da pólvora do estado e um completo sortido em artigos funerários, açúcar e café, bacalhau da noruega, arroz, sabão e pregagens, louças de serviço, vidros, miudezas, camisaria, luvas e calçado de Lisboa, chapéus, bolachas e vinho fino, tintas para pinturas, óleos e vernizes. Enquanto a guerra alastrava na Europa, e o Echos recenseava quinzenalmente os soldados do distrito que já não regressariam do front, e o preço do carbonato proibia a iluminação pública semanas a fio, e se consolidava o racionamento do pão e do açúcar, Américo Matias enriquecia e convidava a sociedade elegante da Vila para matinés dançantes com champanhe e biscoitos ingleses. As tradições, na província, perdem-se devagar. A guerra já findou, não há bem que sempre dure. Mas o que é preciso é estar vivo. E Américo roda com volúpia nos dedos grossos a prancha original do convite desenhado pelo Lindinho enquanto uma nuvem cinzenta desce do Toural e anuncia a partida da camioneta da carreira.
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Manuel Pequeno entra de novo na taberna. Pede mais um copo de cachaça. Não tarda que as suas pernas e os seus braços, e depois o corpo todo, comecem a traí-lo em movimentos de circo. O ruído sobressaltado de um motor leva-o à rua. A camioneta da carreira sobe vagarosamente a caminho do largo como se chegasse de uma viagem à roda do mundo. Oito passageiros procuram reconhecer as bagagens de entre uma nuvem de pó. Um desconhecido tira o relógio do bolso do colete. Lalice estende na rua um caibro de quinze arrobas. Pedro mistura na manhã de fins de Setembro (como nos romances sul-americanos) um odor intenso a alecrim. O doutor Magalhães, na varanda da casa do largo, acaba por sentar-se na cadeirinha de lona e enfiar as patas na bacia de porcelana. Manuel Pequeno cambaleia por instantes, olha de novo a circunferência do largo. O filho, mais uma vez, não chegou à Vila: como se a camioneta da carreira não acrescentasse nada ao mundo conhecido. Do outro lado do vale, sobre a cumeada, um milhafre continua a planar como se tudo estivesse conforme com a ordem do mundo.
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Deitado na cama de ferro, com a cabeça erguida em duas almofadas de sumaúma, Carlos, o Alferes, roda com enfado o convite manuscrito com volutas desenhadas a tinta da china. Pelo rectângulo da janela, diluída na espessura dos vidros, vê ao longe a encosta do outro lado do vale, virada ao norte, com seus pinheiros verdes e azuis, entrevê o voo largo de uma ave iluminada pelo sol da meia manhã de Setembro. O senhor seu pai acaba de passar a caminho da varanda, não tarda que arregace as mangas em dobras simétricas, puxando a cadeirinha de lona para junto do gradeamento de ferro forjado. Às vezes apetece-lhe recomeçar tudo de novo; regressar ao dia mágico em que uma nave voadora sobrevoou a Vila e ele compreendeu que o seu destino ficaria para sempre agarrado a essa imagem, à sombra ampliada do avião a atravessar o chão da veiga, a distorcer-se nos ciprestes do cemitério e na parede estreita da torre da igreja, a subir a encosta dos Matos, a aproximar-se por instantes da parte inferior da aeronave, até que uma e outra, sombra e aeronave, desapareceram para além da linha de cumeada. Nesse dia, nesse dia distante, soube que também ele haveria de sobrevoar a Vila e o mundo, que a sombra da sua aeronave correria ampliada percorrendo a veiga, a colina do Engenheiro, as encostas da Seixa, o mar oceano. Às vezes: como hoje, uma ave luminosa sobre a cumeada, o sol de fora a adivinhar-se no amarelo muito vivo dos losangos da colcha, o aroma do alecrim levantado no ar, o riso das crianças a correr atrás da camioneta da carreira.
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Uma nuvem de gases e poeira levanta-se da rua, espalha o tisne e a fuligem pelos móveis da sala, pelo chão encerado do átrio, pela mobília dos quartos do primeiro andar. Fernanda, dona Fernanda, vem à janela: o doutor Magalhães acaba de subir à varanda da casa do largo, não tardará a sentar-se na cadeirinha de lona e a enfiar os pés descamados na bacia de porcelana. Fernanda levantou-se cedo, a luz ainda vacilante na colina. Desce ao salão, abre o louceiro de carvalho, olha com minúcia, uma peça e depois outra, o serviço de jantar. É preciso ir às compras. Levantou-se cedo; não há uma nuvem de água ou neblina entre a terra e o céu; o espinheiro-da-virgínia do Toural ergue-se contra o céu de fins de Setembro como se o mundo começasse a nascer com a manhã ainda indecisa. Como se alguém dissesse: aqui uma árvore, aqui um muro alinhado, aqui o caminho do monte, aqui um ribeiro e suas águas sesserigas, aqui uma pedra, aqui uma fonte. Como se o mundo só então pudesse começar. Como se alguém dissesse: aqui uma pedra, aqui uma fonte; e agora a luz a descer a colina, a estender-se no vale e na encosta de carvalhos, a descer o ribeiro e suas margens, a descer o caminho do monte. Como se tudo pudesse começar; como se nada existisse ainda entre a terra e o céu.
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Às vezes é como se a vida pudesse fazer sentido: o riso das crianças, o ruído sobressaltado de um motor, o sol a iluminar o voo das aves. Carlos, o Alferes, imaginou-se a descer a escaleira exterior da casa do largo, a passear na margem da ribeira do Fontão, a visitar os primos da Granja, a combinar as férias na Póvoa. Lembra-se de Margarida, num tempo em que os sonhos eram ainda possíveis, e de as suas mãos se tocarem; recorda as lágrimas de cada vez que partia de novo: as suas lágrimas e o seu riso quando lhe contava as tristezas e as grandezas da guerra. Lembra-se de Luísa: dos seus olhos de amêndoa, do seu sorriso rasgado, atrevido; das suas pálpebras em leque. Era uma tarde de Verão. As moscas zumbiam contra os vidros das janelas da Pensão Americana. A banda de música de Fermil subia com solenidade a rua do Toural; os andores da Senhora da Livração e de São Benedito; os anjinhos; o senhor bispo da diocese sob o pálio lilás; as velas acesas de promessas e graças concedidas. Era uma tarde de Verão; quinze de Agosto. Subiram o primeiro lanço dos degraus, parararam por instantes; continuaram até ao quarto dos fundos. Luísa despiu-se: os olhos de amêndoa, os lábios finos, as pálpebras cerradas. Carlos fechou a janela, correu as cortinas, aproximou-se devagar, deitou-se a seu lado.
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Há vinte e seis meses exactos: João Pequeno e Serapião Afonso bebem dois cálices de licor de cereja e saem da taberna da Emília. Pedro, o Louco, ficou até mais tarde na Vila. Do alpendre da casa velha, junto à figueira, vê-os sair, sentarem-se por instantes numa pedra do muro, seguirem a caminho do Toural. Pedro não compreendeu logo o que fazia Américo Matias dentro do edifício da Câmara, de vigia, colado pela sombra da noite aos vidros da janela que depois abriu num estalido e tirou do engonço. O comerciante saiu e correu na direcção da casa do largo. Passado algum tempo, Pedro viu o doutor Magalhães a descer pela escaleira exterior. Ficaram ambos parados (Américo e o doutor) um momento breve. Depois, numa corrida nervosa, rumaram em sentido contrário até ao posto da guarda.
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Luísa vai às compras. Em frente ao armazém de mobílias parece que pariu a galega. São dez e quarenta e cinco. Américo Matias olha a prancha original do convite desenhado pelo Lindinho e é surpreendido pelo brilho do papel couché a reflectir um rosto de mulher: seu sorriso rasgado e atrevido, suas pálpebras em leque. Luísa tem uma saia quase à altura dos joelhos, um decote furqueiro, o cabelo apanhado num pregador colorido. Uma aragem leve mistura no ar o aroma denso do alecrim e por instantes é difícil distingui-lo do aroma da sua pele muito branca, das suas mãos movimentando-se enquanto fala, das suas mamas espetadas contra a blusa de riscado. Américo, interdito, não diz coisa com coisa. Na loja, na penumbra da loja, Luísa corre a estante das louças. Dona Fernanda não olhará a despesas para que o senhor professor (parece que é professor) possa juntar ao prazer da carne de cabrito a volúpia de um serviço de jantar com paisagens dos alpes ou flores entrelaçadas. Uma dúzia de copos de pé alto, uma dúzia de taças, outro tanto de pratos com o desenho de um lugar idílico, campestre, em azul cantábrico, duas travessas, uma terrina de sopa. Luísa corre a estante das louças. Américo Matias vai olhando de lado; e passa a língua pelos lábios secos.
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Deitado na cama de ferro, com a cabeça erguida em duas almofadas de sumaúma, Carlos, o Alferes, roda com enfado o convite manuscrito com volutas desenhadas a tinta-da-china. Pelo rectângulo da janela, diluída na espessura dos vidros, vê ao longe a encosta do outro lado do vale, virada ao norte, com seus pinheiros verdes e azuis, entrevê o voo largo de uma ave iluminada pelo sol da meia manhã de Setembro. A camioneta da carreira arranca finalmente pela rua de Cima, esgotadas as negociações para a retirada de um caibro de quinze arrobas atravessado na estrada: o ruído sobressaltado do motor, a algazarra das crianças correndo a seu lado. Às vezes pensa que tudo pode começar de novo. Três anos fechado no quarto da casa do largo, deitado na cama de ferro. Lá fora o voo de uma ave iluminada pelo sol de Setembro.
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Fernanda sobe de novo, despe o roupão, passa a mão esquerda, com volúpia, pelo ventre liso, a luz do seu corpo a iluminar as paredes do quarto [que é como quem diz, claro], a manhã indecisa a entrar pela janela virada ao nascente. Recorda a primeira vez em que se despiu diante de um homem. O engenheiro chegara em Novembro de mil oitocentos e oitenta e nove; passava os dias na serra com a brigada da floresta. À noite, depois da ceia, estendia as cartas topográficas na mesa da sala, os dedos finos, os modos galantes. Em fins de Fevereiro, à experiência, começaram as primeiras sementeiras e plantações: dezenas de homens e mulheres a desmatar a encosta, a abrir covas, o penisco, os pinheiros minúsculos a desenhar uma nova paisagem. À noite, depois da ceia, o engenheiro estendia as cartas topográficas na mesa da sala, os seus modos galantes. A taberna fechava cedo, o engenheiro foi o primeiro hóspede da casa de pasto: só mais tarde a taberna se transformou em pensão. Dona Fernanda recorda: nessa noite ficaram sozinhos na sala, as cartas topográficas estendidas na mesa, os seus dedos finos, os modos estrangeiros. Tinha quê? dezasseis anos. O engenheiro olhou-a nos olhos, tocou-lhe os cabelos, os ombros, o rosto. Era como se mais nada existisse no mundo para além dos seus dedos finos, os modos estrangeiros. E então subiram. [Sabe você (continua Maria Teresa) como me contaram este momento? Que, de súbito, no quarto muito escuro, a luz do corpo nu de Fernanda iluminou as paredes, o jarro com água, o livro de botânica, as velas de sebo, o lavatório, a pequena cómoda. Que, de súbito, no quarto muito escuro, era como se lavrasse um incêndio. Que a luz do seu corpo iluminou as paredes do quarto. Que era impossível olhar de frente esse esplendor.]
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Américo Matias passa a língua pelos lábios secos. Embrulha vagarosamente as peças, uma a uma, cuidadosamente, dobrando em trapézio as pontas do papel com flores estilizadas. Luísa não usa corpete e não é certo que uma cinta apertada lhe modele as ancas levantadas. Américo recorda: um dia, uma noite de Novembro, ficou até tarde no serão de dona Fernanda. Chovia que deus-e-a-dava. Soprada pelo vento da Seixa, oblíqua, a água entrava por debaixo da portada; a lareira acesa protegia-os da tempestade e do mundo. Luísa adormecera no maple corrido, a cabeça muito perto do seu ombro. Dona Fernanda pediu licença por um minuto, subiu ao primeiro andar a verificar as janelas, «esta chuva que não há meio de parar». Chovia como se chovesse desde sempre. Ficaram sozinhos: Américo e Luísa. E Américo Matias deixou que a sua mão direita se perdesse na cintura de Luísa. Ouvia lá em cima os passos no soalho, uma porta a fechar-se. O vestido tão fino que era possível sentir, passando a mão aberta, vagarosamente, quase sem tocar, mais que a pele, os minúsculos poros da pele. As pernas de Luísa, a curva dos joelhos. Não podia ser que dormisse. Respirava de um modo diferente. [Não sorria (diz Maria Teresa): foi assim que me contaram. Eram outros tempos, claro, a linguagem era outra. Enfim, continuemos...] Chovia que deus-e-a-dava. Soprada pelo vento da Seixa, a água da chuva. Como se chovesse desde sempre. Dona Fernanda desceu. Era tarde. Agora, hoje, uns quatro ou cinco anos depois dessa noite de chuva, na penumbra da loja, lá fora o sol da meia manhã de Setembro, Américo Matias embrulha vagarosamente as peças, uma a uma, cuidadosamente, dobrando em trapézio as pontas do papel com flores estilizadas. O odor do alecrim quase embebeda. Chega da encosta do outro lado do vale, pára por instantes no largo, sobe a rua Direita e seu pequeno labirinto de curvas e veredas adjacentes, desce os três degraus do Comércio Central, cola-se irremediavelmente às estantes envernizadas, ao balcão de castanho, ao papel pardo dos embrulhos, ao fio do norte, às mãos agitadas de Américo Matias. Luísa sai da penumbra da loja sem pressa. As suas ancas iluminam como uma aparição a manhã de Setembro.
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Ainda antes desse ruído sobressaltado se anunciar na curva do Alto do Barco de Pedra, e depois descer num clamor a caminho dos Campos das Trindades, Margarida adivinha a chegada da camioneta da carreira: no imperceptível estremecer das folhas do salgueiro; no bater das asas de um milhafre que se levanta sobre a cumeada; na ondulação ligeira da água do tanque. São dez da manhã. Não há uma nuvem. Margarida acordou cedo, a luz ainda indecisa na colina: se pode chamar-se dormir a esses minutos breves em que uma pequena paz lhe permite cerrar as pálpebras. Durante a noite, durante a noite toda: o ruído da madeira das traves da cozinha, da hera a crescer nas paredes da casa, das águas de lima, da luz do quarto minguante poisada nas telhas e no chão de granito da eira, da nascente da mina: durante toda a noite, dia após dia, ano após ano, Margarida não dorme. É assim há três anos: ouve o mais leve ruído a crescer do interior da terra, da superfície das águas, da folhagem, da ramagem, do voo das aves. Um alarido às vezes insuportável. Há três anos que praticamente não consegue dormir.
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Dona Fernanda escolhe um vestido de festa. É como se tudo pudesse começar de novo. Atrás do balcão corrido da Pensão Americana, vagarosamente, arruma os papéis, o livro de registos. Luísa vem de calafetar as janelas do primeiro andar com panos húmidos e a dizer mal do pó levantado pela camioneta da carreira: tem um sorriso rasgado, a saia quase à altura dos joelhos, um decote de furco, o cabelo apanhado num pregador colorido. Atrás do balcão, à espera, Fernanda muda de sítio o livro de registos, as mãos nervosas, o aroma do alecrim a misturar-se no ar. O desconhecido entra. Abre a porta da pensão, pára por instantes, olha em redor, atravessa o átrio, diz «muito bom dia», poisa no chão encerado uma mala de carneira cheia de pó. Dona Fernanda recorda a primeira vez em que se despiu diante de um homem: foi há tantos anos: a luz do seu corpo a iluminar as paredes do quarto; era impossível olhar de frente esse esplendor; um incêndio. Nua, Fernanda. E então o engenheiro das florestas cerrou os olhos, as mãos de súbito pelo corpo todo numa aflição como se uma doença o atormentasse desde o princípio dos tempos. A arder. Gritou, saiu numa corrida, uma dor que se adivinhava à distância no escuro da noite. Ninguém o viu durante o resto da noite. Na manhã seguinte encontraram-no morto, suspenso de uma corda no carvalho da colina da Raia. Enforcado. Dizem que tinha os olhos queimados: a pele arroxeada, escamada, fendida, como se um incêndio houvesse lavrado a noite toda no interior do seu corpo.
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Pelo rectângulo da janela atravessada pelas grades, entre quatro ferros verticais, vê-se uma fita estreita de azul, em não havendo nuvens, poisada nas telhas do edifício das finanças. O resto é sombra. Uma sombra húmida que vem do pátio interior e depois se arrasta pelo chão e pelas paredes das celas: o bolor, o poder da ruína, a água a escorrer do tecto, mesmo em Setembro, a meio da manhã, em não havendo uma nuvem de água ou neblina entre a terra e o céu. Dias seguidos, um depois do outro, olhando pela janela contra o edifício das finanças, ou subindo ao lancil do pátio e olhando na direcção do que há-de ser a serra da Seixa, para além dos muros altos, Serapião Afonso não vê uma árvore. Não há uma árvore: uma árvore de fruto a que pudesse, em começando a abrir, ou quando a flor irrompe contra a memória da neve, derramar-lhe nas folhas um pouco de cal, de cal viva, de cal em pó, misturada no enxofre, muito cedo de manhã, com as gotas ainda do orvalho, ou depois da chuva, quando o odor da terra começa a levantar-se. Uma árvore: um freixo, um amieiro, uma tília; a prata dos álamos; o verde brilhante dos negrilhos jovens, um carvalho negral, o branco dos vidoeiros antes do Inverno.
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Ainda antes desse ruído sobressaltado se anunciar na curva do Alto do Barco de Pedra (continua Maria Teresa), e depois descer num clamor a caminho dos Campos das Trindades, Margarida adivinha a chegada da camioneta da carreira, do mesmo modo que adivinha já a chegada da chuva pelo fim da tarde: uma nuvem há-de tocar os pinheiros mais altos da serra da Seixa, e depois atravessar a veiga, e depois a Encosta dos Matos; e depois outra nuvem, ligeiramente mais escura; e só depois um manto da largura do vale; e só depois a chuva. Alguém dirá: «parece impossível, levantei-me cedo, não havia uma nuvem de água ou neblina entre a terra e o céu».
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Quando acordou pela primeira vez numa cela escura da cadeia civil, há vinte e seis meses exactos, Serapião compreendeu que estar preso é não ter uma árvore, não ter um rio, não ter uma encosta por onde descer a caminho do rio, não ter a luz da encosta a descer a caminho das margens do rio. Há vinte e seis meses exactos: Serapião Afonso está sentado na mesa grande da taberna da Emília. O ti Alcino vendera nessa manhã a parelha de vacas ao Vicente de Curros. É certo que o negócio estava apalavrado com o Cardoso. Mas o Vicente de Curros olhava os bichos de frente e de trás, mirava-os de cima, ajoelhava-se no chão e apreciava-lhes o ventre, passava-lhes a mão pelos lombelos: a cabeça larga e o focinho negro, o perfil côncavo, o pescoço breve, as nádegas anchas: a Marela de um castanho quase palha, a Joaninha acerejada: ambas com a cornamenta da estirpe, em forma de lira; ambas e duas com fitas coloridas nos chifres untados com azeite. «Sim senhora», repetia o de Curros, «sim senhora». Nisto chega o Cardoso: que o Alcino não tinha nada que vender as vacas sem lhe falar primeiro. «Mas se o negócio nem estava sinalizado, homem», defendia-se o Alcino. «Sinalizava-se», respondia o Cardoso. E sem mais aquelas levanta o pau de lodo e prepara-lhe a investida descendente direita à cabeça. Serapião, num pulo, agarra-lhe o braço, João Pequeno deita-o por terra, a Guarda toma conta da ocorrência; deixam o toural, seguem para o posto em fila quase indiana. Passa do meio-dia quando terminam as inculcas e desandam até novas ordens. Alcino já tem a fazenda descuidada, convida-os para o fim de tarde na taberna da Emília. «Bem o merecendes.» De maneira que assim foi. Sentados na mesa grande, revendo a aventura da manhã, comem iscas de bacalhau e bebem vinho de Anelhe. Emília está de rastos. Nos dias de feira é um corrupio desde o nascer do sol, os homens a matar o bicho com nozes e aguardente, a comer polvo cozido e chicharros de escabeche, a entrar e a sair até ao fim da noite, às vezes madrugada dentro. A taberna, aos poucos, vai ficando vazia; a serradura do chão numa pasta única. Alcino pede mais uma caneca de dois quartilhos de tinto. Chega-lhe com o dedo. Sai às onze da noite. Serapião ampara-lhe os primeiros passos a caminho da rua, diz «vá-me com cuidado, homem», senta-se de novo à mesa grande. Emília traz dois cálices de licor de cereja: «é adoçar a boquinha e putas-ao-sameiro». João pequeno ainda puxa do realejo, cantam depois a ribeirinha num coro desafinado, erguem-se de novo. Emília suspira, fecha o portão pintado de verde. Serapião e João Pequeno seguem agarrados a trautear a ribeirinha, ficam por algum tempo sentados numa pedra do muro, lavam a cara na água do tanque do Toural, sobem ao Alto da Ribeira. Param de novo, cantam ainda, seguem de novo. Nisto a patrulha da Guarda faz-lhes frente, dá-lhes voz de prisão, as espingardas em riste. «Ó mestre, isto há-de ser a brincar», diz o Serapião. «Caluda, e é seguir em frente.» Quando acordou pela primeira vez na cela escura da cadeia civil, há vinte e seis meses exactos, Serapião Afonso compreendeu que estar preso é não ter uma árvore, não ter um rio, não ter uma mata de carvalhos onde procurar a sombra dos meses de Julho.
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Margarida recorda o momento preciso em que a doença de adivinhar o futuro havia de tocá-la para sempre: nessa noite de quinta-feira não conseguia dormir. Durante a ceia havia um silêncio pesado. O pai evitara comentários sobre a chegada do primo Carlos; a mãe levantou-se da mesa para esconder as lágrimas. «Vem ferido?», perguntou. Que não. «Mas depois falamos do teu primo.» Não conseguia dormir: o rumor das águas de lima, o rumor das águas da nascente da mina; o alarido das águas crescendo no quarto: as águas do tanque, a água da ribeira do Fontão, a água da Presa do Moinho. Aos poucos, um a um, começava a identificar os ruídos todos da noite. Não conseguia dormir; as pálpebras cerradas a iludir a vigília. E de súbito, no escuro do quarto, vê a imagem do primo Carlos. Nítida. A imagem do primo: deitado numa cama de ferro da casa do largo, a luz da manhã a entrar pelo rectângulo da janela, a iluminar os losangos da colcha. De quando seria essa imagem? Da manhã do dia seguinte, de um dia qualquer de Setembro do ano seguinte, de um dia qualquer alguns anos depois? O primo regressado da guerra. A sua imagem nítida: deitado numa cama de ferro, os olhos atados a um qualquer momento de sombra que o haveria de acompanhar para sempre, que ficaria para sempre agarrado aos seus olhos, às suas mãos, à sua pele, à sua memória, à sua vida. Margarida não conseguia dormir: o rumor das águas de lima, o rumor das águas da nascente da mina, o alarido das águas crescendo no quarto, as águas do futuro crescendo no interior do seu próprio corpo.
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É escuro ainda; um escuro atravessado pelo silêncio do vale. No escuro da noite, no escuro atravessado pelo silêncio do vale, Ana Ferreirinha levanta-se, veste-se, lava as mãos e a cara no lavatório de zinco. Depois senta-se no escano. Depois espera. Depois a luz começa a entrar em casa, a definir os contornos da masseira, da mesa de comer, da cama de dormir. Depois a luz começa a espalhar-se pelo chão de terra; depois sobe pelas paredes de pedra arrumada; depois um feixe de luz poisa nas suas mãos, entrando pela janela minúscula da parede do fundo, e traz de longe, descendo a Encosta da Mina, subindo pelo talvegue até Onde se Juntam os Rios, seguindo pela vereda da Encosta dos Matos, e depois pela Colina do Engenheiro (a que antigamente se chamava a Colina da Raia), e depois pelo caminho do Toural, e depois descendo de novo até entrar pela janela minúscula da parede do fundo: depois a luz traz de longe o aroma do alecrim. Só então o dia começa. Só então os dias começam verdadeiramente: quando um aroma forte, um aroma intenso, entra com a alba pela janela minúscula da parede do fundo; ou pelo intervalo entre duas telhas levantadas; ou pelas frinchas da porta: só então o dia começa. Porque só então, dentro de si, alguma coisa estremece, alguma coisa lhe diz que está viva, alguma coisa que chega de longe como se as águas subterrâneas se movessem de súbito e o mundo estremecesse numa exalação invisível do ar.
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Luísa aproxima-se da porta do quarto em bicos de pés e fica por algum tempo à escuta. Encosta o ouvido à madeira e procura o som metálico de uma mala que se feche, o rumor de uma folha de papel a deslizar na escrivaninha, a ondulação de um lençol a ser puxado para a cabeceira da cama, o barulho da água a correr no lavatório, o cicio de uns lábios a ler uma carta. Não ouve um ruído. É como se o senhor professor nem respirasse. É como se fosse um fantasma. É como se a manhã, de súbito, parasse no tempo e alguém chegasse e dissesse: aqui uma árvore, aqui uma pedra, aqui uma fonte. E só então o mundo pudesse começar.
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Pelo rectângulo da janela atravessada pelas grades (continua Maria Teresa) vê-se uma fita estreita de azul poisada nas telhas do edifício das Finanças. São dez e pouco da manhã. Não há uma nuvem de chuva ou neblina entre a terra e o céu. A camioneta da carreira segue a caminho do largo do Toural num rumor sobressaltado; não tarda que os gases e a poeira venham misturar-se à sombra húmida que desliza do pátio interior e depois se espalha pelo chão e pelas paredes da cela. Pelo rectângulo da janela atravessada por quatro ferros verticais vê-se por instantes a camioneta da carreira a passar em frente às Finanças. E depois uma nuvem de gases e poeira. Há vinte e seis meses exactos, subindo ao Alto da Ribeira, a patrulha da Guarda dá-lhes voz de prisão. Serapião Afonso e João Pequeno vêem-se de novo no posto da Guarda, de onde tinham saído ao fim da manhã. Mas agora a coisa fia mais fino: o doutor Magalhães aparece à entrada da porta acompanhado de Américo Matias; vêm com cara de caso. «Os senhores são acusados de assalto ao cofre da câmara municipal», dizia o cabo Mateus, «e há testemunhas idóneas. Aqui presentes, aliás». Que os viram a entrar no edifício pela banda do quelho, pela janela lateral que forçaram e retiraram do engonço; que estava era arrependido de os não ter encarcerado logo de manhã quando começaram a armar confusões no Toural com o Cardoso à mor da merda das vacas; que agora o que era preciso era repor o dinheirinho do cofre das receitas, e pronto.
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Ana Ferreirinha recorda esse dia em que pela primeira vez um aroma forte de erva-cidreira se ergueu dentro de casa; um odor intenso como se pudesse tocar-se, como se pesasse nas mãos abrindo-as em palma, como se poisasse no escano, como se poisasse na mesa, como se fosse ficar para sempre entranhado no chão de terra batida. Recorda esse dia em que pela primeira vez se sentiu a si mesma: como se as águas do mundo, subterrâneas, se movessem de súbito e o seu corpo estremecesse num invisível sobressalto. Nesse dia, nessa manhã de Novembro, noite ainda, com o escuro atravessado pelo silêncio do vale: quatro luas depois de lhe faltarem as regras. Nessa manhã de Novembro o aroma intenso da erva-cidreira encheu a casa; um perfume espesso que podia tocar-se com as mãos. E então adormeceu. E, nítida, no sonho, uma voz que saía do interior do seu corpo: «mãe». E no dia seguinte, nessa manhã de Novembro a seguir à outra manhã de Novembro, o aroma leve da murta encheu a casa e ela adormeceu. E, nítida, noite ainda, com o silêncio do mundo a rebentar numa nuvem de sombra, de súbito, uma voz que saía do interior do seu corpo: «mãe». Todos os dias, dia após dia, cedo de manhã, noite ainda, um perfume diferente e, em adormecendo, uma voz que saía do interior do seu corpo: «mãe». E depois: «mãe, o vento». Ou: «mãe, as águas frias». Ou: «mãe, o céu, o azul, uma árvore, a chuva». [Não se ria – diz-me Maria Teresa. Não se ria: que sabe você das coisas do mundo?] Pedro nasceu de cinco meses e nunca mais disse uma palavra. Pedro, o Louco. Ana Ferreirinha recorda: tinha acabado de esfregar o chão da varanda da casa do largo, estava quase a sair. Nisto vê o doutor Magalhães num alvoroço; vinha da Pensão Americana; subiu a escaleira exterior, aproximou-se numa corrida, agarrou-a por um braço, fechou-a no quarto, deitou-a na cama, despiu-a com fúria. Parecia que escaldava, que as mãos e os braços e as pernas tinham saído de dentro de um incêndio na floresta. Dois meses depois ganhou coragem, disse-lhe: «estou grávida de vossa excelência».
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Num clamor, a camioneta da carreira desce ainda o caminho dos Campos das Trindades: mas Margarida vê já o desconhecido a entrar na Pensão Americana, a dizer «muito bom dia», a poisar no chão encerado uma mala de carneira cheia de pó. Margarida sabe que dona Fernanda sabe que esse dia poderá ser diferente; que ela o pressente de um modo difuso. Como se tudo pudesse começar de novo. Como se alguém chegasse e dissesse: aqui uma árvore, aqui um muro alinhado, aqui o caminho do monte, aqui um tanque, aqui uma casa, aqui uma encosta de carvalhos, aqui um ribeiro e suas águas sesserigas, aqui uma pedra, aqui uma fonte. E só então o mundo começasse. E só então a luz do seu corpo não queimasse as mãos e o corpo de quem acredita ainda no amor e não teme acariciar essa pele, enfrentar essa luz poderosa.
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Dias seguidos, um depois do outro, olhando pela janela contra o edifício das Finanças, ou subindo ao lancil do pátio e olhando na direcção do que há-de ser a serra da Seixa, para além dos muros altos, Serapião não vê uma árvore. Não há uma árvore: um freixo, um amieiro, uma tília. O bolor, o poder da ruína, a água a escorrer do tecto, mesmo em Setembro, a meio da manhã, em não havendo uma nuvem de chuva ou neblina entre a terra e o céu. E João Pequeno? Não há notícia dele desde essa noite em que se mandou de cabeça pela janela do posto da Guarda, a meio do interrogatório, e desapareceu numa corrida trôpega por entre as macieiras e dois tiros nervosos disparados no escuro por um agente altivo que fizera com eles o exame da terceira classe.
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Arnaldo Adão, o Lindinho, ouviu o rumor sobressaltado da camioneta da carreira e vem à janela da repartição de Finanças. Do outro lado da rua, do outro lado de um rectângulo atravessado pelas grades, entre quatro ferros verticais, o rosto de Serapião Afonso recorta-se na penumbra húmida da cadeia civil. O Lindinho estremece: ninguém como ele conhece os segredos da Vila. Suspira e recolhe-se de novo aos livros, apura a caligrafia. O seu trabalho, que desenvolve com invulgar mérito, consiste em dar as entradas e as saídas de correspondência, classificando os documentos por assuntos e resumindo o teor numa letra cursiva que é já quase mítica. Os processos são poucos. Em alguns dias o movimento resume-se a um ofício assinado pelo chefe da repartição em tinta permanente. Ainda assim, aplicando-se sobre as páginas gigantes do livro de correspondência expedida, ligeiramente curvado e com o antebraço dobrado em ângulo recto no ressalto da estante, Arnaldo Adão concentra-se durante duas horas no seu mister até passar o mata-borrão sobre a última letra ou sinal gráfico e o Agenor se levantar da secretária e aprovar a obra-prima num lento e concentrado semicerrar das pálpebras.
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Ana Ferreirinha abre a cancela do pátio. As manas Custódias dormem ainda. Acomoda a fazenda; esfrega o soalho; limpa o pó dos móveis, das molduras com retratos a sépia, do serviço das índias, das jarras de cristal; prepara o café das meninas. Uma nuvem de gases e poeira levanta-se no ar da meia manhã de Setembro; as manas correm à varanda; a camioneta da carreira sobe vagarosamente a rua Cinco de Outubro como se chegasse de uma viagem à roda do mundo.
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O doutor Magalhães só então acaba por sentar-se na cadeirinha de lona, enfiar os pés no ligeiro odor a enxofre da água das Caldas Santas, deixar que o sol lhe percorra as pernas e os braços. Olha, franzindo o olhar: o desconhecido avança para a entrada da Pensão Americana; é magro como um espeto. Com a chegada da camioneta da carreira haverá sempre alguém que chega de longe e alguém que parte, alguém que regressa, alguém que acrescenta um nome aos nomes conhecidos, alguém que faz uma pergunta nova, alguém que repete uma pergunta, alguém que responde. Tudo começou há muitos anos: com a chegada do engenheiro das florestas. Um desconhecido, pela primeira vez, não estava de passagem.
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Nessa manhã, depois de coser um processo com fio do norte, antes ainda do rumor sobressaltado da carreira se anunciar a caminho do Toural, Arnaldo Adão, o Lindinho, segue o colega ao varandim das traseiras. «Olhe-me aquilo, Arnaldo». Dona Carmo estava sentada no alpendre de casa; a uma distância de trinta ou quarenta passos; com um livro nas mãos. Tinha a saia levantada acima dos joelhos e uma camisa leve quase decotada. Quando o Martins a trouxe do Porto e a passeou a seu lado pela primeira vez, numa noite de Junho, de braço dado, pensou-se que tinha enlouquecido. A Vila não estava preparada para uma puta que se expusesse em público. E Carmo não podia senão ser uma puta. Mas depressa se calou a boca do povo: Carminha fazia vida de casa; saía, quando muito, para ir à igreja e ao Comércio Central: vestidos escuros até aos pés, um véu de rendas, palavras quase só de cortesia. Alta, a cintura fina, os olhos fundos, a boca larga marcada por uma linha horizontal, os seios pequenos, as mãos muito brancas, os dedos esguios. «Você olhe-me aquilo, Arnaldo», dizia o Agenor. E via-se que passava a língua pelos lábios como se estivesse com sede.
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No dia dezassete de Novembro de mil oitocentos e oitenta e nove, pelo fim da manhã, os cães do Pai Ventura começaram a ladrar, correram pelo perímetro do pátio espumando pela boca, acabaram por saltar o portão de ferro, seguiram pela estrada do Noro, rumaram ao lameiro das Águas de Lima, enfiaram-se na Presa do Moinho Velho, desceram ao gralheiro, morreram afogados na correnteza gelada. O engenheiro das florestas, do outro lado da margem, nervoso, assustado, tinha puxado da pistola automática. Lúcio Raposo conta: «os olhos dos bichos parece que luziam. Ficaram por um cibo a espernear na correnteza; depois desapareceram. Ladravam sempre. Debaixo de água, e ladravam. Ainda prendi a arreata da mula à amoreira grande e intentei chegar-me a eles. Mas o engenheiro apontou-me o pistolo e parou-me logo: que justara um carregador, que andasse. Eu estremeci: aquilo os animais só podia ser ao engenheiro que ladrassem. Estive para o mandar à puta que o pariu; mas temi.» O Pai Ventura, numa corrida, chegou à Curva da Amoreira Grande, olhou a corrente das águas. Durante muito tempo ouviria os cães a ladrar: o seu eco, talvez; o som a perder-se e a multiplicar-se na abóbada do vale; a embater na Pedra da Seixa; a regressar à curva do Noro; a perder-se depois na Encosta dos Matos; a regressar ainda, de novo, à linha sinuosa do talvegue. «O Pai Ventura estava como louco. Atravessou a ribeira, chegou encharcado à beira de nós, ficou a olhar-nos demorosamente. A olhar-nos, lembro-me; a olhar sobretudo o engenheiro e a perguntar quem era o cara de caralho que lhe punha assim os cães. Até que voltou à margem, correu ao jusante, passou a tarde à procura dos bichos: no remanso de Onde se Juntam os Rios, na Presa das Tílias, no Voluntário. No dia seguinte ouvia-se ainda o raio dos cães, ladravam ainda, o Pai Ventura quase enlouquecia, tapava as orelhas com ambas as mãos, durante uma semana não podia a gente sair à rua que os não ouvisse, ao correr das margens da ribeira do Fontão, da Pedra da Seixa à Curva do Noro, da Curva do Noro à Encosta dos Matos, do Alto do Barco de Pedra ao caminho dos Campos das Trindades. Diz-se que o Pai Ventura os ouviu durante muitos meses, todos os dias, como se os bichos estivessem ainda à espera que alguém os retirasse das águas ou como se houvesse ainda alguma coisa que era preciso cumprir.»
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O Lindinho tinha fama de maricas. Passava o tempo a ler romances ou a ajudar as senhoras em tarefas femininas: arranjos de flores secas, decorações de natal, centros de mesa, papéis recortados, vidrinhos de terra, pintura em cerâmica, ovos de páscoa, fustes coloridos, redacção de convites com volutas desenhadas a tinta-da-china, escolha de tecidos para cortinados, conseguir um ponto de caramelo, preparar um bouquet garni ou um clafouti de maçã reineta. O Agenor, por sua vez, espumava da boca, em público, a olhar um tornozelo. E quase todas as segundas-feiras, logo de manhã, chamando o Lindinho ao varandim das traseiras do edifício das Finanças, puxando de um cigarro, contava-lhe pormenores das aventuras de sábado à noite na casa da Rute. «Gostava de o levar lá uma destas vezes, Arnaldo. Aos sábados, menino, como é que lhe hei-de explicar? Mas você. Olhe que aquilo não morde.» E então olhavam na direcção da casa de Carminha, dona Carmo. À distância de trinta a quarenta passos, parcialmente encoberta pela ramagem de uma nogueira, adivinham-se-lhe as pernas até um pouco acima dos joelhos, o pescoço descoberto. Damásio Martins não vem há uns três anos à Vila. «Eu queria lá saber dos Estados Unidos do Brasil e da árvore das patacas. É como lhe digo: há gente que não sabe dar valor ao que tem.»
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O engenheiro foi o primeiro hóspede da Pensão Americana, da velha casa de pasto do Mendes, estávamos em mil oitocentos e oitenta e nove, Fernanda era ainda uma criança, teria quê? dezasseis anos. Os cães ladravam sempre à sua passagem. Até àquela noite de Novembro, um ano depois de ter chegado. Encontraram-no morto, suspenso de uma corda no carvalho da Colina da Raia. Essa a que agora chamam a Colina do Engenheiro. Enforcado. Diz-se que tinha os olhos queimados: a pele arroxeada, escamada, fendida, como se um incêndio houvesse lavrado a noite toda no interior do seu corpo. Será verdade que o Pai Ventura o queimou, devagar, com um archote aceso na noite escura de Novembro, e que ele mesmo o dependurou da corda carral?
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Dona Carmo. Carminha. Arnaldo Adão, o Lindinho, lembra-se de subir a avenida de Sangunhedo numa corrida; a puxar as golas do sobretudo contra a chuva imprevista. Era uma manhã de domingo; prometera ajudá-la na preparação do jantar dessa noite: nos arranjos de mesa, nos ambientes de luz, nos canapés, nas tartes de noz. «Bem vê, Arnaldo. É a primeira vez que o comité das senhoras reúne em minha casa; não gostaria de desmerecer.» A chuva imprevista, uma bátega de primavera indecisa. Chegou a escorrer água. «Meu Deus, tem que despir já essa roupa, secar-se.» Arnaldo não dizia uma palavra. Não movia um músculo. Carminha aproximou-se. Tirou-lhe o sobretudo encharcado, a camisola molhada. Um perfume leve inebriava-o. Um perfume estranhamente familiar desprendia-se daqueles pulsos muito finos, das suas veias azuis. Ficaram ambos parados. Olhavam-se como quem procura desprender-se de uma mágoa antiga. Carminha estendeu a mão esquerda, mordeu o lábio inferior, tocou-lhe na face muito devagar. Um dilúvio. O barulho da água no telhado, a adivinhar-se contra os vidros das janelas para além dos cortinados corridos, na Ribeira do Fontão, na Encosta dos Matos. Um diante do outro. O vestido de Carminha a cair a seus pés. Lá fora um dilúvio. Ela pegou-lhe na mão, levou-o para o quarto, entraram no quarto, na penumbra do quarto, a chuva puxada pelo vento da barra. Como se tivesse que ser. Como se estivesse escrito nas folhas dos negrilhos. O seu corpo nu a desprender um perfume leve, um perfume estranhamente familiar. O mesmo perfume da Joaninha Custódio, da roupa interior da Joaninha Custódio, recordou-se finalmente Arnaldo Adão, o Lindinho, distraído por instantes, antes de acabar de se despir e se deitar a seu lado.
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Este sol da meia manhã de fins de Setembro é um bálsamo. O doutor Magalhães olha o largo quase deserto. A camioneta da carreira partiu finalmente, Lalice regressa à oficina dos toscos, Luísa atravessa o largo a caminho da Pensão Americana, a saia quase à altura dos joelhos, um decote furqueiro, o cabelo apanhado num pregador colorido. «Há-de vir do Matias, de comprar louça fina para o cara de cu comer um escabeche.» Tudo começou, há já muitos anos, com a chegada do engenheiro das florestas. Foi preciso que morresse para que o Pai Ventura e a Vila regressassem à paz antiga e deixasse de se ouvir o ladrar dos cães engolidos na corrente invernosa da Ribeira do Fontão. E tudo regressasse, por algum tempo, à ordem natural das coisas.
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Quando a manhã avança para o meio dia (conta Maria Teresa e eu acrescento um ponto), e a camioneta da carreira leva enfim atrás de si o tisne e a fuligem, e a luz regressa às folhas recortadas da sempre-noiva, e os gatos da Emília se estiram na pedra do jardim dos Correios, Lalice fica por algum tempo na pedra da entrada do armazém de mobílias a olhar os campos da veiga e a Encosta dos Matos, o polígono apertado da Vila e o céu muito baixo, mesmo quando o céu de Setembro se ergue leve e azul a uma distância sem medida, as ruas apertadas e sujas com galinhas a debicar na terra fresca da base dos muros, homens sem rumo com varas de aguilhada no ombro direito ou de chapéu rodado nas mãos a sair do edifício das Finanças ou da secretaria da Câmara, e sente que nenhuma razão o impele a mover os músculos, a erguer-se da cama cedo de manhã, a deitar-se, a gritar ou a correr pelos campos lavrados das Trindades. É certo que o armazém dista escassos quarenta metros da Pensão Americana e que a vê todos os dias, a ela, Fernanda, chegando-se à rua ou atrás dos vidros da janela grande a compor o cortinado, e que quase sempre almoça junto dela, e às vezes janta, e às vezes partilha o serão, e que é com Fernanda que faz amor quando se deita em casa da Rute numa esteira muito suja ou com uma puta desconhecida do Caneiro, e que tantas vezes ficam por algum tempo sentados à mesa a discutir os episódios do último romance francês da biblioteca de Carlos, o Alferes, que ambos lêem, um depois do outro, e que os aproxima no segredo de uma história feliz ou de uma traição, como se uma história feliz ou a traição das páginas de um livro fossem parte de uma outra história que poderiam ter vivido juntos. Mas não é a mesma coisa. Lalice perdeu a ilusão de que tudo poderia ser diferente, de que tudo poderia começar de novo: antes da chegada da camioneta da carreira, antes da tempestade. Já nada poderia ser a mesma coisa depois dessa noite de há muitos anos em que topou com o engenheiro das florestas na cama de Fernanda, e o obrigou a sair da Pensão e a subir à Colina da Raia, e o suspendeu de uma corda carral, e o queimou com um archote aceso até o seu rosto ficar irreconhecível.
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Capítulo VII
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(Onde Maria Teresa repete os seus argumentos sobre a impossibilidade da narrativa)
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Maria Teresa fala desse dia mágico em que a camioneta da carreira chegou à Vila. Não conta a história de Aline; não conta a sua própria história. Ao longo da narração, nas suas imensas pausas, repetidas vezes insiste que uma história não tem princípio nem fim; que a história de uma única pessoa é já a história do mundo; porque uma única pessoa é já o mundo todo. «Penso ter-lhe falado da impossibilidade da narrativa», diz mais uma vez. É uma tarde de Verão; estamos sentados no terraço duma casa da Aldeia. E, de súbito, Maria Teresa levanta-se, caminha vagarosamente até à guarda de madeira, fica por instantes em silêncio, aponta um lugar indefinido na encosta do outro lado do rio, olha-me de novo; pergunta: «Sabe que estradão é aquele?» Também eu me levanto; também eu caminho até à guarda de madeira; também eu olho a encosta do outro lado do rio. «Aquele é o antigo estradão que ligava à Vila. Foi por ali», continua Maria Teresa, «numa madrugada de Julho de mil novecentos e dezanove, ainda escuro, que João Pequeno chegou à Aldeia, fugido do Posto da Guarda. Atravessou o rio nas poldras e rumou a esta mesma casa. Abriu a cancela do pátio, subiu a escaleira que vem dar ao terraço e bateu a esta janela. Uma história, como vê, não acaba nunca; pode sempre recomeçar. Quer que lhe fale de João Pequeno? Ou os fragmentos do diário do engenheiro das florestas, que Fernanda acabou por oferecer ao professor, continuam a suscitar-lhe curiosidade? Quer acabar a história neste preciso momento? Você é o autor do folhetim; você é que sabe.»
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Capítulo VIII
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(Onde se transcrevem fragmentos do diário do engenheiro das florestas)
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O caminho de terra corria por vales sinuosos, subindo à meia encosta a desviar-se do declive das vertentes a pique sobre o rio Tâmega, descendo de novo, subindo depois à cumeada no Alto de Pinho. Parámos e fiquei por algum tempo a olhar os montes arredondados que se sucediam na distância. Estava fascinado. Distingui o carvalho alvarinho do carvalho negral, a madressilva do escalheiro, a urze do tojo, o medronheiro da aveleira. Uma luminosidade leve desenhava os contornos da serra, delimitava os volumes dos maciços arbóreos, deixava ver ao longe um bosque de vidoeiros, espalhava as sombras dos freixos numa zona aplanada onde se pressentia o remanso de um rio e depois uma vertente cortada a direito a encaixar de novo as suas águas. Sorri. Criar uma paisagem é como participar da criação do mundo. E imaginava já o pinheiro bravo a erguer-se de uma a outra encosta, a descer aos talvegues, a subir às linhas de festo, e o arando a dar lugar às feteiras, a gilbardeira ou a salsaparrilha a serem vagarosamente substituídas pelas giestas e os silvados. Montei de novo e dei ordem de partida.
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O carregador, um ignorante boçal, ajeitou as malas em cima da mula, disse que faltava ainda uma légua bem medida até chegarmos à Vila e perguntou que coisa via eu que me fizesse sorrir, sendo certo que, olhando dali, do Alto de Pinho, para o nascente e o poente, para o norte e o sul, não se vislumbravam mais que «carreiros fodidos de andar e calhaus de pedra». Não lhe respondi que o que via era o progresso. Calei-me. E seguimos, portanto, pelo caminho de terra batida, agora quase sempre a descer até chegarmos à entrada da Vila. E foi então que uns cães raivosos apareceram a correr como desalmados pelas margens do rio. O carregador estava nervoso; pediu-me que desmontasse e prendeu as arreatas das mulas a uma amoreira fazendo tenção de se aproximar dos cães. Mas eu já não tinha paciência para o espectáculo e ordenei-lhe que regressasse. Chegámos à Vila por volta do meio-dia. E nunca mais poderei esquecer o cheiro a merda que se misturava no ar daquela manhã do dia dezassete de Novembro de mil oitocentos e oitenta e nove.
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O fim do mundo só pode ser um lugar assim, perdido entre a tempestade do Inverno e a poeira dos meses de Verão. Há qualquer coisa de irreal nestas ruas, nestas pedras arrumadas a fazer de casas, nestas crianças muito sujas a correr descalças nos taludes das barreiras de saibro. E no entanto as pessoas olham-me como se eu é que fosse o elemento estranho, como se houvesse uma ordem que eu pudesse pôr em causa só de respirar ou mover os braços. Luís Raposo, o carregador que tinha justado em Vidago, seguia muito direito, não obstante o cansaço, quase orgulhoso de me trazer como um troféu a este lugar perdido e fora do mundo. E garantia-me que haveria de «ajeitar um lugar asseado, senhor engenheiro». Levou-me ao cimo da Vila e entrámos numa taberna escura. O ar era quase irrespirável e o cheiro da merda ia-se diluindo numa atmosfera de ranço e vinagre. Acomodaram-me num quarto: um espaço exíguo, sem um único vão a cortar a parede de taipa: duas velas de sebo, o lavatório de zinco, uma pequena cómoda de castanho sem adornos.
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Passei a tarde a correr as veredas da serra. Havia vento. Um vento frio a que chamavam da barra e que anunciava chuva. Cheguei a um lugar onde os salgueiros se erguiam na margem dum rio. E fiquei assim, fascinado, a olhar a encosta do outro lado, as suas sombras, os seus brilhos breves quando uma nuvem deixava por instantes que o sol iluminasse os montes. Nessa altura, nessa primeira tarde, não conhecia ainda os nomes dos lugares. Mas soube depois que estava na margem direita do rio Terva, junto ao moinho do Pardo, e que essas águas desciam da presa e avançavam depois num troço quase a direito até Onde se Juntam os Rios. A jusante, depois do gralheiro do Pontilhão e da presa das Tílias, as águas, essas mesmas águas, seguiam por um vale encaixado, deixando pelo poente o Alto do Tabulhão e as Pedras do Carvalhal, e pelo nascente a colina do Formigueiro. Abaixo de Torneiros, quando o estradão de Fiães atravessa o corgo do Pereirinho, parei por instantes, exausto. E depois desci até à Paredela e segui de novo até onde o pequeno ribeiro do Seixo desagua na margem esquerda. Fiquei assim, parado, mudo, rendido: a olhar essas águas iluminadas pela sombra leve de Novembro: até sentir que não havia luz nem sombra, nem tempo nem movimento, e que essas águas é como se tivessem acabado de nascer do fundo da terra.
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Eu vinha da serra da Seixa a caminho do Padrão quando começou a chover. O dia estava cinzento e o vento da barra anunciava a chuva que acabou por chegar assim, abatendo-se de súbito num manto único de cumeada a cumeada. A noite aproximava-se. E no entanto era como se uma rede muito fina deixasse ver ao longe, translúcidas, as árvores das encostas e as primeiras casas da Vila. E, ao longe, quase noite, uma misteriosa luz parecia envolver as árvores da encosta e as primeiras casas da Vila. Tudo começou nesse momento: essa sensação estranha que haveria de acompanhar-me ao longo dos meses: essa sensação estranha de pressentir que pouco separa o milagre e o lodo, a ruína e a exaltação. Chovia. Era quase noite. A água gelava-me o corpo. Meti-me ao caminho de regresso e cheguei à taberna completamente encharcado. O Mendes estava atrás do balcão, a arrumar uma estante, e olhou-me como se olhasse um fantasma, uma dessas almas penadas tão frequentes nos relatos que haveria de escutar ao serão ao longo dos meses. Que estavam preocupados, que «nem imagina, senhor engenheiro», que temiam já que tivesse desaparecido numa ravina da serra. Subi ao quarto. Acendi uma vela. Despi-me, sequei-me, fiquei algum tempo deitado na cama a ouvir o barulho da chuva nos telhados e nas coberturas de latão dos anexos. Fechei os olhos e imaginei a água a cair sobre o carvalho grande da Colina da Raia, a escorrer dos troncos brancos dos vidoeiros, a engrossar o caudal do corgo do Pereirinho, a lavar a sujidade das ruas, a erguer uma cortina contra as desordens do mundo. Percorria-me uma confusa felicidade. Como se visse a chuva pela primeira vez e a chuva caísse pela primeira vez nos telhados e nas coberturas de latão dos anexos. Sentia-me feliz. E devo ter adormecido. Porque ouvia o ruído distante duma pancada que se repetia a espaços e só então percebi que batiam à porta.
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Fernanda tinha quê? quinze, dezasseis anos. Levantei-me, abri a porta do quarto e vi-a pela primeira vez. Estava escuro. A luz da vela iluminava apenas uma parte do seu rosto, uma parte do seu corpo. Pareceu-me uma criança assustada. Vinha chamar-me para a ceia. «Que estava na hora, senhor engenheiro.» Desci. Na sala separada da taberna por uma cortina havia três pequenas mesas quadradas e, ao fundo, uma mesa comprida, estreita, de castanho, duma única tábua. O Mendes sentou-se a meu lado, «se eu não me importava que ceássemos juntos». Continuava a chover. Chovia sempre. A água batia nos vidros da janela, ouvia-se o barulho da chuva a cair no telhado e nas coberturas de latão dos anexos. Estava frio, desconfortável; o Mendes esfregava as mãos; gritou para dentro: «então, a comida?» Levantou-se; acompanhei-o. Passámos a cortina e a porta por detrás do balcão da taberna e entrámos numa divisão interior. A lareira acesa: o lume dos torgos de ervideiro, as brasas dum vermelho incandescente. Fernanda, de roda do pote, tirava os grelos com uma escumadeira, colocava-os cuidadosamente numa travessa ao lado da carne cozida. Olhei em redor: as paredes e as telhas da cozinha muito escuras de fuligem, as malgas e os pratos alinhados num louceiro, a masseira, o tendal. E, arrumado a um canto, encostado à lareira, uma espécie de banco corrido e uma tábua suspensa na vertical agarrando-se à base por dois prumos: um escano. Nunca tinha visto um escano. Nunca tinha estado num lugar assim, à lareira, o lume dos torgos de ervideiro, as brasas dum vermelho incandescente. Perguntei ao Mendes se não podíamos cear ali. «Que sim.» Sentámo-nos e rodámos sobre a cabeça a tábua suspensa por dois prumos até que ficou assente nos paus laterais, a fazer de mesa. Fernanda servia-nos. Comemos carne de porco cozida, da banda, e grelos untados com a gordura da carne. Lá fora continuava a chover; chovia sempre. Ouvia-se o barulho da chuva a bater nos vidros da janela, a cair no telhado e nas coberturas de latão dos anexos. O lume dos torgos de ervideiro; as brasas dum vermelho incandescente. Sentados no escano; à lareira. Como se as coisas começassem a ser inventadas. Como se o mundo estivesse a começar. Como se alguém dissesse: aqui a água, aqui o fogo. O odor dos grelos e da carne cozida; o pão de centeio; o vinho palhete; o lume dos torgos de ervideiro; as brasas dum vermelho incandescente. Lá fora continuava a chover. E era como se o mundo estivesse a nascer; como se algumas coisas ainda nem tivessem nome.
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Os dias sucediam-se entre o fascínio das deambulações pela serra, o abrigo dos serões à lareira e uma hostilidade quase generalizada. A sala contígua à taberna passou a ser o meu escritório. Revia os levantamentos topográficos, confirmava os carreiros da exígua rede de caminhos de cabras, escrevia memorandos para Lisboa. O planeamento dos trabalhos confrontava-se com o problema da distância e do isolamento, com as dificuldades de comunicação, com a aquisição de equipamento, com a gestão das plantas de viveiro e das sementes de penisco. Mas cedo compreendi que a grande questão haveria de ser outra: como recrutar trabalhadores e encarregados? O que parecia fácil, em vista da miséria desta gente que vivia como bichos, era afinal o maior obstáculo. Havia a desconfiança no desconhecido, claro: em mim e neste processo de transformação da paisagem que eu lhes garantia ser a base de um futuro digno, recompensador. Isso, essa desconfiança, era visível desde o início. Pensei que seria uma questão de tempo até que esmorecesse. E no entanto acentuava-se à medida que se ia compreendendo o verdadeiro alcance da minha missão. Porque a floresta pertencia a todos: e isso exigia a minha própria compreensão das coisas do mundo. A floresta estava em todas as coisas; em todas as coisas de todos os dias: nas portas e nas janelas das casas, nos bancos e nas mesas, nos caibros, nos armários, na masseira, no tendal, no calçado, na lenha da lareira, no arado, na forquilha, no engaço, na gadanha, no cabo da enxada, nos matos, nas pastagens, nas gamelas, na comida, nas colmeias, no berço, na cama, no caixão, nos ladranhos dos carros de bois, nas rodas dos carros, nos estadulhos, nas chedas, nos eixos, nas travessas, nos lareiros das cozinhas, na vara de aguilhada, na prensa do lagar, nas aduelas, nos cântaros de almude, nos cestos, nos rosários, no andor de Nossa Senhora. Eu dividia-me. Este era o mundo que um plano feito em Lisboa ameaçava ruir.
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Era como se o Inverno deixasse a Vila entregue aos seus fantasmas. As pessoas quase não saíam à rua e havia uma sombra que delimitava o mundo conhecido: das cumeadas da Serra da Seixa à Raposeira, do Alto do Barco de Pedra à Colina da Raia. O mundo, subindo a Encosta dos Matos a caminho do Voluntário, parecia terminar nessas fragas erguidas contra a linha do horizonte como se mais nada existisse na imensidão da terra e do céu; como se a partir daí tudo fosse silêncio e vertigem. Os dias de chuva sucediam-se. É impossível esquecer esse rumor de fundo da água a bater nos telhados das casas e a correr nas bermas dos estradões. A noção de tempo, de passagem do tempo, começava a perder-se e a misturar as coisas do passado e do presente, do presente e do futuro. A chuva caiu durante meses seguidos, ou durante semanas seguidas, não sei. Mas um dia, de forma imprevista, o céu amanheceu sem uma única nuvem, claro e azul. Saí à rua; desci o caminho do largo do Toural, passei a curva do Noro, cheguei ao muro de pedra de Onde se Juntam os Rios, continuei na margem direita do gralheiro ao longo do Terva, cheguei finalmente ao açude da Presa das Tílias. E aí fiquei, rendido ao milagre do mundo que começava a nascer, a olhar a névoa a levantar-se da terra ainda molhada, a ouvir os pássaros que tinham regressado aos ramos das árvores, a ver a luz poisada nos caules das ervas e o brilho da água a correr no remanso a jusante da presa por entre os seixos rolados do fundo. E foi então que a vi. Ela estava na outra margem, protegida de quase todos os lados por uns arbustos de arando, nua, deitada sobre a própria roupa que estendera no chão. Os seios erguidos, as pernas ligeiramente flectidas, a mão direita poisada no sexo. Quase não se movia. Os olhos fechados, a cabeça inclinada para trás, o sol a iluminar o seu corpo como se mais nada à face da terra pudesse reflectir essa luz vigorosa. A aparição de um corpo nu deixou-me interdito. Habituado à sombra e aos modos rudes das pessoas, tendo ainda presente na memória o cheiro a merda que se misturava no ar daquela manhã em que cheguei à Vila, habituado à lama e à sujidade das ruas, a ideia de um corpo nu, belo, perfeito, rendido ao desejo, era quase inverosímil. Ela estava deitada e tocava o sexo com a mão direita, vagarosamente, movendo-se em gestos quase imperceptíveis, inclinando a cabeça para um dos lados, distendendo os músculos atados ainda à sombra espessa do Inverno que parecia ter terminado naquele preciso instante para que o mundo pudesse começar de novo. Fiquei durante algum tempo a olhá-la, escondido por detrás de um amieiro que subia contra o céu desde as suas raízes enterradas no leito do rio, excitado, interdito, suspenso dos seus mínimos gestos e da sua respiração que começava a ser descompassada. Fiquei a olhá-la; a olhá-la até ouvi-la gritar; a olhá-la até que foi regressando de novo a si mesma, até que se levantou e ergueu o corpo nu em todo o esplendor do desejo, até que se vestiu e seguiu pelo carreiro que leva à Encosta dos Matos. Esse mesmo carreiro que haveria de passar pela Colina da Raia, descendo depois ao Padrão, regressando enfim à curva do Noro e à entrada da Vila.
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O frio do Inverno parecia aguardar que a chuva deixasse a abóbada do vale. Os dias eram claros e azuis, e as noites desenhavam no céu todas as estrelas do mundo. Ao fim da manhã, durante o início da tarde, o sol chegava a ser agradável. Mas logo depois, antes ainda do crepúsculo, o frio era difícil de suportar e as crianças iam abandonando as ruas. A sala contígua à taberna passou a ser o meu escritório. Aí comecei a receber as primeiras pessoas. Não obstante a hostilidade com que continuavam a olhar-me, sem intimidades nem um sorriso, começavam a aproximar-se, a saber das condições de trabalho. A escassez empurrava-os para a inevitabilidade de participação num processo que temiam acabar por voltar-se contra eles mesmos. Falavam pouco, escutavam o que era de ouvir, não chegavam a sentar-se. E foi então que ele apareceu. Fernando era um jovem de não mais que vinte ou vinte e um anos. Tínhamos falado algumas vezes. Sentava-se a meu lado; olhava com curiosidade as cartas topográficas; fazia perguntas. Pois nessa tarde atravessou a cortina que separava a taberna da sala contígua e, numa voz decidida, como se as suas palavras revertessem de muita reflexão e fundadas certezas, atirou-me de chofre: «o senhor engenheiro está a olhar para o seu futuro encarregado geral.» Nunca ninguém me tinha falado assim; num tom que não admitia réplica; olhando-me de cima, olhos nos olhos. E, ainda não refeito da surpresa, intuí de imediato que acabava de ganhar um aliado e que se iniciava uma decisiva fase do processo. Os homens, de facto, começaram a aparecer em catadupa, a inscrever os seus nomes, e depois a pedir um lugar para as suas mulheres e os seus filhos. Confiavam nele; na sua voz decidida; nos seus argumentos a favor do progresso; no modo como descrevia um mundo novo, sem miséria, sem crianças descalças a correr nos muros do cadastro ou nos taludes de saibro dos caminhos.
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O tempo corria de forma indefinida, em intervalos, ora voraz ora lento, descontínuo, como se não houvesse um fio que o fosse estendendo, hora após hora, dia após dia, na direcção do futuro; como se uma parte do tempo ficasse agarrado às raízes dos negrilhos, às candeias amarelas dos castanheiros jovens, às sombras densas do carvalho-negral, às paredes escalavradas das casas. Fernando comandava as operações de terreno: rasgaram-se estradões, desmataram-se encostas, abriram-se covas e valas, plantaram-se pequenos talhões de teste, semeava-se o penisco por áreas cada vez mais vastas. Os trabalhos, no entanto, decorriam com menos normalidade que sobressalto. Uma tensão ainda sem nome ia crescendo à medida que aumentava a área intervencionada. Algumas famílias fizeram frente ao avanço das plantações; a polícia foi obrigada a intervir. Eu mesmo começava a dividir-me; a vacilar. Nos baldios por baixo do Voluntário, na encosta aplanada, eu hesitava entre cumprir o plano de desmatação e deixar incólumes as zonas de pasto onde o carvalho-negral se erguia nas bordaduras ou em moitas densas.
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E é então que Fernando me propõe um jantar em casa de Américo Fontes. Américo é a principal voz da contestação. Foi ele, Américo, quem juntou uma dezena de homens e obrigou à intervenção policial: não aceitava o avanço das plantações na encosta por baixo do Voluntário, nas pastagens que o carvalho-negral pontuava em pequenos maciços e nas bordaduras junto aos muros antigos erguidos com pedras irregulares de granito. Fernando considerava fundamental trazer Américo para o nosso lado; que era preciso «estratégia». Américo admitira receber-me; não apenas receber-me: fazia questão de que «o senhor engenheiro aceitasse cear com os pobres». Era no Verão. Tinham passado os meses de chuva, de geada, de vento, da neve a descer dos montes, a ficar poisada nos muros da Vila, a misturar-se na lama das ruas, a mudar a paisagem como num milagre sem nome. Os pessegueiros floriram e os frutos desenhavam-se nos seus ramos; as folhas dos freixos e dos vidoeiros entravam por dentro das tardes com o seu verde quase exuberante; a Veiga mudava de cor e uma estranha geometria impunha as suas formas como num mapa de fronteiras desenhadas a régua e esquadro. Ao fundo, nos montes, dos festos aos talvegues, desmatavam-se as encostas para que o futuro pudesse reconhecer o perfil dos pinheiros bravos e o odor da resina.
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Fomos jantar a casa de Américo Fontes. A casa ficava na parte superior de uma vinha virada ao nascente descendo em suaves declives para as margens da ribeira do Fontão. Chegámos ao pátio e fiquei a olhar, ausente, as linhas dos arames iluminados pelo sol do fim de tarde. Um bosque de carvalhos, do outro lado da encosta, deixava as copas vigorosas das suas árvores a reflectir o dia caminhando para o demorado crepúsculo de Julho. Um rumor contínuo: o das águas da ribeira a correr vagarosamente nas pedras das poldras. E a luz, ainda: da urze, do rosmaninho, do tojo, do arando. O mundo está sempre a nascer: rendia-me às suas declivosas encostas, ao curso das suas águas, aos arbustos que desciam das cumeadas ganhando cor, do vermelho ao azul, nas suas flores minúsculas.
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Esperava ser recebido com animosidade. (Talvez não: os modos deste povo já não me eram estranhos.) Américo Fontes tinha começado por nos levar ao fundo do pátio: «gostava que vissem a vinha antes de bebermos do seu vinho.» Seguimos depois a um telheiro onde nos sentámos a aproveitar a leve aragem do crepúsculo. Eu não sabia como encetar a conversa; Américo falava de tudo menos de pinheiros e plantações. Falava do vinho: das uvas colhidas em Outubro, do modo como eram pisadas no lagar de pedra, da trasfega, do engarrafamento num dia de Março ou Abril em que não houvesse uma nuvem no céu, do chão de terra da adega onde as garrafas eram enterradas para que o Verão, o mês de Julho, um fim de tarde como este, a leve aragem do crepúsculo, permitissem desenterrá-las e trazer esse ligeiro gasoso, esse breve rumor das bolhas de gás a rebentar ao contacto com o ar, e depois se descobrissem na boca os sabores misturados da luz e da água, do calor e do vento fazendo ondular durante a noite os arames das vinhas. Falava do presunto: do modo como, cevado o porco com a lavadura aquecida nos pátios, morto e desmanchado, tinha ficado a defumar, primeiro a um lume vivo de giestas, guiços, lenha miúda, depois a um lume vagaroso de brasas de carvalho, até que se retirava dos lareiros da cozinha e se pendurava na adega, suspenso das traves de madeira, protegido do terror da varejeira por uma rede de serapilheira fina. Falava dos cabritos: criados nos pastos «por baixo do Voluntário, senhor engenheiro, como saberá», do cabrito que haveríamos ainda nessa noite de comer, assado em tabuleiros num forno em «lenha de carvalho, claro». A noite passou a correr. Américo não falou uma única vez de pinheiros e plantações. E à saída, quase sem dar por isso, ao despedir-me num agradecimento confuso, prometi que as pastagens seriam preservadas do avanço das plantações e semeaduras. «Que estivesse descansado.» Fernando achou «que a noite tinha corrido bem». Não sei. Eu continuava ausente. E não me saía da cabeça a imagem da filha de Américo Fontes: Leonor. Os seus olhos, as suas mãos, o seu rosto. Não me saía da cabeça a imagem de Leonor; sentada a meu lado; a levantar-se para ajudar a mãe, diligente, a trazer mais vinho, cabrito, batatas assadas num forno em brasas de carvalho. Leonor: nunca mais a vira desde esse dia distante na Presa das Tílias, na margem esquerda do Terva, deitada, nua, protegida na tarde de Primavera indecisa por um maciço de arbustos de arando.
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O que é o amor, o que é o desejo? Não há outros mistérios no mundo. Eu tinha visto Leonor uma única vez; quase logo a esquecera. Porque a aparição desse corpo a iluminar uma tarde de Primavera indecisa, deitado, nu, a confundir os seus contornos no desenho dos arbustos de arando, revertia da ideia de milagre; de impossibilidade. Mas ela, ao jantar, sentou-se a meu lado. Eu vi as suas mãos concretas a poisar na mesa os tabuleiros do forno; vi o seu riso e, a espaços, uma espécie de mágoa que parecia vir de longe; senti o ar movendo-se entre nós, tocando-nos, misturado ao seu odor, quando se levantava ou se sentava. O que é o amor, o que é o desejo? Nunca sabemos. Eu tinha apenas a certeza de que a imagem de Leonor ficaria agarrada à minha pele, como uma cicatriz funda, para sempre.
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Primeiro foi a chuva, e depois o vento, e depois a geada, e depois a neve e esse silêncio que, em vindo a noite, parecia ficar agarrado às estrelas por fios invisíveis. E depois a Primavera, com o colorido das encostas e a neblina, manhã cedo, a erguer-se vagarosamente dos vales. E depois o Verão. E já quase o Outono. Os dias revertiam desse calendário feito de luz e sombra, gelo, vento, calor e penumbra, chuva, claridade, névoa. Tudo arrumado: o gelo, a chuva, o vento; a névoa, a claridade; a luz, o calor; a sombra, a penumbra. Vive-se em função desse calendário meteorológico: as pausas e a vertigem, o arado, os enxertos (o garfo e o cavalo), o centeio estendido nas eiras, o aricar e o tender, o escafular, o uso da tarandeira, os merouços de palha. Alguma coisa mistura os frutos e os homens, as mulheres e as folhas e as raízes das árvores, as crianças e a cor dos matos das vertentes; até não haver nada que separe um caule e um gesto. É tarde. Tarde da noite. Revejo as memórias descritivas, as plantas à escala 1:2500, os levantamentos topográficos, os esquemas de plantação; e compreendo que algo separa irremediavelmente os meus planos e a realidade tangível.
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É tarde da noite; entro no quarto; deito-me; custa-me adormecer; sinto-me perdido no mundo. E penso que só me faltava isto: Leonor; os seus olhos fundos; o modo como anda sem quase tocar as tijoleiras dos pátios, o saibro dos caminhos.
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Sentia-me confuso. Sinto-me perdido à medida que o tempo avança e aumenta o fascínio por um lugar que tarda em pertencer-me. Há uma contiguidade dos homens, dos seus gestos, das suas memórias, com a terra onde nasceram e ergueram as árvores, lavraram os campos ou abriram valas de rega. Há um fio que liga o coração e as raízes dos negrilhos. Eu vinha de fora. E, aos poucos, imaginei poder vir a fazer parte desta geografia. Eu vinha de fora com a missão de criar uma paisagem. O mundo acaba por pertencer-nos quando uma espiga nos entrega, múltiplo, o primeiro grão que semeámos. Imaginava as encostas desenhadas pelos meus cadernos de campo e pelos planos de plantação. Imaginava um território a que começaria a pertencer à medida que esse mesmo território, devolvido por um espelho de palavras, me fosse pertencendo. Mas cedo compreendi a extensão do logro. A paisagem é sempre a consequência do modo como os canais construídos regulam a circulação das águas da chuva ou de nascente; dessa relação antiga entre o lugar e a mão. Como se alguém dissesse: aqui um rio, aqui uma árvore. E só então o mundo fizesse sentido.
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Encontrei Leonor várias vezes depois dessa noite. Um segredo juntáva-nos e delimitava um território que nos separava do mundo. Escrevo estas notas no dia dezassete de Novembro de mil oitocentos e noventa. Cheguei à Vila (parece mentira) exactamente há um ano. Tudo, entretanto, mudou. A minha vida mudou. O mundo mudou, como muda sempre, à medida que as nossas vidas mudam e as mudanças das nossas vidas mudam o mundo em que vivemos. O Inverno trouxe a chuva, de novo, e o barulho da chuva caindo nos telhados e nas coberturas de latão dos anexos; o Inverno trouxe a geada e esse silêncio quase mágico das coisas suspensas das folhas e dos ramos dos arbustos da serra; o Inverno trouxe a primeira nevada do ano, esse branco quase azul de tão branco que cobre as ruas e as casas, os taludes dos caminhos e os muros, as margens das ribeiras que descem dos montes entre o sobressalto e a quietação dos vales. Estava frio. Uma nuvem densa anunciava a tempestade. Eu tinha-me metido a caminho das pastagens por baixo do Voluntário. Era ao fim da tarde. Subi pelo carreiro do Lajedo, cheguei ao bosquete de carvalho-negral, segui arrumado à vedação do muro de pedras. E foi então que a vi. Ela sorriu; como se me esperasse; como se me esperasse desde o fundo do tempo. Sorriu. Eu disse «boa tarde». Embaraçado, confuso. «Como está, Leonor?» Não me respondeu. Tinha uma navalha nas mãos. Virou-se ligeiramente e esculpiu um coração trémulo no tronco branco de um vidoeiro. Só então me olhou de frente. Eu via a tarde a descer as encostas, uma nuvem de sombra a poisar na copa mais alta das árvores. Aproximei-me. E compreendi que esse coração trémulo haveria de ficar gravado na minha pele como uma cicatriz ou uma doença do corpo.
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Capítulo IX
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(Onde se apresentam resumos do que é possível por agora dizer-se ligando fios dispersos e se acaba por seguir um caminho imprevisto)
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O engenheiro das florestas morreu nessa noite de dezassete de Novembro de mil oitocentos e noventa. Supõe-se que Fernando Lalice (nessa altura não era ainda Lalice) o surpreendeu no quarto com Fernanda, o arrastou à Colina da Raia, o dependurou num ramo do carvalho grande, suspenso por uma corda carral enrolada ao pescoço, e lhe queimou o rosto com um archote aceso até o deixar irreconhecível. À Vila demorou a chegar essa normalidade que apenas o Pai Ventura parecia anunciar, finalmente de paz consigo, com o mundo e com a memória dos cães afogados num gralheiro abaixo da Presa do Moinho Velho. Os trabalhos na floresta acabaram pouco tempo depois: ainda veio gente de Lisboa, ainda se chegou a imaginar que o plano antigo haveria de manter-se; mas a falta de colaboração de Fernando, primeiro, e depois a sua oposição ostensiva, revelaram-se decisivas e precipitaram o fim do processo. É verdade que se tratava de uma fase experimental. O mau, no entanto, é começar: o mais certo, conhecendo a gente os políticos como conhece, é que a continuação do programa de transformação da paisagem fosse apenas uma questão de tempo.
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No dia seis de Junho de mil oitocentos e noventa e um, numa casa a jusante da Ponte de Arame, nascia uma criança a que deram o nome de João. E deram-lhe um nome pela razão simples de que a um homem ou a uma mulher, sejam quais forem as circunstâncias que irremediavelmente lhe marcam logo à nascença o futuro curso dos seus dias, não se nega um nome. João, apenas. João, sem mais, sem patronímico, sem nenhum rasto ou vestígio da genealogia, como se a memória avassaladora do tempo pudesse apagar-se na recusa da única herança de que é legítimo esperar nesse momento mágico em que a vida e o mundo coincidem. Leonor, em circunstâncias nunca muito esclarecidas, morreu durante o parto. Desde que a gravidez se anunciara, desde o momento em que não podia mais ocultar o segredo do delito grave do amor, tinha sido afastada do convívio público; e dali, da Vila, a levaram seus pais a um lugar mais afastado do mundo. Aí ficou, meses, nessa casa com um pátio onde lhe era dado sentar-se à sombra de uma tília centenar. Não lhe ouviram uma lamentação; não deixou de sorrir: um sorriso enigmático em que pareciam misturar-se a tragédia e a melancolia. Leonor não poderia chegar a saber que o recém-nascido, nesse mesmo dia seis de Junho, seria entregue aos cuidados de um casal da Aldeia; não poderia chegar a saber, também, que o filho do seu encontro com o engenheiro das florestas haveria de nascer com uma mancha escura desenhada na palma da mão esquerda representando com nitidez os contornos, a nervura, os lóbulos sulcados duma folha de carvalho-negral. Um silêncio fundo, interrompido apenas por um ou outro breve rumor manifesto, haveria de guardar esses segredos ao longo dos anos.
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Leonor nasceu na casa a jusante da Ponte de Arame no dia seis de Junho de mil oitocentos e setenta. A casa tinha sido erguida alguns anos antes; oito anos mais tarde ficaria entregue ao abandono; até que foi arranjada para guardar um segredo e para que Leonor desse um filho à luz e ao mundo. A memória permanece dentro das casas durante algum tempo; num baixo-relevo dos caibros esculpido a navalha, nas pedras das lareiras, nos fornos de lenha, nos alpendres, nas prensas dos lagares, nos móveis velhos, nos beirados derruídos, num traço indelével no pavimento, nas manchas da parede de cal onde se penduraram retratos dos dias felizes de Verão. Mas depois vem a ruína e a tempestade; a chuva e o gelo, a luz, o vento, a sombra. Na casa a jusante da Ponte de Arame, quando a família de Américo Fontes a deixou e rumou à Vila à procura de um novo destino, a hera e a vinha-virgem subiram as empenas e as colunas de pedra dos pátios, os conchelos invadiram os muros, as giestas e os silvedos acompanharam as bermas dos caminhos e viam-se à distância, os dentes-de-leão misturaram-se à dedaleira, às moitas de parietária, à avoadinha, às urtigas, à serradela, ao trevo, aos malmequeres. A casa ficou assim, vazia, abandonada até esse dia de meados de Maio de mil novecentos e sessenta e sete em que o pai de Aline chegou e cortou as ervas, arroteou o pequeno vale confinante, despedregou a encosta, semeou centeio e um milho de regadio, fez uma horta, reconstruiu paredes, construiu anexos. Mas isso foi muito tempo depois. No dia seis de Junho de mil oitocentos e noventa e um, nessa manhã em que Leonor morreu com um sorriso enigmático nos lábios, sem que se lhe ouvisse um lamento, o soalho estava encerado e havia cortinas nas janelas e lírios numa jarra alta; nessa mesma manhã em que João, recém-nascido, foi levado aos cuidados de Madalena e Manuel Pequeno, à casa do largo do meio da Aldeia contígua ao tanque das águas de nascente onde se enchiam os cântaros.
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Não havia memória de terem assim secado as nascentes. Os dias de calor sucediam-se; um calor insuportável que diluía os contornos dos objectos e que parecia erguer-se em espadana sobre os arbustos e o chão ressequido onde as cobras de escada largavam as suas peles claras da muda e desenhavam uma linha ondulada no saibro. Os finais de Agosto deveriam já ter trazido as brisas do crepúsculo e o frio nocturno; mas quase não se podia sair à rua; dormia-se com as janelas abertas. O braseiro durou todo o mês de Setembro e entrou em Outubro; até o rio deixar de correr e o leito do estio se reduzir a minúsculos charcos verdes de água e limos no fundo das presas. Não se regaram os milhos; secaram as pastagens das águas de lima; acabou-se a provisão de forragens; e os bagos das uvas crestaram numa mistura de lume e açúcar. E foi então que um vento desusado se anunciou primeiro nas copas das árvores da encosta e depois atravessou as ruas da Aldeia e ergueu no ar um negrume feito de palhas e poeiras; semanas a fio. E então em Dezembro, nos primeiros dias de Dezembro, o céu ficou carregado de nuvens; nuvens densas, escuras, que vinham do nascente, sendo certo que as nuvens do Inverno nunca chegavam pela banda do nascente. E ficaram assim; suspensas como uma ameaça de tormenta e um castigo. Até que começou a chover; na noite da passagem do ano; e choveu durante três meses. No dia primeiro de Março, quando o céu finalmente se abriu de novo sem uma nuvem, a Aldeia estava transformada num deserto.
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João Pequeno não haveria de esquecer nunca a desolação desse lugar varrido pela tormenta. Era uma criança. Mas a imagem do desastre ficou gravada no imperscrutável lugar da memória que guarda os momentos e os lugares da infância de que nunca nos livramos durante uma vida: um cântaro com água, o arame das vinhas, os pátios, um caminho de terra subindo às colinas por entre bosques de bétulas, a aparição de um corpo nu, a página de um livro, as folhas dos negrilhos, a água das presas, um relâmpago no mês de Novembro iluminando a noite para sempre. Às vezes damos connosco a dizer «é incrível como o tempo passa». O que nos surpreende não é o facto de estarmos mais velhos; não é a distância a que ficaram as coisas antigas. O que nos surpreende é a inexistência de uma fita com marcas regulares ou de um pêndulo a definir por igual a duração de cada um dos dias, a duração de cada um dos anos das nossas vidas. É como se o tempo nos fosse devolvido pela reverberação de sentimentos extremos; é como se a sua espiral tivesse descontinuidades ou sobreposições; é como se a memória do que vivemos não guardasse senão alguns momentos e algumas imagens: e o resto fosse o desperdício de estarmos vivos. Numa madrugada de Julho de mil novecentos e dezanove, ainda escuro, João Pequeno regressou à Aldeia; atravessou o rio nas poldras, subiu a escaleira que dá para o terraço de uma casa junto à igreja e bateu com os nós dos dedos nos vidros da janela. Que memória da sua vida tem João Pequeno nesse preciso instante? Algumas imagens da infância; o ano dos desastres, o calor, a chuva, o vento, um negrume feito de palhas e poeiras; a ida para a Vila e a nova casa no Alto da Ribeira; um bosque; os textos escritos no quinzenário local contra as trapalhadas financeiras da Comissão Administrativa; uma noite clandestina num quarto da Pensão Americana; alguns momentos em que a amizade e o mundo pareciam sobrepor-se; e os dois tiros nervosos disparados no escuro no momento em que fugira do posto da Guarda por entre os arames das vinhas e as árvores do pomar de macieiras.
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«Não há crimes de opinião; o conceito é absurdo», dizia o advogado. João Pequeno, extasiado, ouvia-o falar sobre um tempo em que não seria mais aceitável impor regras ou limitações aos discursos. «A liberdade começa pelo direito de exprimir opiniões em público sem restrições de ordem moral ou política». O doutor Granjo vinha à Vila, deixava o Tribunal e rumava à Pensão Americana a beber um palhete do Crasto. Dona Fernanda, em vendo-o chegar, fazia um sinal e Luísa descia à adega, cortava as fatias de presunto e desenterrava uma garrafa do chão de terra; trazia-a cuidadosamente para que não bulisse; para que o pé não levantasse do fundo; para que o cristal do vinho, olhado à transparência, não reflectisse senão a luz e a água das encostas viradas ao nascente. O doutor Magalhães, da varanda, via-o a atravessar o largo na companhia de João Pequeno. E o que sentia era apenas cansaço; tédio; melancolia.
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A doença chegava-lhe. O doutor Magalhães vinha à varanda, em havendo sol, sentava-se na cadeirinha de lona, arregaçava as mangas da camisa em dobras simétricas, puxava as calças acima dos joelhos, enfiava os pés no enxofre da água das caldas santas. Pouco o preocupavam já monárquicos ou republicanos, democratas ou evolucionistas; pouco o preocupava o rodar de um mundo que parecia ter perdido os seus eixos para sempre; pouco o preocupava o ruir das paredes de uma velha ordem que se resumia em manter as coisas antigas nos seus devidos lugares. Por isso, por esses primeiros dias do ano de mil novecentos e dezanove, quando o doutor António Granjo, mais uma vez, entrou na Pensão Americana para falar de um mundo novo, sorriu apenas entre a melancolia e o cansaço. E, estirando-se na cadeirinha de lona, pensou nas ironias e nos desacertos do mundo.
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O doutor Magalhães ainda resistiu; que ficava no hotel; que estava de passagem; que não queria ser cúmplice da farsa; que achava deplorável o espectáculo anunciado. Mas acabou por acompanhar o amigo Joaquim Moreira Falcão pelas ruas de Lisboa. Era um dia quente de Junho de mil novecentos e onze e tivera lugar a primeira reunião da Assembleia Nacional Constituinte; o doutor António Granjo, eleito em Maio último, partilhava com Sidónio Pais um lugar de deputado. O cortejo, ao som de filarmónicas, passava pelo Arsenal; ouvia-se A Portuguesa; havia girândolas de foguetes; desfilavam os corpos do exército; distribuíam-se folhetos com a proclamação da República; e o povo, nas ruas, nas janelas das casas, aos milhares, aclamava o desfile. O que acontecera entretanto? A República elege um Presidente de sangue azul (vigésimo quinto neto de um duque de França, neto da segunda neta de D. Fernando de Castela e com ascendência em Hugo Capeto, conde de Paris e de Orleães); o país é arrastado para a guerra e os seus jovens são arrastados para a morte nas margens de um rio perdido na Flandres; António Granjo escreve versos e conspira contra Sidónio Pais; a desordem cresce nas ruas e nas instituições; Sidónio Pais é assassinado; alguns heróis, como Paiva Couceiro, tentam em vão repor a velha ordem e restaurar a Pátria; e hoje, nesta tarde fria de princípios de mil novecentos e dezanove, António Granjo entra com João Pequeno na Pensão Americana, puxando as golas da gabardine inglesa comprada no Pires d' Almeida, cheio ainda da glória de ter participado em Vila Real no confronto com as tropas do major Alberto Margaride e feliz por poder anunciar que a Constituição de mil novecentos e onze regressou enfim à sua plena vigência.
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O doutor Magalhães sentia-se cansado do mundo; e cansado da avidez mercenária do amigo Américo Matias. A guerra veio ampliar desacertos, injustiças, diferenças: o pão e o açúcar eram bens escassos; e não faltavam os biscoitos ingleses e o champanhe. Américo, em silêncio, no escuro, mexia os cordelinhos da política local e enriquecia a olhos relapsos; o presidente da Comissão Administrativa, tocado irreversivelmente pelo tédio e pela indiferença, deixava seguir as modas. No Echos da Vila, apoiado e motivado pelo doutor Granjo, João Pequeno trazia à superfície a dimensão do embuste; da falcatrua. Arnaldo Adão, o Lindinho, passava-lhe em segredo a cópia dos delitos. João pôs em letra de forma os pontos nos is; demonstrou a condescendente e abjecta corrupção do quotidiano. E, claro, pôs-se a jeito. Foi o que foi. Era preciso arranjar um bode expiatório e limpar de passagem os vestígios dos crimes. O dia vinha a calhar: as confusões na feira com o Vicente de Curros; a tarde de rambóia na taberna da Emília. Armaram-lhe a estrangeirinha. E João Pequeno, de súbito, compreendeu que um laço lhe apertava os pulsos com força; e que o laço haveria de ser puxado em cada um dos seus fios. Por isso, nessa noite de Julho de mil novecentos e dezanove, estando a ser ouvido no posto da Guarda e sentindo os fios a serem puxados, correu na direcção da janela e saltou e correu por entre os troncos das árvores do pomar de macieiras e os arames das vinhas. Nunca haveria de esquecer o silvo metálico dos dois tiros disparados no escuro daquela noite quente e imensa e erguendo-se límpida na abóbada do vale.
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O pequeno rumor da água ouvia-se na noite quente de Julho erguendo-se devagar em lâmina fina sobre o muro da presa do Noro. João Pequeno escondeu-se por algum tempo até acreditar que nenhum outro barulho se misturava ao cicio da corrente vagarosa. Tinha bebido muito; correra por entre os arames das vinhas e as árvores do pomar de macieiras; sentia o coração a bater como se o corpo se tivesse rendido ao domínio da eluviação das águas subterrâneas. E depois subiu ao Padrão, passou a Colina do Engenheiro, contornou o alto do Voluntário pelo caminho de saibro, atravessou o rio nas poldras, chegou ao Meio da Aldeia, abriu a cancela do pátio da casa junto à igreja, subiu a escaleira que dá ao terraço, bateu com os nós dos dedos nos vidros da janela. O padrinho de João Pequeno acordou; levantou-se; abriu a porta; olhou o afilhado contra a luz do quarto minguante poisada nas encostas do outro lado do vale; e disse-lhe que descansasse; que dormisse; que alguma solução haveria de topar-se por entre as desordens do mundo.
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João Pequeno dormiu durante quase todo o dia. Acordou e pensou por instantes que estaria fechado numa cela da cadeia civil. Depois olhou na direcção da porta e viu a figura do padrinho recortada contra a luminosidade baça do corredor. Tudo se passou como num sonho em que as imagens se sucedem e sobrepõem até à incoerência cronológica. Quase doze anos depois, quando regressar de novo e olhar o rio, a insólita paisagem de pinheiros elevando-se nas colinas do outro lado do vale, os mesmos caminhos de terra batida, o casario de granito a descobrir-se por entre a neblina do fim de tarde de Fevereiro, João Pequeno terá a sensação estranha da impossibilidade da narrativa; como se os eventos desses dias de Julho de mil novecentos e dezanove tivessem ocorrido fora da sua vida; como se não houvesse coincidência temporal entre a sua vida e o tempo concreto; como se um fluido misturasse as suas memórias e as remetesse a um universo intangível: a figura do padrinho recortada à porta do quarto contra a luminosidade baça do corredor; o rumor dos pequenos fios de água descendo os alcantilados da serra; o odor das flores da urze pisadas pelas patas dos cavalos; a breve luz do quarto minguante a marcar no horizonte as cumeadas onduladas; os descampados onde faziam breves paragens para logo depois atravessarem a galope com o vento no rosto; uma escusa estalagem onde comeram e dormiram algumas horas; a casa de José Ribeiro da Conceição, em Lamego, erguendo-se imensa junto ao Seminário e ao Paço Episcopal; uma mulher que haverá de jurar nunca esquecer durante o resto da vida; a viagem para o Porto; as despedidas; o embarque; e depois o mar oceano, um céu infinito, a tempestade, o calor insuportável, a chegada ao porto de Santos, a turba inverosímil de homens e mulheres a arrastar malas imensas como quem traz do passado todas as amarras de que se pretende libertar.
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João ouve o motor, ao longe, do Bugatti, e imagina um tempo em que não haverá tempo; um tempo em que tudo ficará dependente do despotismo do tempo: das suas amarras, das suas teias densas, dos seus elos e dos seus vínculos, das suas cadeias sucessivas. A velocidade, então, marcará o quotidiano; e as opções do quotidiano resultarão da ponderação de variáveis que se sobrepõem, acumulam, uma camada e depois outra, num processo em que a diacronia deixa de fazer sentido; um tempo em que a falta de tempo justificará tudo: a erosão do amor, os intervalos longos na publicação dos capítulos dos folhetins, as ausências, a deserção, o esquecimento. João Pequeno ouve o ruído fascinante do motor de quatro cilindros do Bugatti e imagina um tempo em que o relógio se sobrepõe ao calendário e tudo se vive ao segundo. Até que o automóvel aparece na recta final; acabou de fazer a última curva da pista: azul, tubular, com o motor protegido pela belíssima oval dianteira, com as onduladas curvas laterais a semelhar uma onda, veloz, admirável, deslizando entre o pavimento e uma nuvem, quase em voo, quase suspenso na vertigem de correr assim disparado em direcção ao futuro.
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Algumas leituras davam-lhe a dimensão das cidades longínquas e dos continentes que se erguiam em plataformas sobre o mar e se perdiam na distância das florestas e dos imensos rios. Mas o mundo de João Pequeno não passara nunca as fronteiras da bacia hidrográfica do Terva; tudo o mais, além das cumeadas da Seixa, revertia de uma irrealidade feita de sonho e abstracção. E o mundo, no entanto, é vasto e admirável: com a água dos mares oceanos, as cordilheiras e os seus declives, as ilhas e as penínsulas; com as montanhas e os rios, a chuva e o vento; com a tempestade e o remanso, as manhãs de sincelo ou os fins de tarde iluminados por um lume vagaroso; com a rede infinita dos seus caminhos e veredas, os bosques e as árvores das avenidas, as casas, as pontes suspensas entre duas margens, as colinas, os palácios, as arcadas das praças, os navios, as estrelas, as mulheres, as nuvens, as marés, o crepúsculo. João Pequeno vivia num vórtice; um mundo novo, admirável, maior que o destino dos homens, abria-se diante de si. E era como se esse mundo admirável, o burburinho dos automóveis e das fábricas, os edifícios e os palácios, as avenidas e os jardins, o transportassem a uma dimensão de milagre.
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São Paulo era uma cidade de contrastes. A guerra trouxe a riqueza e o progresso; e, como sempre que a riqueza cresce, a miséria foi ocupando espaços e erguendo muros. João Pequeno vivia a intensidade das contradições do seu tempo. Perdia-se em tabernas escusas onde os operários fabris adormeciam nas mesas a beber cachaça e a contar as sobras de salários miseráveis; frequentava os salões de dança e assistia às corridas de automóveis; fazia amigos nas periferias onde a gripe espanhola dizimara crianças e velhos; passeava nas alamedas do Palácio das Indústrias ou quedava-se, fascinado, a ver partidas de futebol ou exibições de voo de aeroplanos coloridos. Entretanto, dedicava-se a fundo aos negócios e subia na hierarquia da empresa de importação de José Ribeiro da Conceição. O sucesso acompanhava de perto a sua dedicação, a sua entrega, a sua inteligência, os seus dotes inesperados de liderança. Depressa deixa a empresa de importação e, dividido entre os escritórios de Santos e S. Paulo, José Ribeiro entrega-lhe as responsabilidades de gestão da Companhia de Transportes Luzitana. Em pouco tempo a Companhia lidera o sector da navegação; e João Pequeno viaja nos vapores que cruzam os mares, que ligam o Norte do Brasil a Buenos Aires, as penínsulas e os continentes do vasto e admirável mundo.
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O escuro da taberna contrastava com o calor insuportável; um odor a óleo e a fermentação parecia ficar no ar em camadas espessas. João gostava de misturar-se a esta gente que trazia em si, a um tempo, as marcas da ruína e da exaltação; os sonhos ainda agarrados ao corpo mesmo quando a cinza definitivamente os trespassara. E então, numa noite de Outubro de mil novecentos e vinte e um, ouviu alguém a falar de um lugar onde os rios eram tão azuis como nos mapas das escolas; e os freixos desenhavam nas suas margens uma linha sinuosa de sombra iluminada por dentro. Não o reconheceu logo: Damásio Martins tinha envelhecido muito. E João Pequeno ficou por algum tempo interdito: Carminha, D. Carmo, recebia na Vila, todos os meses, uma renda da suposta árvore das patacas que lhe permitia comprar vestidos de Lisboa no Comércio Central; com o que lhe sobrava das remessas, Damásio Martins teria o suficiente para remendar a roupa, beber copos de cachaça e sonhar com uma casa nas margens do Terva, na presa das Tílias, entre a encosta de vidoeiros e o lameiro das águas sesserigas.
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O tempo passou a correr. É quase sempre assim quando uma imagem antiga bruscamente nos é devolvida no alarme da sua irremediável ausência. A caminho do Brasil, a meio do mar oceano, sob as nuvens movendo-se ou entre as vagas erguidas pelo vento, João Pequeno foi deixando que a memória do passado se diluísse como a água que temos nas mãos em concha e vemos escorrer por entre os dedos. Ao chegar ao porto de Santos, ao respirar com dificuldade nessa tarde distante de calor insuportável por entre a turba de homens e mulheres arrastando malas vagarosas, João compreendeu que só o futuro existia; que um mundo novo, admirável, se abria diante de si; que o passado não era mais que uma abstracção sem densidade nem contornos. O padrinho haveria de morrer na tristeza desse silêncio; o pai haveria de perder o rumo e passar os dias à procura de um sinal que nem a camioneta da carreira nem o posto dos correios acabaram por lhe trazer; Serapião Afonso, primeiro fechado na cadeia civil, depois fechado em si mesmo no labirinto do ódio, deu-o como morto; a Vila esqueceu-o; os anos passaram; longe, fora do mundo que vivia, sucederam-se os dias de vento, a neve e o sincelo, a poeira levantada dos caminhos num fim de tarde de Verão. Só o futuro importava. E no entanto, imprevistamente, quase doze anos depois de chegar ao porto de Santos, algumas imagens antigas foram-lhe devolvidas no alarme da sua irremediável ausência: uma faca de cortar o pão; uma mesa de castanho com uma toalha de linho em dia festivo; um cântaro com água; um negrilho erguendo-se na encosta a caminho do Voluntário. O tempo, entretanto, passara a correr. Ou talvez não: não tão depressa que não deixasse a água circular, sucessiva, por debaixo das pontes.
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Quando chegou ao porto de Santos, numa tarde estranhamente quente de princípios de Agosto de mil novecentos e dezanove, João Pequeno não fez a tradicional via-sacra dos imigrantes: não haveria de ficar na hospedaria do bairro do Brás entre o odor a azedo e a algaraviada ruidosa de espanhol e italiano; não haveria de sujeitar-se ao desconforto dos quartos minúsculos e apinhados de gente desconhecida; não haveria de sujeitar-se ao ágio que a miséria parece atrair como uma lâmpada acesa por entre o escuro da noite; não haveria de rumar às fazendas ou às fábricas e procurar depois, aos poucos, libertar-se de uma espécie de sevícia que tirava aos homens e às mulheres os fios de sonho e a dignidade que traziam no convés dos navios, pouco tempo antes, olhando a linha do horizonte. João Pequeno chegou ao porto de Santos e a família de José Ribeiro da Conceição esperava-o como se a amizade do padrinho com o velho empresário de Lamego revertesse de um juramento de sangue que assim, neste cuidado, acabava por cumprir-se. João, alguns dias depois, trabalhava já nos escritórios da empresa de importação; e, passado pouco mais que um ano, era o responsável pela gestão da Companhia de Transportes Luzitana. São Paulo, nos anos vinte, é uma metrópole com mais de meio milhão de habitantes; a vida oscila entre a crise do café e a expansão da indústria, a miséria e a riqueza, a escassez e as crescentes oportunidades de negócio. A Companhia Luzitana estava no prato certo da balança; não apenas lidera o sector dos transportes: é uma referência de sucesso empresarial. João Pequeno conhece a glória, vive num palácio da rua Barão de Itapetininga, frequenta o Teatro Municipal, é desejado pelas mulheres, convive com os artistas do movimento modernista, patrocina a Semana de Arte Moderna. Assim corria, sem graves variações de corrente, a água por debaixo das pontes. Mas essas mesmas águas, em mil novecentos e trinta, pareciam de súbito sobressaltar-se e ameaçar sair das margens. As dificuldades começaram com a crise da bolsa de valores de Nova Iorque, um ano antes; e, de súbito, ganhavam força com a revolta armada que acabava de levar à deposição de Washington Luís. Entretanto, João Pequeno apostou tudo em Júlio Prestes para a presidência da República; Júlio Prestes venceu as eleições; mas o golpe de estado de três de Outubro de mil novecentos e trinta levou-o ao exílio; Getúlio Vargas toma o poder; era o fim da República Velha e um duro golpe para os negócios das empresas da família Ribeiro da Conceição. E foi então, em Janeiro de mil novecentos e trinta e um, que Catarina Ribeiro da Conceição chegou a São Paulo; não era propriamente uma jovem: João Pequeno tinha-a visto em Lamego, quase doze anos antes, na casa junto ao Seminário e ao Paço Episcopal. Se o amor não fosse chamado a estas coisas, o mais certo é que haveriam todos de ficar felizes com a providencial aliança. Catarina, no dia seguinte, seria apresentada a Paolo Piscicelli, seu prometido noivo. E a família Piscicelli era ainda a mais poderosa de São Paulo: o fim da República Velha não bulira com os alicerces do seu empório; e os novos tempos, com Getúlio Vargas, anunciavam um ciclo de sucessos empresariais. O casamento, se não era movido pela conveniência, não se podia dizer que a prejudicasse. O mal é que João Pequeno tinha visto Catarina, por instantes, doze anos antes, em Lamego, na casa junto ao Seminário e ao Paço Episcopal, e jurara não mais esquecê-la durante o resto da vida.
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A João Pequeno não eram estranhos os cenários de crise. Por mais que uma vez se viu confrontado com esses cenários e com a necessidade de estabelecer estratégias de actuação. Sabia como proceder; conhecia os mecanismos adequados às diferentes circunstâncias: entrar no vórtice da crise e retirar dela oportunidades novas; adiar investimentos ou apostar em actividades de carácter não-produtivo; diversificar os investimentos; arriscar quando os outros hesitam; apostar onde os outros desistem. A João Pequeno não eram estranhas as estratégias de actuação empresarial em tempo de crise. É certo que agora, além da economia, a crise das empresas da família Ribeiro da Conceição revertia sobretudo de apostas políticas erradas. E isso é fodido: da política convém ficar à distância ou acertar nas apostas. Mas João já tinha atravessado o deserto em situações mais delicadas. E, não fora o amor, também desta vez os obstáculos haveriam de ser superados. O problema é sempre o amor. Nunca sabemos lidar com as coisas do amor. Não há algoritmos para o amor.
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No início dos anos vinte, em São Paulo, a rua pertencia aos pobres e às putas. A riqueza do café fazia-se no campo, nas fazendas, num tempo antigo de terreiros e tulhas, de casas-grandes e senzalas, de terraços e alpendres, de casas de escrivães e arreadores, de tropeiros e marceneiros, de paióis e quartos de selas, de enfermeiros, dos anexos de escravos, de engenhos e alambiques. Mas depois os senhores da terra rumaram à cidade com suas cédulas e havia que marcar diferenças, distâncias. Em São Paulo, por esse tempo, às mulheres das famílias ricas ficou-lhes destinada a casa e a gestão de cozinhas e eventos sociais, a redacção de papelinhos de convite e a discussão dos alinhamentos das sebes dos jardins. O espaço público foi sendo ganho, aos poucos, nas aulas de piano, no ensino, no estudo do direito ou da medicina; e, finalmente, pela frequência das salas de cinema, dos restaurantes, das alamedas e dos parques arborizados que o urbanismo levava aos bairros residenciais de palacetes e moradias com salões de pé direito duplo. As mulheres da sociedade iam ganhando terreno. E, de súbito, depois das alamedas e dos foiyeres dos teatros, o amor. As mulheres, ganho o espaço público, avançavam para o espaço afectivo. E acabaram por regressar à casa sem deixar a rua: exigindo a si mesmas um lugar de liberdade e escolha, um lugar sem grades onde as remetia, no tempo antigo, o preconceito e a impossibilidade de tocar os fios do desejo, da pele, do amor. Quando Catarina, à noite, em Janeiro de mil novecentos e trinta e um, passeou nas ruas de São Paulo o seu vestido de um amarelo claro, os seus colares excessivos, a sua pelerine de lã, era já vigente o entendimento de que a beleza e o desejo não deveriam fechar-se à chave entre paredes altas. Os casamentos por interesse comercial andavam arredados da moda. A boina de Catarina Ribeiro da Conceição, com os seus pormenores de flores e pétalas onde poisavam aves em ramos finos, e sobretudo o que representava, estava desajustada do seu tempo. João Pequeno, paciente, explicou-lhe isso mesmo; que o casamento exige o amor. E, de caminho, estando Paolo Piscicelli ausente por razão de negócios, levou-a pelas ruas do Ipiranga e acabaram a ver uma fita no Cine Theatro Brazil. Trocaram as mãos por um breve momento. E ela recordou-se do sobressalto dessa noite de Lamego, muitos anos antes, em que um moço desajeitado a olhou como se o mundo estivesse a começar.
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E então, quase doze anos depois de chegar ao porto de Santos, algumas imagens antigas foram-lhe devolvidas no alarme da sua irremediável ausência: os muros do cadastro, a escaleira de pedra e a varanda sobre o pátio onde crescia uma figueira, a névoa erguendo-se por entre os salgueiros do rio, o telheiro onde se guardava a lenha do Inverno, a lareira acesa, a luz excessiva dos meses de Julho derramada na água dos açudes. João Pequeno julgava ter apagado, uma a uma, todas as imagens desse tempo antigo. A própria ideia de tempo presente começou, quase imediatamente após a sua chegada ao Brasil, a não fazer sentido. O presente era já o futuro que a cada instante o tocava e o invocava Os negócios, o amor, as viagens de barco cruzando os mares do continente, as noites de Buenos Aires, o movimento das ruas, o teatro, a velocidade dos automóveis de corrida a deslizar e a desaparecer por entre o pavimento e uma nuvem: tudo o afastava da noção de tempo e permanência. A invocação duma suposta memória devolvida sem aviso (as folhas dos negrilhos, o arame das vinhas, os pátios, o caminho de terra subindo às colinas por entre bosques de bétulas) não era mais que um pé, um pretexto, um subterfúgio, uma tentativa de justificar a desistência. A verdade é que os negócios corriam mal, as paixões corriam desastrosas e as relações de confiança se deterioravam a olhos vistos numa meada sem fio. Resolveu, portanto, regressar a Portugal. Caía a noite quando o navio saiu do porto de Santos. João Pequeno fugia de si mesmo mais ainda do que, nesse preciso momento, lhe era possível adivinhar.
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Capítulo X
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(Onde Maria Teresa fala de Catarina e do mais que se verá)
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É curioso (diz Maria Teresa) como você foi escolhendo a sua história dentro da história. Como privilegiou alguns nomes, como deixou que outros fossem desaparecendo, como seguiu caminhos que supostamente não havia interesse em percorrer. É curioso, ainda, como abdicou da preocupação da cronologia e da descrição factual dos acontecimentos; como, enfim, compreendeu que os eventos secundários, marginais, esses de que chegamos a nem falar, são as mais das vezes os que deixaram as marcas na pele ou mais profundamente mudaram as nossas vidas. O padrinho de João Pequeno, por exemplo; o padrinho de João Pequeno dava um romance. E no entanto você deixou-o na casa do Meio da Aldeia, junto à igreja, e decidiu seguir o afilhado até ao Brasil para me perguntar agora o que sei eu da Brasileira de Lamego.
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Não deixará nunca de nos surpreender o carácter único de cada ser humano. Não deixará nunca, no ser humano, de nos surpreender a diferença, a dissemelhança, a diversidade: nenhum gesto se repete; nenhum rosto se repete. Talvez seja isso, o reconhecimento dessa diversidade, que nos faz mais iguais. Digo eu. Mas Catarina Ribeiro da Conceição nasceu numa pequena aldeia de não mais que sessenta casas; no ano de mil oitocentos e noventa e nove. E nesse lugar, e nesse tempo, a diferença era um agravo, um ultraje. A Moura, eis como Catarina era conhecida antes de ser a Brasileira de Lamego; desde a infância. A sua tez era demasiado escura para os padrões do sítio; o seu nariz demasiado arqueado e erguido; as suas sobrancelhas demasiado altivas; a linha horizontal dos seus lábios demasiado longa e demasiado bem desenhada; e o seu olhar ficava marcado pela imposição do imenso e intimidatório branco em redor da íris. A Moura, assim lhe chamavam. Também, provavelmente, por isso mesmo: por essa divergência fisionómica. Mas havia raízes onde fundar o preconceito: a mãe de Catarina usava uns vestidos de pano de Granada que insistia em designar por alfoleimes; e nos serões em sua casa, nas noites de vindima, nas desfolhadas, nas espadeladas, em vez da concertina e do bombo ouviam-se gaitas, adufes e arabis. Onde quero chegar? A isto: a vida toda de Catarina haveria de ficar condicionada pelas diferenças do seu rosto e pelas histórias (num universo dominado por superstições e fantasias) que essa diferença (essa distância) convocava. Quando chegou ao Brasil, muitos anos depois, João Pequeno gabou-lhe o moreno da tez e os «olhos imensos como se uma estrela os protegesse» (assim escreveu o mariola, a tinta permanente, num bilhetinho que ficou no espólio breve, atado num laço, de meia dúzia de papéis guardados no fundo duma gaveta da casa junto ao Seminário e ao Paço Episcopal); talvez Catarina permanecesse indiferente ao elogio, e de pé atrás, se não tivesse conhecido sempre, primeiro na aldeia, depois em Lamego, o peso insustentável da distância e dessa espécie de proscrição. Mas isto (diz Maria Teresa) já sou eu a inventar.
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Catarina nasceu numa aldeia distante de Lamego não mais que uma légua: casa de porta carral, pátio ladeado no segundo piso por uma varanda corrida em três lanços e paredes de perpianho aparelhado de modo a que um alfinete não entrasse nas juntas da pedra. Um baixo-relevo talhado no granito, a encimar a porta, ostentava a data de construção: 1867. Na envolvente da casa e da pequena horta, depois do nabal, a jusante da cortinha do Corgo, estendia-se um olival de árvores alinhadas a perder de vista. Mas a riqueza que permitira construir a casa não vinha da azeitona nem do repolho temporão.
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Um insecto minúsculo atravessou o mar oceano e desenhou na Europa uma nebulosa cartografia. A existência de vinhedos e a direcção dos ventos dominantes pareciam determinar a sua progressão: Gard e Floirac, Orléans e Côte-d’Or, Cognac, La Crau de Châteaurenard, Cadarache, Castries e Tain-l’Hermitage, Valmadrera, Imperia e Caltanissetta, Málaga, Gerona, Vale do Douro. Um insecto minúsculo que parecia mudar a sua forma a cada instante e não ter um padrão de comportamento: amarelo, ocre, castanho claro, muito escuro, dourado, sem asas, com asas transparentes, maior que formigas, menor que um grão de areia, semelhando pequenas moscas domésticas; escalavrando as páginas inferiores das folhas ou permanecendo escondido a atacar as raízes sem vir à superfície; emergindo à luz clara, já com as asas que o subsolo não lhe pedia, a depositar os ovos nas galhas previamente cortadas; ninfas a esfacelar de novo as folhas, em Abril, depois da eclosão e depois duma espécie de hibernação nas células mortas da casca; criando nódulos nas raízes até ao advento dos fungos e à impossibilidade de circulação dos nutrientes; infestando as folhas até ao ocre, reduzindo a área foliar, agredindo os elos e os caules jovens; migrando; formando novas colónias; resistindo ao transporte do plantio; levando, enfim, à morte das videiras, da vinha, do vinhedo. Depois do oídio, uma década antes, um pequeno insecto, minúsculo, insignificante, atravessava agora o mar oceano, chegava às encostas declivosas do rio Douro e arruinava a produção de vinho fino na mais antiga região do mundo demarcada. Num jantar reservado em Britiande, na Quinta de Santa Cruz, com um regenerador que pouco tempo depois soçobraria pastas no Governo da Fusão chefiado por António Augusto de Aguiar, o avô de Catarina ficou a saber da iminente saída de um decreto de liberdade comercial que estenderia os marcos do vinho do Porto na direcção do Douro Superior. A ruína ameaçava; o tempo era de crise. Mas Francisco Ribeiro da Conceição, entretanto, comprava terras a eito onde a filoxera quase não atacava e o benefício se alargaria por diploma legislativo. Em mil oitocentos e sessenta e sete, numa pequena aldeia distante não mais que meia légua de Lamego, começava a erguer-se uma casa de porta carral e paredes de perpianho de tal modo aparelhado que nem uma agulha entrava nas juntas da pedra. Um olival, nas imediações da casa, estendia-se a perder de vista em linhas direitas. Mas a riqueza, entretanto, vinha do Douro Superior; das terras por onde os marcos da delimitação tinham avançado e o minúsculo insecto americano quase não atacava os plantios.
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[Não sei (diz Maria Teresa) que preocupação é esta minha de falar escorreito, de medir as frases: você há-de subverter tudo. Sei como é. O mais certo é que um dia venha a ler o seu folhetim e não reconheça nessas páginas nada do que lhe conto.]
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Não sei se lhe devia dizer isto (continua Maria Teresa). Você nasceu e viveu sempre na cidade de que o vinho do Douro tomou o nome. Mas eu não posso falar-lhe do Douro sem ligar as coisas. Você ficou fascinado com a Casa a Jusante da Ponte de Arame; com a memória das pedras arrumadas do alicerce à cumeeira; com as árvores dispersas em redor do pátio; com o rumor das águas do rio descendo os gralheiros; com as bétulas da vertente e com o bosque de carvalhos que o avanço dos pinhais não afastou de todo; com a sedução evocadora dos caminhos de terra que levam à Aldeia e correm junto à margem e depois sobem à colina antes de descer de novo ao terraço breve da encosta onde meia dúzia de casas e um tanque se erguem em redor do largo e da igreja. Você, e queira desculpar-me, traz agarrado à pele o sonho dos pequenos burgueses do nosso tempo. Não há mal nenhum em que seja assim. As coisas são o que são. Mas os pequenos burgueses do nosso tempo não desejam mais que reunir bens materiais, enriquecer, para depois se darem ao luxo de viver como pobres: andando a pé por caminhos de terra ou de bicicleta pelo meio dos montes; sem rede de telemóvel; com painéis solares ou outro qualquer sistema ecológico que venha nos manuais da Quercus e substitua a energia convencional; comendo sopas de feijão ou açordas de coentros ou grelhando peças da vazia (certificação D.O.C.) em carvão vegetal; num lugar afastado da auto-estrada onde os automóveis não cheguem sem foder as jantes. Você quer comprar a Casa, em Terras do Barroso, a Jusante da Ponte de Arame. Conheceu Aline. Fez-lhe uma proposta irrecusável. E não compreendeu a sua (dela) estranheza; o seu sobressalto. Mas há bens que não vêm nos inventários; isso você demorará a compreender; ou não compreenderá nunca. É muito fácil para si descrever a chegada de Catarina a São Paulo falando da pelerine desajustada ou da boina com pormenores de flores e pétalas onde poisavam aves em ramos finos; e do modo como o lapardeiro do João Pequeno a enganou e a deixou prenha recitando-lhe uns versos e gabando-lhe a beleza do olhar. Mas que sabe você da história que precede e explica a sua vida? É sempre tudo tão complexo. Habituámo-nos a olhar as coisas a preto e branco: é assim ou não é. E no entanto há sempre uma história por detrás que baralha e confunde e só depois, finalmente, aclara se tivermos a disponibilidade de ver. Francisco, o avô de Catarina, comprou terras no Douro Superior onde a filoxera quase não atacava; meteu-se no negócio da exportação; ergueu uma casa com porta carral e até se deu ao luxo de produzir um azeite fino com medalhas em Bordéus; enriqueceu. Mas Francisco Ribeiro da Conceição tinha consciência do que está por detrás do vinho engarrafado. Sabia que era preciso, primeiro, rasgar o calhau dos vinhedos com picaretas e alavancas; e depois abrir as valas e firmar os calços; e depois, nessa espécie de tabuleiros de nível, alinhar os geios; e depois, muito mais tarde, desmadeirar e cavar em redor das videiras para guardar a água do Inverno e não deixar os fertilizantes serem arrastados na encosta; e, mais tarde ainda, podar; e depois cavar de novo para que a luz entre por igual nos torrões assim revolvidos da camada estreita acima da pedra; e depois arrimar a vide e redrar e enxofrar e sulfatar; e, então, avançar para a vindima; e escolher e eleger e separar a uva; e pisar com os pés, em lagares de pedra, os cachos ainda iluminados pelo Verão; e depurar e trasfegar; e depois, finalmente, apurar o bouquet e envelhecer e só depois, mais tarde, muito depois, olhar o vinho e bebê-lo de um copo alto. Não sei se isto acrescenta ou atrasa ao que me pediu. Porque você me pediu apenas que lhe falasse da Brasileira de Lamego. Sei lá; peço desculpa. O certo é que as palavras são como as cerejas, e uma coisa leva sempre a outra.
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Uma maldição parecia ter sido lançada sobre o Douro. O oídio, primeiro; a filoxera, depois; e agora uma ameaça maior e definitiva (a burla, a fraude) que não iria lá com enxofre, sulfuretos de carbono, porta-enxertos americanos a substituir o plantio em pé-franco ou alargamentos da área do benefício. Já se viu (continua Maria Teresa) que Francisco soube tirar proveitos da crise de meados de sessenta. Mas em mil oitocentos e oitenta e sete o negócio de exportação atingia limiares de insustentabilidade. Francisco, doente, quase falido, morria no Brasil, em Santos, no mês de Outubro; o filho mais velho acabava de produzir um dos melhores vinhos do século, nesse Verão de dias quentes e noites frescas que suspendia nas encostas uma luminosidade e uma fina leveza do ar que pareciam já embriagar antes da fermentação do mosto; e, de súbito, num tempo em que a fraude e as imitações do vinho do Porto se generalizam nos principais mercados internacionais e espalham a miséria em todo o perímetro do Vale, as responsabilidades do futuro da família ficam sobre os ombros de José Ribeiro da Conceição. Descapitalizada a empresa, sem recursos financeiros, não seria ainda o tempo de saborear o Queen Victoria’s Jubilee, um vintage como há mais de cinquenta anos não havia memória no Douro.
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Já conhece a história de José Ribeiro da Conceição; já sabe que o filho mais velho de Francisco abandonou o sonho de produzir o melhor vinho do mundo e rumou ao Brasil; já sabe que a casa se recompôs e que os negócios de importação e a entrada no universo da navegação de longo curso trouxeram à família não apenas a antiga prosperidade como uma riqueza que se confundiu no entendimento do povo com a árvore mítica das patacas; já sabe que José obteve de um amigo de seu pai o necessário financiamento e a abertura de caminhos que lhe permitiram a aventura do desconhecido; já sabe que Catarina, nascida muito depois da morte do avô, não ficou com a memória do pai senão a de surtidas breves à terra pátria misturadas no fausto de jantares onde o padrinho de João Pequeno chegou a estar presente e a que jurou não mais regressar incomodado com a afectação e a vanglória do mundo; já sabe que Catarina nasceu num universo onde se sentia confundida entre a proximidade das coisas quotidianas e a distância que pareciam reservar-lhe como se houvesse uma diferença no seu rosto ou na sua ascendência que obrigasse os outros a uma atitude de permanente e (para ela sempre incompreensível) reserva; já sabe o quanto ela, Catarina, se sentiu crescer numa redoma, afastada de todos e, portanto, sobretudo, de si mesma; já sabe que a fortuna e a ostentação acabariam por levar à construção de uma residência mais adequada aos novos estatutos da família, em Lamego, junto ao Seminário e ao Paço Episcopal. Mas ninguém lhe falou, nem eu, da viúva de Francisco, da mãe de José Ribeiro da Conceição, da avó de Catarina: Clotilde. Porque só os homens ficam nas crónicas (continua Maria Teresa); porque as mulheres não contam. E no entanto são as mulheres que carregam os pesos das casas; são elas que abrem as portadas das janelas quando a sombra começa a coagular e a fazer vibrar a água dos cântaros. E no entanto, quando Francisco morreu, quando a crise chegou à Casa do Corgo, depois de espalhar-se por uma e outra e todas as quintas do Vale do Douro, foi Clotilde quem primeiro deixou de lado as lágrimas; a definir estratégias; a avançar contra o remanso. Havia nela uma nobreza sem ostentação que você nunca compreenderá; uma distante humildade; e uma força e uma perseverança características destas mulheres altivas e simultaneamente ausentes, imperativas, que, passada a tempestade, se acolhem de novo à candura e à obscuridade. Como sei eu estas coisas? Isto, se o não soubesse de outro modo, sabê-lo-ia de ciência certa por saber que é sempre assim que o mundo roda.
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Catarina nasceu num mundo marcado pelo sexo (quase sempre presente de tão reprimido), pelo sobrenatural e a reserva. A mãe, no entanto, entrava pouco nos códigos comuns do lugar. Nunca o gado da Casa do Corgo deu três voltas à capela, recebida a bênção do padre, no quinto domingo da Quaresma; nunca as mulheres da família correram as voltas da peregrinação à Senhora da Esperança rumando de seguida, devotas, compadecidas, lentas, à capela de São Lázaro; nunca se rezou ao Espírito Santo, juntando-se todos em romaria, no domingo de Pentecostes; e não se dançava, nunca se dançou nos seus pátios, ao som de bombos e concertinas. Também nunca se cortou o coxo ou se meteu chumbo derretido em alguidares, nem se correram as contas do terço em redor da lareira cobrindo, em final de fogo, as brasas com pratas de chocolate; nem se tratou da espinhela caída, da névoa, da incebela, do cobrão ou do cobranto; nem, noite adentro, houve nunca ladainhas; nem se tirou, em segredo, o mau-olhado ou o sarnão, o fanico ou as eripselas, o tricicol, a gota ou o treçolho. Catarina era «a Moura» (continua Maria Teresa). Bem vê: não lhe bastava a desdita de ser mulher, de crescer numa redoma (nunca jogou à cocha ou à pedrinha, ao bom-barqueiro, à peçonha ou à corda podre) – haveria ainda de ser diferente das outras. Ou assim (vai dar ao mesmo) as outras, e os outros, a viam.
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O que sabemos de uma vida (continua Maria Teresa) é sempre tão pouco: o que publicamente se expôs; o que nos contam; o que acabamos por intuir do que não nos contaram. Bem vê a precariedade de tudo isto. Porque só expomos publicamente o que decidimos, de um complexo novelo de coisas, que se soubesse; ou o que não nos foi possível ocultar. O que decidimos dar assim aos outros é, as mais das vezes, o que menos interessa de tudo quanto nos fez estremecer ou se nos gravou na pele, nos músculos, no imperscrutável coração. E mesmo que soubéssemos tudo; mesmo que nos não fosse estranho o mínimo segredo da vida de alguém; mesmo que nos fosse dado conhecer todos os seus pensamentos e sentimentos, todos os seus movimentos, todos os seus desejos, todas as suas ambições; mesmo que soubéssemos dessa pessoa as mais íntimas coisas; mesmo que conhecêssemos tudo da sua vida. Mesmo assim: mal sabemos nós do que vivemos nós e do que significou isso que vivemos. Mas, desculpe insistir, mesmo que soubéssemos tudo: há sempre uma membrana que separa o que foi e o que sabemos ou supomos ter sido; há sempre uma fronteira entre o que sentimos e o que julgamos ter sentido ou conseguimos contar do que sentimos ou fomos verdadeiramente no mais profundo de nós. Nunca sabemos nada da vida de ninguém (nem de nós mesmos) mesmo quando supomos saber tudo.
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De Catarina, portanto, se um dia decidir dar a público esta história, conte o pouco que se sabe de ciência certa e deixe que sejam os leitores, com base nas suas experiências e vivências próprias, a preencher os intervalos do que foi público ou se depreende. Muito já se disse. Acrescente apenas que uma criada de branco avental vigiava todos os seus movimentos de criança; e que, se adormecesse à lareira, a recolheria, a ergueria nos seus braços redondos e a deitaria no quarto «da menina», garantindo que a botija de água aqueceu os lençóis no ponto e que a bambinela corrida não deixará a luz da manhã perturbar o seu sono. Explique como a ausência do pai, cortada por breves regressos à Casa do Corgo, e logo depois (tinha Catarina dez anos) ao palacete de Lamego, necessariamente a deixou com esse sentimento de orfandade que a levou a mais refugiar-se e guardar-se em si mesma. Conte que não frequentou os bailes das romarias e o quanto desejou, em determinadas alturas, sair de casa durante a noite e misturar-se no alvoroço da Senhora dos Remédios e ter um homem que a apertasse contra si e sentisse as suas mãos nas suas e o seu corpo agarrado ao seu enquanto as girândolas iluminavam as encostas em redor. Conte, se quiser, o episódio do primo seminarista e da tragédia de Catarina não sentir o desejo e se ver grávida e fazer um desmancho no Porto, refugiando-se da boca do povo e do escândalo em casa da tia Custódia na Avenida dos Aliados. E passe daí para uma mulher de trinta anos a quem a família propõe um casamento no Brasil com o filho mais velho dos Piscicelli. E conte como João Pequeno, na ausência breve de Paolo Piscicelli, à mor de negócios, a levou a passear pelas ruas do Ipiranga e a ver uma fita no Cine Theatro Brazil; e de como a convidou para uma limonada em sua casa e de como ela, de súbito recordada do sobressalto dessa noite de Lamego, muitos anos antes, em que um moço desajeitado a olhou como se o mundo estivesse a começar, tocou um corpo pela primeira vez em toda a sua vida como se esse corpo estivesse dentro de si desde sempre à sua espera. O resto é consigo. Já se sabe que Catarina ficou grávida de João Pequeno. Relate como entender o escândalo e a tragédia desses dias; o casamento que não chegou a consumar-se; o seu regresso a Lamego; o nascimento do filho (neto, pela banda do pai, de Leonor e do engenheiro das florestas, bisneto de Américo Fontes) na Casa do Corgo, num segredo que se foi aos poucos transformando em alarido e vozear; a morte de Catarina, dois anos depois, deitando-se de braços abertos, num voo de anjo trágico, do varandim do primeiro andar para o lajedo de granito do pátio. Já sabe que esta criança haverá de ser levada à Aldeia logo após a morte da mãe. Mas o resto é consigo. Você (diz Maria Teresa) é que saberá se é já o tempo de se dizer que o filho dos amores clandestinos de João Pequeno e Catarina Ribeiro da Conceição, em Janeiro de mil novecentos e trinta e um, viria a ser nem mais nem menos que o avô de Aline.
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É curioso. Toda esta história começou porque você propôs a Aline comprar-lhe a Casa em ruínas a Jusante da Ponte de Arame e ela lhe pediu que primeiro falasse comigo. Bem certo é que as palavras são como as cerejas, e que uma leva sempre a outra como brincos de cereja.
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Capítulo XI
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(Onde, em mil novecentos e trinta e um, mais de uma década depois, se regressa à Vila)
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Atravessar o mar, regressar, subir e descer os caminhos em sentido inverso. A fugir de novo. A fugir sempre. Naquela noite, em Julho de mil novecentos e dezanove, João fugia dos outros; agora, quase doze anos depois, fugia sobretudo de si mesmo.
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Há uma diferença entre regressar ao passado e ficar preso nos fios do seu intangível labirinto, ou regressar para vivermos nele o futuro. João Pequeno, em fins de Fevereiro de mil novecentos e trinta e um, nesse preciso instante em que a noite caía no porto de Santos, fugia mais de si e do seu tempo do que procurava um tempo novo. As imagens antigas, esses retratos devolvidos de modo imprevisto, o caminho de terra batida ou um rosto, a luz excessiva ou a varanda sobre o pátio onde crescia uma figueira, não haveriam de servir-lhe para fundar um novo tempo e encontrar-se ou procurar um novo caminho que a memória dos caminhos antigos ajudam apenas a definir melhor nos traçados novos. João Pequeno fugia de si e regressava ao que não existe; fugia de si mesmo mais ainda do que, nesse preciso instante em que caía a noite e o navio saía do porto de Santos a caminho do largo mar oceano, lhe era possível adivinhar. E foi assim que chegou à Casa do Meio da Aldeia que o padrinho lhe deixara em herança; e foi assim que chegou à Vila, numa manhã muito fria de Março, e achou, quase doze anos depois de ter fugido do posto da Guarda por entre dois tiros indecisos, que tudo estava igual e tudo era diferente.
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Uma vizinha, por caridade, socorria Manuel Pequeno; e foi-o mantendo vivo: chegando-lhe uma sopa, lavando-o, mudando-lhe a roupa da cama. Vivo é como quem diz: deitado, imóvel, como se não respirasse; na casa em ruínas; sozinho; sem que um ciciar se desprendesse dos seus lábios secos, crestados, em ferida; os olhos parados num tempo antigo com a sombra a fazer de venda e a descer e a poisar-lhe na íris.
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João subia ao Alto da Ribeira e viu as aves a deixar a lagoa e a rumar à Veiga, aos leitos de cheia, procurando a precária luz da manhã de Março. E chegou a sorrir. Um sorriso breve: a casa, de telhados derruídos, de paredes escalavradas, devolveu-lhe o pesadelo recente, recorrente, num espelho em que o seu rosto se confundia e misturava no rosto do pai adoptivo e num outro rosto indefinido que parecia reverter dos demónios das ausências.
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Desceu do Alto da Ribeira, passou o largo do Toural, subiu a rua Direita, bateu à porta de casa do velho amigo Serapião Afonso. A mãe de Serapião olhou João Pequeno sem disfarçar a mágoa e a censura. Que o filho tinha saído da cadeia no dia vinte e nove de Julho de mil novecentos e vinte e três; que chegou a casa só para juntar a roupa numa mala e sair de novo, sem quase despedir-se, e entrar na camioneta da carreira das três e um quarto e deixar a Vila sem uma lágrima; que nos últimos tempos têm recebido notícias do filho em cartas enviadas de Moçambique com selos de girafas nos sobrescritos; e que tudo estaria certo com a ordem das coisas se não fosse meterem-se (eles) onde não eram chamados e quererem mudar o que está certo por ser assim que o mundo desde sempre naturalmente roda; e que tivesse um bom dia e que agradecia que nunca mais lhe batesse à porta de casa.
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Carlos, o Alferes, mandou dizer que estava cansado, indisposto; que pedia desculpa; que João voltasse mais tarde; que teria todo o gosto em recebê-lo, em abraçá-lo, em recordar com ele as memórias comuns dos velhos tempos de rambóia. Carlos Magalhães, tantos anos depois, continuava fechado no quarto da Casa do Largo; deitado na cama de ferro a olhar pela janela a Encosta dos Matos, os pinheiros erguendo-se numa paisagem nova, os milhafres no seu voo circular planando contra o céu cinzento, contra o céu azul, contra o céu de chumbo, contra o céu distante dos caminhos de terra batida que subiam a Presa das Tílias, Onde Se Juntam Os Rios, o Noro, o Moinho do Cubo. Carlos, o Alferes, não se livraria nunca do pesadelo desses dias antigos de Abril de mil novecentos e dezoito. Ninguém vence uma guerra; ninguém a perde. Uma guerra não se extingue com o fim dos combates, com a rendição ou o erguer das bandeiras vitoriosas, com as negociações, os acordos de paz, os relatórios dos conflitos. Carlos, o Alferes, não se livraria nunca da memória desses dias entre a lama e a névoa, o frio e a humidade, as ratazanas e a sarna, os piolhos e o gás mostarda, as lágrimas e o riso de quem perdera já os seus nomes verdadeiros; o fosgénio a lembrar, na irrealidade do mundo, nas margens de um rio perdido no fim do mundo, o odor do feno cortado nos campos da infância; a roupa, dia após dia, colada ao corpo, entranhada no corpo, misturada no corpo. Há muito que o poder político abandonara os soldados ao acaso e à ruína; deposto Afonso Costa, Sidónio Pais tinha mais que fazer. Mas no dia oito de Abril, finalmente, chegavam as ordens de retirada; os soldados baixavam defesas; deixavam a linha da frente; comemoravam. E foi precisamente nessa noite, de oito para nove de Abril, que começou por se ouvir um ou outro disparo disperso; cortando a sombra devagar. Até que, de súbito, o céu ficou claro, iluminado, fosforescente. As barragens de artilharia alemã, primeiro; madrugada dentro; até que o princípio da manhã começou a deixar a descoberto os corpos amontoados, os restos, os rostos fechados em si mesmos como se nunca uma única luz os tivesse tocado ou adormecido devagar. Entre a deserção e a resistência, no flanco esquerdo das tropas, onde as forças portuguesas e britânicas partilhavam linhas dianteiras, Carlos Magalhães manteve-se no seu posto, com os seus homens, enquanto a artilharia alemã parecia varrer por inteiro as trincheiras e os campos abertos e um silêncio inverosímil presidia a tudo. Era já manhã; a névoa poisada no imenso vale; e as metralhadoras MG-08 corriam ainda as linhas de avanço; e os soldados começavam a disparar às cegas, em desespero, as suas espingardas Lee-Enfield; e Carlos, o Alferes, continuava de roda dos seus poucos homens, gritando, ouvindo o eco da sua voz devolvido pela distância e por esse silêncio que presidia a tudo. Ninguém vence uma guerra; ninguém perde uma guerra. Carlos, o Alferes, não se livraria nunca dessa irrealidade, dessa sombra espessa, desse silêncio feito de lágrimas e alarido, de ausência e deserção de tudo. Uma guerra continua depois da crónica dos conflitos. Carlos, talvez por isso mesmo, mandou dizer que estava cansado, indisposto; e que João Pequeno regressasse mais tarde, que gostaria imenso de recebê-lo, abraçá-lo, recordar as memórias comuns dos tempos de rambóia.
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Na sala da Pensão Americana tinha mudado tudo e ficado tudo na mesma. Fernanda, dona Fernanda, casara com o professor com ar de maricas que chegou à Vila na camioneta da carreira numa manhã de Setembro de mil novecentos e vinte e um e geria o negócio à distância por cartas remetidas do Porto e cada vez mais intervaladas visitas à Vila. Uma reprodução do Rapto de Europa pendurada na parede do fundo, o aparador em madeira de carvalho correndo sob a janela larga do nascente, o louceiro com vidrinhos biselados, as mesas com toalhas de quadrados vermelhos e azuis: João Pequeno entrou e ficou assim rendido à imagem dum tempo devolvido no absurdo da sua impossibilidade. E, de súbito, Luísa. Luísa entrando pela porta do balcão sem tocar o chão da sala da Pensão Americana e a breve luz de Março a atravessar a janela e a poisar nos seus cabelos soltos sobre os ombros.
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Luísa entrou pela porta do balcão e saiu de novo, apressada, ausente, num mesmo e quase imperceptível movimento. João ficou a olhá-la, e depois a olhar o espaço vazio como se a presença de Luísa ainda o enchesse de tudo o que a sua memória recordava desse corpo. E assim ficou ainda durante algum tempo; até regressar ao silêncio a que os quatro homens sentados na mesa do canto se haviam remetido. E então virou-se desajeitadamente, disse «boa tarde», esboçou um sorriso que percebeu ter-lhe saído frio e dissimulado. Uma luz baça entrava pelo vidro da janela rasgada ao nascente. Lá fora não havia uma aragem, não se ouvia o rumor das folhas das árvores ou dos seus ramos suspensos e recortados contra a encosta; um estranho remanso invadia as ruas, o largo, poisava nos telhados das casas. Como se o mundo estivesse a começar; ou como se começasse a fechar-se, vagarosamente, sobre si mesmo. João Pequeno continuava de pé e sentia-se estrangeiro do mundo que lhe era devolvido em irrealidade e abstracção. E então, sem que a memória de um tempo antigo vibrasse em si verdadeiramente, reconheceu Fernando Lalice. E também o velho amigo o olhou e o reconheceu sem surpresa nem sobressalto; e apenas se ergueu em cortesia e o convidou a sentar-se. «Ora então de regresso, João?». Que sim. Mas João Pequeno pressentia já que o mundo se começava a fechar sobre si mesmo, descendo as suas sombras sobre as ruas e as casas, sobre as árvores e o largo, sobre os rostos irreais dos companheiros de mesa.
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João sentou-se. O mais jovem do grupo falava das drásticas alterações climáticas dos últimos anos e do efeito «que só poderá ser nefasto» do fumo das fábricas das cidades sobre a meteorologia: «antigamente havia o Verão e o Inverno; agora anda tudo misturado e já ninguém percebe a ponta dum corno». Mas a sua atenção, aos poucos, desviava-se da mesa. A velha reprodução do Rapto de Europa continuava no mesmo lugar de sempre; pendurada na parede do fundo. E João sentia-se amarrado às figuras do quadro. A estremecer por dentro. Porque a gravura era a mesma e era agora completamente diferente. E nessa diferença se marcava também, decisiva, imperativa, a distância de si às coisas a que julgava regressar.
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João Pequeno tinha conhecido Mário de Andrade em Novembro de mil novecentos e vinte e um: pouco mais de dois anos depois de deixar a Vila, de atravessar o imenso mar oceano, de chegar ao porto de Santos, de passar enfim a viver em S. Paulo. João ficou fascinado com o poeta e com o grupo de amigos; e rendido a essa ideia de provocação permanente, de subversão cultural como princípio de insubordinação ao mundo. Não mais deixou de acompanhá-los sempre que o tempo lhe permitia o abandono das contas e das estratégias de expansão do negócio. E foi assim, tantos anos depois de ver pela primeira vez a gravura pendurada na parede do fundo da Pensão Americana, que João Pequeno se confrontou de novo com uma reprodução do Rapto de Europa. Um jovem pintor falava com entusiasmo do verdadeiro precursor do modernismo e de toda a arte moderna e espalhava estampas numa mesa. «Atenção: estamos em meados do século XVI; e no entanto veja-se como Ticiano se libertou da tirania da linha, da precisa delimitação das formas; reparem nas pinceladas largas e livres; imaginem as marcas dos seus dedos espalhando a tinta, pressionando a tela; e compreendam como a verdadeira arte não imita a perfeição do mundo mas lhe acrescenta a incorrecção que o faz mover na direcção do futuro.» O espaço e o tempo misturam-se. Uma tontura. O eco das palavras antigas de Di Cavalcanti. O cérebro a estalar. Um regresso. João Pequeno recorda: por várias vezes dona Fernanda fizera tenção de retirar a gravura da parede. As manas Custódias, por exemplo, não se coibiam de falar em escândalo. E o padre Pedro chegou a pedir-lhe («não por ele, que sabia o que era a arte») que substituísse o painel por uma paisagem marinha ou uma natureza morta. João Pequeno recorda: os rapazes procuravam uma distracção para atravessar a porta e ficar assim, extasiados, a olhar o seio e as pernas opulentas da mulher deitada no dorso de um touro branco que parecia caminhar à flor das águas; e os comentários sobre o «pedaço de mulher» eram recorrentes. O quadro, nesse tempo, era isso: anjinhos a abençoar com setas de Cupido a mulher quase nua que lhes acenava com um lenço vermelho enquanto fugia no dorso de um touro.
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«Sei muito bem o que quero e para onde vou.» Uma tontura, uma vertigem. Um exemplar do Diário de Notícias aberto nas páginas centrais. O Rapto de Europa. A sublevação pela arte. «A incorrecção que o faz mover.» O mundo. Um mundo novo, um homem novo. Na tarde fria de Março. Lá fora não havia uma aragem, não se ouvia o rumor das folhas das árvores ou dos seus ramos suspensos e recortados contra a encosta. «No mais, que o País estude, represente, reclame, discuta, mas que obedeça quando chegar à altura de mandar.» Uma tontura. Uma forte dor de cabeça. A náusea. «Não acha você, João, que este Professor Salazar?» O passado e o presente. Uma voz e outra, partidas, regressos, viagens, a vertigem do tempo. Sentado na mesa da Pensão Americana. Quem fala? Fernando Lalice? Di Cavalcanti? A sublevação. O respeitinho. Obedecer. Subverter. Regressado de longe a um lugar que não existe. Na tarde fria de Março de mil novecentos e trinta e um. «Sente-se bem?» Uma ligeira tontura. Os quatro companheiros de mesa mergulhados em irrealidade e abstracção. Pede desculpa. Olha mais uma vez a reprodução do Rapto de Europa. Pensa em Luísa. Mas Luísa não aparece na sala. João levanta-se. Sai. É já noite cerrada quando chega à rua. Uma tontura. O Professor de Finanças parece que vai salvar a Pátria.
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São poucas as coisas que regressam do passado quando sentimos que tudo seria pouco para que nos pudéssemos de novo erguer e olhar em frente: a memória de alguém que nos abraçasse ou nos tocasse no ombro e nos falasse com uma voz que saberíamos vir necessariamente do fundo do tempo; a memória de um lugar, de um objecto, de uma noite em que os amigos juraram que haveria sempre uma noite assim. E o desejo: isso que, livrando-nos do amor, nos reconduz ao amor.
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Luísa sabe como os dias e os anos correm devagar por entre os montes; subindo encostas a pique, descendo as vertentes da umbria, atravessando as poldras das enchentes, correndo em caminhos de lama ou na poeira muito fina do saibro dos meses de Julho. Como se tudo fosse tão antigo que parecesse recente; como se a cronologia não fizesse sentido; como se não houvesse tempo na passagem do tempo; como se cada aniversário ou evocação não devolvessem senão o eco do que um dia já foram na memória dos seus risos e das suas lágrimas. Até ao momento em que pressentimos ou compreendemos que tudo já foi. E a lentidão se desenha de novo nos relógios e nas ruas e nos largos e nos pátios e nos corredores das casas.
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Luísa ficou durante o fim de tarde e toda a noite à cabeceira da cama; a olhar o rosto adormecido de João Pequeno. Chamado a correr quando o seu corpo tombou na terra batida do Largo, a dois metros da porta de entrada da Pensão Americana, o doutor Nogueira recomendou «sopas e descanso». Que ele o que estaria era «terrivelmente cansado». E, filósofo, enigmático, teatral, como se recitasse o excerto de um poema ou de um romance, acrescentou: «cansado, talvez, de não se dissolver continuamente em cada instante da vida, ou das pessoas, ou de si mesmo, ou de tudo». Sopas e descanso, portanto. Por isso o levaram a um quarto e ela ficou assim, durante toda a noite, à cabeceira da cama; a olhar o seu rosto adormecido e a ver reflectir-se nele uma inusitada melancolia da passagem do tempo. Até que, de súbito, algo em Luísa vibrou como uma revelação: a revelação do medo e da ausência; da impossibilidade dos regressos; da inevitabilidade do adeus. A manhã entrava devagar na janela do quarto quando João Pequeno acordou. E era sobretudo melancolia o que o olhar de um parecia espelhar no olhar do outro.
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Para onde vão os dias que passam? Que lugar os acolhe ou suspende nos seus múltiplos fios? O que nos pertence ou se perde irremediavelmente no tempo que já não é? Onde ficam as nuvens pretéritas e o vento e a chuva e as corridas das crianças a descer e a subir os atalhos das florestas? O que une ou separa os acontecimentos do passado e a memória que guardamos deles? E se não houvesse mais que o tempo presente? E se não houvesse passado nem futuro? E se a vida toda não fosse senão este momento irrepetível de nos sentirmos vivos em melancolia, intemporalidade e tumulto?
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O mundo é um novelo de fios que desenham a trama; que se unem e desprendem; que se ligam e desligam; que se perdem e encontram. É assim o mundo: quase um rumor: a descer as encostas e os caminhos de terra e o espírito dos declives; a ficar suspenso nas árvores dos bosques; a entrar nas casas; a misturar-se na luz da manhã; a atravessar o mar oceano; a regressar sobre as águas; a ficar para sempre entre os dedos como a memória de tudo. É assim o mundo: um espelho a reflectir o que não existe.
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Luísa imagina por instantes que o passado e o presente se misturam até que tudo seja o que já foi.
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João acordou; olhou Luísa nos seus olhos claros; sorriu; e adormeceu de novo. E depois dormiu durante doze dias seguidos, acordando apenas a breves espaços em que dizia coisas aparentemente sem sentido. E Luísa pensou que talvez houvesse uma diferença fundamental entre o que foi e o que sentimos que foi; e que talvez, a ser assim, João tivesse apenas memórias do que sentiu (não do que viveu) durante o curso dos anos vividos. Porque falava de coisas misturadas, sem cronologia, sem arrumação dos factos. O seu rosto (dela, Luísa), por exemplo (e a sua pele, e os seus olhos «iluminados por dentro», e as suas mãos), ganhavam nas palavras de João Pequeno (na memória que retinha do tempo antigo) um espaço que o tempo real e verdadeiro não lhe concedera (a ela) nunca. João Pequeno, durante esse estado febril, falava do mundo como se o mundo não pudesse deixar de ser o que sentimos que deveria ter sido.
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A geada desses dias de Março só não queimou as ervas ruins e um estranho silêncio poisava em tudo; nem se deu por que a perdiz arrulhasse. Até que a manhã de seis de Abril trouxe a neve das cumeadas distantes e espalhou-a a toda a largura do vale; sobre as ruas e as casas e as árvores. E o sol, a meio da tarde, começou o degelo. E foi então, doze dias depois, que João acordou de novo e saiu da cama. Luísa deixara o quarto por breves instantes e quando regressou viu-o à janela a olhar os campos da veiga como se também ele se preparasse para sair de um antigo estado de repouso vegetativo; e olharam-se e sorriram para que o mundo pudesse começar de novo depois do gelo e da neve. João sentia uma absurda felicidade. Desceu para jantar na sala de entrada da Pensão Americana; riu; contou histórias em voz alta e um ligeiro sotaque do Brasil; bebeu vinho de Anelhe; conversou até tarde com Fernando Lalice. Lá fora ouvia-se o vento a bater no latão dos anexos; depois de tanto tempo sem uma aragem, sem que se escutasse o seu rumorejar nos ramos mais finos do espinheiro-da-virgínia do Toural ou dos vidoeiros do Noro. E quando Luísa subia finalmente a caminho do quarto, viu uma luz trémula a espalhar-se no patamar da escaleira. João Pequeno estava no corredor, de pé, parado, em silêncio, à sua espera; o rosto iluminado pela oval escarlate de uma vela acesa que tinha nas mãos.
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Acordaram agarrados um ao outro. Já era tarde da manhã. A luz entrava pela janela do quarto e a neve do dia anterior quase desaparecera da copa das árvores e das ruas. Talvez a Primavera pudesse começar; talvez o Abril, depois da neve que amaciara o tempo, e já que o Março correra sem uma ponta de vento, não trouxesse as costumadas águas mil.
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E, portanto, rumaram enfim à casa a Jusante da Ponte de Arame. Luísa temia que João Pequeno não estivesse preparado para o confronto com a ruína e a desolação; que a memória lhe devolvesse um lugar que não existiu nunca ou que não poderia já existir depois de tantos anos de silêncio e ausência. Ainda o tentou demover. Mas havia uma alegria infantil no seu rosto, nos seus gestos, nas suas palavras; um entusiasmo inamovível. E falava já da reconstrução da casa e dos muros. E via-se a acordar cedo, a descer ao rio, a pescar nas presas, ao saltão, nos dias quentes, ou a fazer vagarosos lançamentos à pluma até as trutas saltarem fora da água como se saíssem da treva e riscassem, no fundo do vale encaixado, a placidez das manhãs resguardadas pela quietação da montanha. Era um sábado. E ouvia-se o ruído do motor do carro de praça, lá fora, no largo do Toural, quando desciam a escaleira da Pensão que levava à sala da entrada.
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João Pequeno não queria acreditar quando olhou o carro parado no Largo: o tejadilho bege, plano; os seis vidros rectangulares; a oval do motor com a protecção da grelha formada por elementos metálicos verticais; os guarda-lamas castanhos e a sua curvatura em onda a realçar a elegância da carroçaria desenhada em linhas quase rectas; a barra finíssima do pára-choques com uma ligeira curvatura nas extremidades; os dois faróis redondos incrustados na moldura inoxidável; o pneu sobressalente pendurado por correias de cabedal adiante da porta do lado direito; os aros reluzentes das rodas. O motorista sorria; adivinhava o deslumbramento que o carro causava a João Pequeno. «Vê-se que é entendido», disse; antes mesmo que a João se lhe ouvisse uma palavra. «Bem, só pode ser um Fiat Balilla. Mas confesso que desconhecia este modelo.» João Pequeno regressava de novo aos lugares onde nascera. E olhava as amoreiras do Noro, o pó levantado no caminho que subia quase a pique até ao Padrão e seguia depois a encosta do lado poente da serra da Seixa. «Já ouvi falar de si. Mas é claro que não nos conhecemos: estabeleci-me na Vila há pouco mais de dois anos; faz amanhã dois anos e dois meses.» E, lá ao fundo, a espaços, o rio desenhava-se iluminado pela claridade da manhã de Abril; serpenteando por entre a montanha; desaparecendo de novo. O Fiat Balilla avançava na manhã clara e azul. Os pinheiros dominavam a paisagem; de um e outro lado do estradão; elevando-se nas colinas; a perder-se nas sucessivas cumeadas. «Outro destes não encontrará você no país; é este, e dois em Itália; à experiência; veio-me, como imagina, directamente de Turim.» O passado regressava numa luz baça. E João recordou um dia antigo e o rumor da água das ribeiras a descer os alcantilados da serra; o odor das flores da urze pisadas pelas patas dos cavalos; uma casa em Lamego; um outro rosto. «Eu contava-lhe, mas você não ia acreditar.» E então, numa curva súbita, o casario de granito; compacto; os telhados e as pedras inteiras dos vãos; a calçada do caminho que haveria de levar ao Meio da Aldeia. «Contingências da vida. O meu pai era o maior amigo do sócio de Giovanni Agnelli. Um senhor. Um aristocrata, como deve saber. Ele devia-lhe favores de honra. Ou não devia. Outros tempos. A amizade, sabe como é.» O largo do Meio da Aldeia; o novo tanque construído pela ditadura nacional; a mão que Luísa lhe estendia no temor de que tudo o que começava a erguer-se pudesse desmoronar como as paredes das casas onde o silêncio se misturava às raízes das árvores. «Este motor, já viu? Parece um relógio suíço. Isto, quando começar a comercializar-se, é um ver-se-te-avias.» O largo do Meio da Aldeia; os bois barrosos, lentos, a meio da manhã, a regressar dos lameiros das águas de lima; as histórias inverosímeis de Adriano Marques; um tempo antigo; o eco de um tiro a repercutir na memória. Como se tudo se misturasse até à impossibilidade da narrativa; como se os factos e a memória dos factos não coincidissem nem pudessem coincidir. Uma tontura. E a voz de Luísa, distante na manhã clara de Abril de mil novecentos e trinta e um: «O senhor Adriano já sabe: espera-nos aqui por volta das quatro da tarde.» O tempo dividido; a incoerência cronológica; um vórtice; como se nada fizesse sentido.
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São cinco quilómetros desde o Meio da Aldeia à casa a Jusante da Ponte de Arame por um carreiro de terra que os matos foram cobrindo. João e Luísa caminhavam em silêncio. Ambos sabiam que João procurava mais que o lugar onde nascera. Porque na história da sua vida tudo era nebuloso. Segredo e tragédia misturavam-se para desenhar um novelo de fios dispersos. João não desconhecia que a mãe morrera durante o parto na Casa a Jusante da Ponte de Arame e que Manuel Pequeno não era senão o seu pai adoptivo; não lhe era desconhecida a história dos amores clandestinos de Leonor Fontes e do engenheiro das florestas. Mas tudo isso lhe fora aparecendo desligado ao longo dos anos; em rumores e em peças separadas que lentamente foi recolhendo sem nunca conseguir juntá-las nos seus entalhes. Até desistir. Até apagar o passado. E tudo já ser (como se pudesse ser) indiferente.
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João olhou os alpendres derruídos e as paredes quase tapadas pela hera e a vinha-virgem. Mas, antes, descendo o talude coberto de avoadinha e trevo, a memória do lugar foi-lhe devolvida pelo odor da tília do pátio erguendo-se na manhã clara de Abril. As jornadas de pesca quase sempre (João teria dezasseis, dezassete, dezoito anos) terminavam à sombra daquela árvore; estendendo-se a merenda na tábua de carvalho assente sobre duas pedras fincadas. João, por essa altura, desconhecia [e sabia] que tinha nascido ali. E também o mundo, então, era ainda jovem. Como se as coisas fossem nascendo à medida que se lhes dava um nome; como se fossem sendo desenhadas, uma a uma, para que o futuro as guardasse, intactas, na voragem do tempo.
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O mundo, em grande parte, era o rio: as casas da encosta descendo na direcção do rio; a pesca às trutas; o pequeno vale da Casa a Jusante da Ponte de Arame subindo-se das margens do Beça; os montes e as suas veredas e os seus bosques em declive reflectidos na água das presas; os freixos e os salgueiros das margens; as ervas secas do Verão e os paus arrastados pela enxurrada deixando nos ramos dos amieiros as marcas dos anéis da enchente. Mas a casa, agora [e o rio, e a árvore], não era apenas uma ruína: mas a ruína sem o mundo desse tempo. E João recorda a copa imensa da tília silvestre quase arredondada e a surpresa do avermelhado na parte superior dos raminhos jovens; e as folhas em forma de coração; e as suas flores aromáticas e quase transparentes no mês de Junho. A tília, portanto, era a mesma de sempre; metáfora do mundo; árvore dos segredos. O mais certo é que tivesse sido plantada no ano de mil oitocentos e sessenta e cinco. Porque foi em mil oitocentos e sessenta e cinco que Américo Fontes decidiu deixar a Aldeia. Nessa manhã de Março, depois da missa de sétimo dia em memória de Irene Custódio, Américo viu Joaquim Gomes sentado na pedra do adro; as golas da samarra puxadas; um cigarro vagaroso; um sorriso irónico de quem é credor das coisas do mundo. Américo sentiu o sangue a correr-lhe nas veias; lesto. E foi então que
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[Não, claro. Isso é outra história. Já chega de novelos; e de tragédia. Não vem ao caso. A sério. Adiante.]
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Talvez tivesse sido plantada em mil oitocentos e sessenta e cinco. Porque foi nessa altura que Américo Fontes deixou a Aldeia e começou a limpar o terreno da Mina e, aos poucos, a erguer muros e paredes. As casas têm um cheiro que não se repete. Esta casa está impregnada do aroma da tília de folhas pequenas em forma de coração. João vagueia pelo perímetro dessa parte do mundo; sobe a escaleira exterior e, da pedra da varanda, olha o pátio onde a árvore continua a erguer-se como se o seu papel fosse o de testemunhar a ruína e guardar os segredos. Por entre caliça e poeira, por entre pedra miúda e restos dos travejamentos, João vê uma lata de conservas enferrujada, a moldura de um retrato, cacos de loiça e de vidros de espelho, um pente, um bacio de esmalte, uma boneca de plástico sem pernas nem braços, os sinais de fogo onde foi a lareira, cinza calcinada no chão do forno, ferros da cabeceira das camas, um garfo, uma trempe retorcida, um alguidar partido. João vagueia pela casa como se o odor da tília trouxesse o passado e o misturasse ao tempo presente. Mas tudo são restos, pedaços, resíduos. Luísa repete: «vai sendo tarde, João». E enfim regressam. Caminham em silêncio. Até que João pára por um instante como se fizesse um resumo: «Vou reconstruir a casa. Ainda haveremos de viver aqui. Amanhã mesmo começo a tratar das coisas.» A copa da árvore desenhava-se ainda sobre a ruína quando retomaram o caminho de regresso à Aldeia; as águas do rio, ao fundo, desciam o muro da presa, corriam por entre as poldras do gralheiro da curva do Lameiro Grande; o rumor da corrente ouvia-se como o eco de coisas distantes no tempo; e depois o silêncio caiu de novo sobre a montanha.
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Eram quase cinco horas quando chegaram ao largo do Meio da Aldeia. Os cromados do Fiat Balilla reluziam na tarde que declinava como se o pó do estradão, horas antes, não tivesse coberto a carroçaria em várias camadas e não se tivesse entranhado nas juntas e nos prumos metálicos da protecção do motor, nos aros, nos globos dos faróis; e como se o pó, já a seguir, não voltasse a recobrir tudo. Adriano, ainda assim, sorria. «Que belo passeio, ah?» João olhou a casa do padrinho, a cancela do pátio, a escaleira que dá ao terraço, os vidros da janela onde bateu com o nó dos dedos na madrugada longínqua de Julho de mil novecentos e dezanove. Um momento breve; porque de imediato entrou no carro. Sem uma palavra. E, como Luísa haveria de dizer mais tarde, «não olhou para trás uma única vez.»
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Luísa sentia-se confusa. Havia dois tempos que pareciam sobrepor-se e afastar-se. E, entre eles, as interrogações; as dúvidas. Luísa ouvia apenas a espaços os diálogos de João e Adriano. «Isto, como você sabe, é uma máquina; vai onde se quiser, amigo João; ao fim do mundo.» O tempo, a passagem do tempo, era o objecto de reflexão. Luísa compreendia finalmente que o prazer não está no que julgamos ter mas no que se teme perder do que se dá e recebe. Luísa conhecia o prazer de o procurar em si mesma; e de o receber dos outros. Mas só agora compreendia que o prazer verdadeiro se desenha na fronteira dos desastres; na precariedade dos seus excessos e das suas iluminações. Talvez o amor e o prazer pudessem confundir-se. Talvez fosse preciso o tempo (a passagem do tempo) para que o prazer (o amor) alumiasse as suas falhas, as suas ausências. «O mundo, amigo João. Oh, o mundo. O mundo é o que quisermos que nos possa pertencer. A Vila, claro, como sabe…» Porque o amor (o prazer) não existe se a conquista não for a sua permanente definição. E Luísa sentia o prazer pela primeira vez. Procurando-se; lutando por ele; na certeza de que o hedonismo não é senão a máscara do que verdadeiramente procuramos em nós mesmos. «Sim, o Brasil. O Brasil. A imensa Europa. A música, as cidades, as mulheres, amigo João.» O Fiat avançava por dentro da tarde quente; entre a poeira levantada e a sombra que começava a descer. E Luísa sentia-se confusa: descobrira finalmente o amor; e intuía o quanto esse momento era raro entre a terra e o céu.
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Luísa deitou-se. Já era tarde. João e Adriano Marques ficaram na sala de entrada da Pensão Americana. «Fechem-me as portas; não se esqueçam de me apagar as luzes.» Comiam presunto, bebiam canecas sucessivas de vinho de Anelhe. Não havia uma nuvem no fim de tarde; estava um calor quase insuportável. E, de súbito, uma aragem anunciou-se nas folhas minúsculas do espinheiro-da-virgínia do largo do Toural. E, como se o Inverno voltasse de novo, começou a chover. Luísa acordou com as mãos de João a tocar-lhe a pele muito devagar; acordou na surpresa de sentir o seu corpo regressar a si mesmo. A chuva, lá fora: sobre os telhados e a copa das árvores e o zinco dos anexos. Luísa quase não se movia. As mãos de João Pequeno tocavam a sua pele como se apenas a pressentissem; como se a procurassem, um poro e depois outro, desde um tempo antigo; como se, procurando o seu corpo, o desenhassem pela primeira vez. A chuva, lá fora: o barulho da chuva sobre os telhados e a copa das árvores e o zinco dos anexos. Até à vertigem ou à certeza de que o amor existe num único momento para sempre. E, com a chuva ainda nos telhados, acordou; a luz indecisa a entrar no quarto. Estendeu as mãos. João não estava a seu lado. Chovia ainda. Chovia sempre. E Luísa temeu que tudo (o mundo, o prazer, o amor) não passasse de um sonho.
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Choveu durante dias a fio. As ribeiras galgaram as margens, as águas correram no vale, subiram as linhas das encostas. Nunca mais se soube de João Pequeno; nem de Adriano Marques. Até que chegou à Vila a notícia de um carro encalhado nas pedras a seguir ao gralheiro da Presa do Lameiro Grande. Só podia ser que tivesse caído da Ponte de Arame e o arrastasse a correnteza; as tábuas, a meio da ponte, estavam partidas. Mas era impossível compreender o que levara um Fiat Balilla, numa madrugada chuvosa de Abril, a aventurar-se sobre uma ponte pedonal que ligava, é certo, uma parte do mundo a outra parte do mundo, o estradão da Aldeia às estradas de macadame e às luzes das cidades longínquas.
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Capítulo XII
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(Onde Maria Teresa continua a puxar os fios da história, já que mais ninguém, começando pelo A., parece interessado em fazê-lo)
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Ao povo não se lhe entaramelou a língua na boca; a complexidade do caso só parece tê-la acirrado. As estranhas circunstâncias do desaparecimento de João e Adriano, de resto, assumiam carácter secundário; porque em havendo sexo à mistura, ou a suspeita dele, é tiro e queda. A isso, desde sempre, a língua do povo não renuncia. E de Luísa, como imagina, o menos que se disse na Vila foram coisas do género «ai esta a mim nunca me enganou a filha da puta».
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Luísa começou por não dar ouvidos ao mundo. Como se João apenas demorasse a chegar ao almoço e em breve estivessem juntos a mostrar ao povo e à sua língua bífida que o amor se sobrepõe a tudo. E haveriam então de falar do futuro e da luz da primavera a entrar nas copas e a poisar nas folhas do ano dos negrilhos dos quintais. Mas depressa uma nuvem pareceu ficar poisada sobre os telhados da Pensão Americana e o jardim dos Correios e as ruas quando descia ou subia as ruas da Vila. E o azul do céu, aos poucos, distanciava-se; e não era já distante: diluía-se no acinzentado das manhãs e das tardes de Maio e Junho até desaparecer e ser a memória vaga de um tempo que, tudo indicava, não poderia regressar mais aos seus nomes.
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Eu disse uma nuvem poisada nos telhados; talvez fosse mais correcto dizer o silêncio escondido no fundo da terra. Porque é esse pressentido rumor que faz deslocar as placas dos pequenos lugares da província; porque é esse alvoroço sem rosto que se mistura à água das nascentes para sentirmos, depois de tocá-la e recolhê-la com as mãos em concha, a perturbação da passagem do tempo; porque é o silêncio que traz o esquecimento e a memória do que esquecemos assim.
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Fernando Lalice, Agenor e Arnaldo Adão, o Lindinho, almoçaram na sala da entrada da Pensão Americana. Era um sábado de Julho, de finais de Julho de mil novecentos e trinta e um. O calor poisava na abóbada do vale como uma nuvem espessa: agarrada à pele das crianças, agarrada às folhas das árvores, misturada no ar incandescente. Ninguém sabe ao certo o que se passou nesse dia e nos dias e nos meses que se sucederam a esse dia em que Lalice comemorava a empreitada de remodelação do mobiliário do colégio do Eiró. Imagino o Lindinho a lamentar para si mesmo que Luísa já não lhe pedisse ajuda na preparação do clafouti de maçã reineta; que Agenor, sabendo embora da gravidez de Luísa, a olhasse ainda como se um rio desaguasse no seu corpo; e imagino que Lalice, muito dado à farinheira frita e à truta de escabeche, fosse pedindo «vinho, minha querida, até lhe chegarmos com um dedo». Era, como lhe digo, uma tarde quente de finais de Julho. O povo, claro, falava da gravidez de Luísa; dessa «vergonha»; e ligava o sexo (e a desonra, e a infâmia) ao desaparecimento de João Pequeno e Adriano numa noite de chuva e vento sobre os telhados e os vidoeiros e os pinheiros bravos. Porque o sexo decorria da ideia de prazer; e o prazer representava o pecado supremo de sentir-se o corpo por dentro dele. O certo é que Luísa estava feliz; ria; falava em voz alta. Lalice é assim que a recorda durante o almoço, trazendo as sobremesas, o café, o medronho de Fiães: «Cheguei a pensar que o filho da puta do João Pequeno nunca tinha saído do seu quarto da Pensão e que Luísa se ria de nós a esconder um segredo.»
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Mas, depois do almoço, Luísa fechou a porta, correu as cortinas das janelas do piso térreo, cerrou as portadas, puxou o trinco das cancelas de ferro do pátio. E desapareceu. Para sempre. E a casa ficou fechada; e ninguém entrou por essa porta, galgando os três degraus da escaleira, atravessando a sala da entrada da Pensão Americana, olhando a gravura do Rapto de Europa pendurada na parede do fundo, subindo depois até ao andar dos quartos, abrindo uma janela, chegando-se à varanda que dava para o Largo do Toural, até à sexta-feira do dia dezanove de Agosto de mil novecentos e quarenta e nove.
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É uma história nebulosa. Ninguém sabe como Luísa saiu da Vila. Ninguém a viu sair. Ninguém a viu a descer a escaleira da Pensão, ninguém a viu a esperar a camioneta da carreira no largo do Toural, ninguém a viu na rua Vinte e Oito de Maio, ninguém a viu a atravessar a Senhora da Livração. Ninguém a viu. Desapareceu. Simplesmente. Nunca mais ninguém a viu depois do almoço desse sábado à tarde de Julho. Contaram-se histórias, claro. Que a luz duma vela acesa se desenhava, em algumas noites, contra a janela do seu quarto da Pensão Americana; que uma mulher atravessava as poldras da Presa das Tílias em havendo lua, e que só podia ser ela. O certo é que Luísa desapareceu como se nunca tivesse existido ou como se o seu nome tivesse sido riscado das folhas das árvores do Noro e do jardim dos Correios.
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Numa sexta-feira, no dia catorze de Agosto de mil novecentos e quarenta e nove, um jovem chegou à Vila, subiu os três degraus da escaleira da entrada da Pensão Americana, abriu a porta e entrou. E, no dia seguinte, às seis e meia da tarde, quando a procissão seguia a caminho do Alto da Ribeira, estendeu as colchas coloridas no parapeito da varanda e ficou assim, belo, iluminado por dentro, quase como uma aparição, a olhar os anjinhos e os andores. O filho de Luísa chamava-se Mário e o seu rosto era quase uma cópia do rosto da mãe.
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Veja; veja-se como são as coisas; os caminhos que levam. A história é nebulosa, como lhe disse. Mas sabe-se que Luísa teve o seu filho no Porto; em casa de Fernanda, dona Fernanda, e do professor com ar de maricas que tinha chegado à Vila na camioneta da carreira numa manhã de Setembro de mil novecentos e dezanove. Pouco mais se sabe de Luísa. Fernanda tinha setenta e cinco anos e morreu em Julho desse ano em que Mário Pequeno chegou e abriu a porta da Pensão e estendeu colchas na varanda. E talvez tivesse ficado como guardiã única dos segredos e dos mistérios desses obscuros anos.
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Bem vê. Já sabe. João Pequeno veio do Brasil fugindo, se assim se pode dizer, de si mesmo. Veio quando a sua vida parecia enovelar-se irremediavelmente e correr sem rumo, e quando as imagens antigas lhe foram devolvidas no alarme da sua irreparável ausência. João Pequeno, então, não sabia que Catarina Ribeiro da Conceição ficara grávida; à espera de um filho seu. Talvez nunca o tivesse chegado a saber. A verdade é que Catarina regressou a Portugal, a Lamego, à casa junto ao Seminário e ao Paço Episcopal, e teve uma criança a que deram o nome de Margarida. Margarida é a minha mãe. Poupo-lhe pormenores. O avô de Aline e o meu avô não são senão uma e a mesma pessoa. O destino acabou por juntar-me a Aline numa noite de copos e por descobrir-nos como primas irmãs. Compreende agora porque lhe disse que falar de Aline era falar de mim?
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Capítulo XIII
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(Onde, em vez de continuar em prosa escorreita este folhetim que começava a ter algum interesse, se cede à tentação de transcrever, sem edição nem emendas, alguns textos de Aline)

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1.

Uma casa

como se não existisse

como se nunca pudesse ter existido
como se a ninguém pertencesse ou pudesse pertencer-lhe
como se a memória não sobreviesse às primeiras chuvas ou à poeira das tardes muito quentes de julho e as suas paredes ruíssem de não haver um gesto que as defendesse
de não haver um rumor sobressaltado a entrar por dentro da idade
de não haver um cântaro com água
a mesa comum
a pedra da lareira
um retrato na sala de jantar nos dias de cerimónia
como se não houvesse o vento nos telhados e a chave e um pátio e uma varanda de onde se viam as encostas e as cumeadas e daí o mundo e as suas desconhecidas frases
como se não houvesse o amor e o desejo
como se não houvesse uma tília com as suas folhas em forma de coração
como se os alicerces e os púcaros e as rosas não pudessem misturar-se
como se a luz do verão não abrisse por dentro os frutos guardados nos tabuleiros de vime
como se não existisse
como se nunca pudesse ter existido
como se a ninguém pertencesse ou pudesse pertencer-lhe.
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2.
O prazer sem as suas roldanas sobressaltadas
sem os seus fios erguidos e desatados entre o corpo e a nuvem
deixando aos poucos a luz das nascentes entregue à variação dos seus pronomes possessivos
como se a abundância e a claridade e a indiferença trouxessem o tédio por osmose
como se apenas tivéssemos frio e puxássemos a roupa e adormecêssemos misturando na água as sementes azuis da valeriana
ou o torpor das folhas da tília
ou o incandescente ramo vagaroso da hipnose
como se a inquietação tivesse já desmoronado em si mesma
uma a uma
as barreiras precárias da exaltação
sem os seus fios erguidos e desatados entre o corpo e a nuvem.
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3.
Procurar então a raiz de que nos desligámos por inércia e no labirinto das linhas do ábaco ou nos sulcos das parcelas do cadastro a caligrafia trémula dos primeiros anos
a pedra do lagar e o esquecido rumor do vento nos arames das vinhas
o dia claro
a sombra nas paredes de cimento do telheiro do pátio
o aroma das amoras inverosímeis nos muros dos caminhos
a raiz de que nos desligámos por inércia enquanto a escassez acumulava a cinza em redor do lume.

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4.

Um caule ou a linhagem ou uma pedra ou as águas de lima ou uma sílaba ou a imagem esculpida a navalha na madeira dos lódãos
ou ainda o vento nos ramos dos negrilhos
a lâmpada e a raiz da urze acesa no inverno
coisas assim que depois de irremediavelmente as termos perdido é que parecem regressar como se nos pertencessem desde sempre
como se nenhuma defesa resistisse a essa vocação incombustível dos desastres
ou o desejo exigisse o vórtice e a incineração
e a melancolia impusesse aos meteoros uma condição antecedente
como se não respirássemos do outro lado das margens dos incêndios enquanto não viesse o abandono e nos muros intransponíveis começassem a inscrever-se os mapas dos territórios obscuros da infância e a nervura mais íntima das suas quatro folhas desiguais
enquanto nos desenhos a lápis não emergissem as ilhas desertas dos primeiros nomes ou os enigmas de uma língua cuja aprendizagem exige o prévio desprendimento
de tudo.
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5.
Os muros intransponíveis é um modo de dizer
confesso que nunca fui muito dada à inventariação dos escombros
que nunca foi o meu exercício preferido este de retirar as camadas sucessivas de sedimento
o entulho acumulado do lado de dentro das palavras e das fotografias dos aniversários
o de reconstruir a peça de cerâmica de renda
o de puxar por um fio e trazer de longe a memória dos fustes densos das árvores inclinadas nas margens antes do inverno
confesso
nunca a melancolia me comoveu da distância que vai do sonho à devolução das suas estilhaçadas imagens
eu olhava a chuva oblíqua dos poemas e via o retrato iluminado das searas pelo verão imenso
eu entrava nas represas e só ouvia o rumor das águas desenhando nas pedras o círculo imperfeito da passagem do tempo
confesso
dos paraísos às vezes é preciso fugir a sete pés
prefiro o veneno da transfiguração
prefiro ao júbilo o prodígio da ignorância ou o reconhecimento da precariedade do prazer
confesso que nunca fui muito dada à inventariação dos escombros
eu quero tudo e o seu contrário
às vezes apetecia-me dizer
«eu sou a deusa das contradições».
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6.
Como se não houvesse tempo nem movimento
como se não houvesse palavras para nomear as coisas
deixa adormecer as mãos sobre o corpo até não teres uma biografia
dias sucessivos devolvidos por imagens vagas
é do outro lado de ti que tudo acontece
uma criança corre sozinha numa estrada de terra batida que não vem ainda desenhada nos mapas
é no inverno
há-de ser inverno por muitos meses e estações que o tempo acrescente aos calendários das paredes das tabernas
é no inverno e tocas vagarosamente a labareda azul da insónia como se fosse possível adormecer as mãos sobre o corpo até não ter uma biografia.
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7.
Deixar assim o vento adormecido sobre a urze e o tojo onde os caminhos foram perdendo o seu desenho de serpente nas encostas
deixar as folhas da hera ou a trepadeira do sono com as cinco pétalas de cobre nos muros de pedra e as raízes atadas à sombra dos meses frios
que nenhum rumor se acrescente às fendas de circulação das águas minerais ou dos depósitos de vertente para que a erosão exerça o ofício de retirar as palavras uma a uma dos seus leitos inclinados repondo apenas à superfície os materiais mais leves da lenta deposição aluvial
deixar o tempo misturar-se às folhas do chão da floresta até rasurar nas fotografias de satélite as linhas antigas do cadastro
os muros das culturas temporárias
a luz errada dos encontros
deixar assim o vento adormecido sobre a urze e o tojo
deixar que o silêncio seja a única reverberação das paredes da casa e os dias apenas amanheçam como se alguma coisa estivesse ainda para acontecer
e então chegasses com a memória da vara de lódão
em vez dos milagres
e não procurasses nada.
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8.
Um automóvel corre disparado nas avenidas da cidade
uma avenida e outra avenida correm disparadas contra os automóveis da cidade
o néon reflecte nos charcos de água de novembro um estranho movimento oscilatório
depois das chuvas é preciso repor os sobretudos e as gabardines nas lojas
depois das chuvas e do vento os dirigentes bancários trazem nas disquetes embrulhadas em laços de seda e nos nós de windsor as máquinas automáticas das crises contra os vendavais
passando ausente dos palcos e dos coretos e da flor única e última do agave uma criança pára por instantes a caminho da escola a olhar o vórtice repercussivo dos escritórios do comércio e das repartições de finanças
os semáforos variam entre o verde e o vermelho nos bares e nas praças interditas à demasia ou ao recreio
há um tumulto [e quase passam as aves] que parece queimar por dentro a alucinação das montras iluminadas
adormeces
adormeces devagar entre a torrente e a conciliação e o trânsito
e o domínio sempre presente da passagem do tempo
às vezes é tarde
não é tarde nem é cedo são
quatro da manhã
e um automóvel corre disparado nas avenidas da cidade.
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9.
Há uma casa e o mais certo é que seja em novembro
que é quando o inverno irrompe nos pátios sem ser ainda o seu tempo
e no entanto há um caminho a correr na orla do rio e todas as águas nascem desse rio
e nesse rio desaguam todas as águas
e a memória devolve-te as grinaldas e o alecrim nas ruas e os mapas da infância e o largo onde haveria de ser verão se ainda lá estivesses
porque novembro podava com minúcia as roseiras bravas e no entanto as mulheres das fotografias exerciam ainda o ofício de misturar em tabuleiros de vime as flores sucessivas enquanto os homens viravam os fenos à lâmina e as cantigas de trabalho eram copiadas dos registos de michel giacometti
há uma casa e por instantes imaginaste o verão
o mais certo é que seja em novembro
que é quando o inverno irrompe nos pátios sem ser ainda o seu tempo.
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10.
Adormeces devagar
lá fora os automóveis correm disparados nas avenidas da cidade
no sonho sobes a escada íngreme do coreto e tens uma folha à tua frente
será o mês de novembro será o verão
raramente escolhemos os papéis que representamos
dizes a tua deixa e estranhas o silêncio de súbito quebrado como um vidro numa tarde de domingo
«talvez na minha vida nunca tivesse perdido nada que tivesse tido»
e sentes que só então regressas a ti mesma
será o mês de novembro será o verão
na verdade só então adormeces.
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Capítulo XIV
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(Onde, além do mais, se dá conta dos eventos associados à restauração da casa)
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O telefone acordou-me por volta das quatro da manhã. Era Aline. Numa urgência a dizer que afinal sempre vendia a casa; se continuava interessado. Uma conversa estranha a meia da noite, a meio dos sonhos. Eu, ensonado, a insistir que falássemos depois; e ela que não: «quero resolver isto o mais depressa possível». Foi uma conversa breve. Repeti os termos da proposta que lhe fizera há uns meses. Aceitou sem reservas. «Há é que tratar dos papéis. Amanhã podemos encontrar-nos?». Marcámos um encontro para o dia seguinte; ao almoço. Eu ainda sem saber muito bem o que pensar de tudo; ela como se estivesse febril e tivesse que desfazer-se da casa para livrar-se da febre.
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As minhas indicações eram simples (o costume; o lugar-comum): respeitar o objecto a reconstruir; guardar, tanto quanto possível, as memórias antigas. Leonardo é um arquitecto jovem. O lugar fascinou-o, sobressaltou-o. E propôs passarmos ali um fim-de-semana. Era em Junho. Dormimos ao relento, em sacos-cama, sob os ramos imensos da tília do pátio. E só então senti verdadeiramente que a casa começava a pertencer-me e eu a pertencer-lhe.
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Calcorreámos a envolvência como se preparássemos uma minuciosa cartografia em que a emoção e o território se confundissem. Subimos e descemos os caminhos de pé posto onde cresceram, por mor da ausência repetida, a urze e o tojo; caminhámos nas margens do rio a ouvir o rumor antigo das águas correntes e a pisar as ervas e os fentos que se alargavam nas plataformas sombrias de pequeno declive; atravessámos, a medo, vagarosamente, a ponte suspensa na garganta cortada na pedra, a direito, ligando assim as duas encostas por tirantes metálicos e pranchas de castanho partidas ou apodrecidas; guardámos folhas de bétulas em cadernos de apontamentos; lamentámos as manchas contínuas de pinheiro bravo; e regressámos atravessando o rio mais uma vez, nas poldras, um pé e depois o outro sobre as pedras erguidas no gralheiro como esculturas mágicas a devolver-nos a memória do tempo.
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Leonardo fala da paisagem como uma construção humana:
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É incrível imaginar que há pouco mais de cem anos não existia aqui um único pinheiro; e que hoje não haveria outra espécie por estes montes e vales se os incêndios não fossem devastando as matas contínuas de resinosas feitas para isso mesmo: para a combustão e o avanço do deserto. Essa foi a maior transformação de todas. O Estado, na sua acção, não visa a felicidade do indivíduo concreto: move-o a ideia abstracta de um interesse «superior». Tão superior e geral e abrangente que, vai-se a ver, acaba por vogar muito acima (e portanto fora) dos interesses específicos das pessoas comuns. O interior sempre foi vítima desta desvelada atenção do Estado. Porque o impulso da acção governativa reverte do princípio de que é preciso acudir ao todo. Ora um Estado centralizador nunca compreendeu que o todo é, ou deveria ser, a soma das partes. E, portanto, em nome do todo abstracto fodeu o todo concreto ao derruir as partes que o constituem. Foi o bem comum que justificou o envio a estas longes terras de topógrafos e engenheiros florestais por finais do século dezanove. As experiências com o pinheiro bravo participavam do desígnio de revitalização económica da Nação «como um todo». O obscuro bem comum, no entanto, como cedo se verificou, começava pela lesão do interesse particular. Ora a densidade populacional sempre foi um conceito a que o Estado não soube nunca ficar imune. Pelas razões óbvias de sobrevivência política, claro. Mas por uma outra decisiva razão: o Estado é uma cortina por detrás da qual há sempre um rosto ou vários rostos e essa necessidade tão humana do reconhecimento e do aplauso. E o interior não dava, nunca deu, notícias, visibilidade, votos, vivas ou sinais de aclamação. Fomos sempre poucos; e esquecidos na exacta proporção desse número. Não contávamos; não contamos. E o bem comum mais vasto que o Estado prossegue não vai agora empancar numa família ou numa comunidade dispersa e sem outra voz que a do silêncio. Por isso a gente da província temia a intervenção do Estado. A ideia era a de que onde metesse a pata ou vinha foda ou canelada. Viu-se com esse exercício experimental de finais do século dezanove a que apenas não se deu seguimento por mor das crises e das trapalhadas políticas que se sucederam até chegar, tantos anos depois, o salvador da Pátria e do interesse público. E o que começou então por fazer-se foi apenas o que os sucessivos distúrbios governativos impediram que mais cedo se fizesse. O Estado (a sua pata) veio de novo às periferias e à baixa densidade. Vários objectivos pretendiam atingir-se com o Plano de Fomento Florestal de mil novecentos e trinta e oito; múltiplos, menos o de salvaguardar os interesses dos que viviam nos lugares onde a floresta haveria de avançar sobre baldios e terrenos comunitários. «Reafirmar a continuidade da alma nacional», «desenvolvimento industrial», «exportação», «reconstruir bosques que os antepassados não separaram nunca da sua aldeia distante quando dela se lembravam em terras de outros continentes» – eis os termos e as considerações preambulares de um Plano em que o Estado garantia o progresso da indústria por via da condenação à fome de quem assistia assim ao avanço do abstracto interesse nacional, do bem comum, a roubar-lhe os pastos concretos e a lenha e os matos e a madeira e o direito a usar o que lhe pertencia. Mas a transformação da paisagem, claro, começou muito antes. E teve sempre a mão do homem. Com a diferença de que, ausente a pata estatal, os equilíbrios se garantiam. Passámos ontem no crasto da Cidadela e você não se teve, olhando os restos das casas circulares e as escadas interiores por onde se acedia às muralhas defensivas, que não dissesse: «até aqui os pinheiros chegaram, os filhos da puta». E olhou o pequeno bosque de carvalhos na vertente cortada quase a pique sobre o ribeiro que desagua no Beça, e as duas ou três linhas de salgueiros e freixos serpenteando na margem, como se essa, multiplicada pelas encostas e pelas cumeadas e pelos terraços das vertentes, fosse a imagem que a sua memória do paraíso lhe devolve. Mas não é assim: nós, há uns cinco milénios, chegámos aqui e cortámos as árvores antigas e queimámos os matos. E se deixámos esses carvalhos e esses vidoeiros foi apenas porque não davam terrenos de pastagem ou o declive não justificava a empreitada. O homem fixava-se ao território e precisava de mel e cereais e lameiros e carqueja e tojo e carvão. O que lhe quero dizer é que a paisagem é uma construção humana. E que esta tília foi plantada por alguém que procurou, contra a inclemência, o prazer de uma sombra no Verão. O que lhe quero dizer é que aquela parede de cimento deveria ser mantida no projecto de reconstrução da casa. Sei que vai contra os seus princípios de manter ou recuperar a memória original do perpianho, das padieiras de pedra, dos tabiques, das empenas sem emparelhamento. Mas há uma história. Há sempre uma história. Que inscrição é aquela na parede de cimento a indicar uma data? O que aconteceu aqui que levou alguém a deixar na parede a inscrição do ano de mil novecentos e sessenta e oito? Seja o que for. É tudo uma construção do homem: a natureza, um bosque, uma casa, uma tília erguida num pátio. Até esta mancha contínua de pinheiros que a pata do Estado trouxe de longe para que hoje possamos sentir, apesar de tudo, o odor da resina a atravessar o rio e a poisar nesta mesa feita com uma tábua das bobines dos cabos eléctricos dos anos cinquenta.
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Dois dias depois, quando regressávamos, quando chegávamos à linha de festo, parámos e olhámos mais uma vez a curva do rio, a casa encaixada no limite da plataforma que subia a encosta, a tília erguida no pátio, os pinheiros bravos, os salgueiros com o verde ténue das suas folhas, os troncos brancos dos vidoeiros, os musgos dos ramos dos carvalhos, o azul e o amarelo e o vermelho e o castanho e outra vez o verde escuro da serra. E o que víamos era uma construção humana; feita do riso, da tragédia, da tristeza, do sonho. Leonardo olhava o fim de tarde, a luz de Junho a estender as suas sombras nas cumeadas sucessivas, como se a paisagem e os desenhos dos seus blocos de papel cavalinho se misturassem. Eu dividia-me perante a imagem dos milagres. E, de súbito, pela primeira vez, de um modo inexplicável, sentia-me ali um intruso: a olhar as árvores distantes, a olhar o ondulado dos montes reflectido no espelho invertido das águas do rio.
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Leonardo teve que acompanhar-me e defender o projecto que parecia condenado a não passar o primeiro crivo: o da «integração paisagística na envolvente». Aos técnicos do município causava-lhes particular maçada «a empena de cimento à vista», para não falar do portão vermelho do pátio que, «está a ver, não se coaduna». Eu ainda perguntei: «Mas não se coaduna com o quê?» A resposta pareceu-me sábia, defensiva, evasiva: «Bem, desde logo com o espírito do legislador; é ver o RGEU.» Impunha-se um resumo: a casa (eles diziam «a ruína») localizava-se em Reserva Ecológica Nacional e não existiam evidências de que o alpendre fosse uma pré-existência, o que obrigava a uma «consulta interna do ponto de vista jurídico», ponderando-se melhor a letra exacta da mais recente alteração ao diploma – «porque antes, oh, era taxativo: proibição de quaisquer novas áreas impermeabilizadas»; e, por outro lado, prevendo-se a reconstrução de muros no exterior, e sobretudo uma intervenção de suporte de terras no talude erosionado, exigia-se a obtenção de prévio parecer favorável da Comissão Regional da Reserva Agrícola Nacional. Bem. Cada coisa a seu tempo. «Comecemos então pelas questões específicas do projecto.» O chefe de divisão urbanística, numa voz calma, num tom pedagógico, ligeiramente enfadado com a nossa incompreensão das leis, explica: «Está a ver, isto é uma intervenção em meio rural; e lá diz o artigo centésimo vigésimo primeiro do RGEU, na sua actual redacção, que uma nova construção não pode prejudicar a beleza das paisagens; trata-se dum princípio liminar de indeferimento; isto para não invocar a conjugação com as disposições genéricas do PDM sobre as áreas rurais ou com o número dois do artigo vigésimo quarto do sessenta de dois mil e sete no que respeita às condições especiais relativas à estética das edificações. Ora, a ruína [eu, em vão, procurava corrigir: a casa] localiza-se em área de especial relevância paisagística e na proximidade [eu, em vão, procurava corrigir: a mais de cinco quilómetros por um caminho de pé posto] de uma aldeia preservada – para usar, se me permitem, a terminologia legal. Tudo o que seja cimento nas empenas ou pinturas nos vãos em vez de madeira à vista, está a ver, é contrariar o espírito, ou mesmo a letra, do legislador. Veja se me compreende: estas objecções prévias que levantamos é no seu interesse; não vá dar-se o caso de o processo, dando entrada oficial nos serviços com tantas pontas desligadas, levar a um indeferimentozinho que nunca mais, não sei se está a ver.» Leonardo, as faces vermelhas, crispado, movia-se na cadeira da sala de reuniões. Em silêncio, tocando-lhe no braço, olhando-o nos olhos, encareci que se acalmasse. E disse: «pois muito bem: vamos então, ponto por ponto, ver no que concluímos. Se houver alterações a fazer, fazem-se. E não quero ser, acreditem, o responsável pela destruição das paisagens, pelo incumprimento do artigo centésimo vigésimo primeiro do RGEU ou pelo desrespeito ao espírito do legislador.» A coisa corria assim há três meses; esta era já a terceira reunião; eu, confesso, começava a ficar um bocadinho cansado.
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Acordámos em eliminar as intervenções previstas no exterior: o suporte de terras no talude erosionado e a reconstrução de muros além do pequeno troço onde as pedras arrumadas eram ainda visíveis e não se exigiam mais que intervenções de manutenção. Acordámos em eliminar o alpendre; e acordámos, com Leonardo a dizer-me nos olhos a sua objecção, em abdicar, mantendo-se a madeira à vista, da tinta vermelha no portão do pátio. Mas não chegámos a acordo quanto à parede do corpo central. E decidimos que o projecto não abdicaria da empena de cimento.
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Leonardo despediu-se dos técnicos da Câmara com uma daquelas suas frases enigmáticas: «Só gostaria que compreendessem que uma casa é o lugar antes de todas as coisas que haverão de existir; que uma casa é o lugar onde se cruzam as memórias do que haverá de ser.» Saí da reunião antevendo como certa uma proposta técnica de indeferimento à consideração superior. Mas já estava por tudo.
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Sentia-me, de um modo inexplicável, um intruso: a olhar as árvores distantes, o ondulado dos montes reflectido no espelho invertido das águas do rio. O processo de licenciamento já tinha entrado na Câmara. E desci, talvez pela última vez, o carreiro que levava à Casa a Jusante da Ponte de Arame. Era uma tarde de Verão; ouvia o rumor do fio de água a correr nas poldras; e o resto era um silêncio que vinha do fundo do tempo e que parecia afastar-me de cada uma das pedras da casa e de cada uma das folhas da tília do pátio.
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Capítulo XV
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(Onde regressa Aline e se regressa às reflexões sobre o tédio e o mais que se verá)
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Aline conhece a diferença entre a melancolia e o tédio. Sabe que do tédio nunca se regressa; que o tédio é o fogo apagado ou a labareda incombustível; a indiferença sem a ostentação que tantas vezes decorre dela. A melancolia, por sua vez, é um fogo ainda por arder; um vagaroso lume a meio de reacender ou apagar-se. E é disso que Aline se sente trespassada: da espada melancólica do tempo.
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Lembra-se de tocar a pele de Manuela. Era uma noite de Inverno e Manuela adormecera no seu colo. Aline olhava a mulher que tanto continuava a fasciná-la pelos segredos que ocultava (a si mesma?) na suposta transparência do que dizia; como se, despindo-se, ficasse cada vez com mais roupa a tapar-lhe o corpo que desnudava ou procurava despir. Manuela desconhecia o desejo. E Aline não compreendia como era possível alguém não sentir, não ter sentido jamais na sua pele a erupção demorada da água. E foi então que lhe tocou a curva do ombro e olhou esse rosto adormecido: essa estranha sombra num rosto adormecido. Era uma noite de Inverno. E Aline imaginava que o tédio poisara nos pulsos de Manuela a sua teia incombustível.
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Desaprender. Procurar um nome para cada uma das coisas. Esquecer as evidências. Procurar desde o princípio. Desde os alicerces da casa. Procurar desde a raiz e construir as frases de novo. O que liga e separa a ternura e o desejo? Não sabia. Mas Manuela ficava no seu colo, aninhada no seu corpo, como se o desejo começasse num gesto de trazer de longe a memória da chuva, da lareira acesa, do pó levantado nos caminhos de Verão: antes do sexo, antes do lume erguido nos ombros, nas mãos, na pele inteira dum corpo desprotegido no meio da tempestade. Aline tocava a pele adormecida, abandonada às suas mãos vagarosas. Como se a não despertasse o desejo, o amor: mas a memória de um lugar onde o desejo, então, haveria de erguer-se por dentro da noite.
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Aline dividia-se. Sabia que não era possível regressar à casa da infância (passara o resto da vida a tentar libertar-se da memória desse tempo) e sabia que não era possível fazer de conta que uma história começa quando decidimos que é tempo de começar. A história de uma vida começa sempre muito antes. Uma história, qualquer história, começa sempre muito antes ou muito depois das primeiras frases. Por isso se diz às vezes que não existe senão uma única história no mundo; e que não é possível contar essa história.
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Esta história (este capítulo duma história que não é possível contar) começou pelas contingências da blogosfera: meter um ou outro texto disperso, em prosa, por entre poemas e desenhos. Os textos, no entanto, foram convocando a necessidade da narrativa. Foi pena não ter-se optado por contar a história verdadeira que um dia o narrador se propõe contar. A de uma Aline que não estudou à noite; que não arranjou um emprego de secretariado; que nunca se entendeu com os talheres dos restaurantes e que sempre se sentiu ridícula nos saltos altos dos casamentos e nos vestidos de alças; que nunca se interrogou sobre as diferenças entre o tédio e a melancolia; que sempre se sentiu usada no amor; que, cedo, confundiu o desejo com a ternura e a ternura com o momento em que um homem é capaz de dizer o seu nome a tremer de frio. Esta Aline verdadeira não sentiria nunca o sobressalto do desejo até o desejo reverter da ternura e da protecção do amor. E, no fundo, quase nada as separa. A história de uma é a história de outra. Ambas saíram de casa e ambas sentiram a impossibilidade do regresso. Ambas se perderam em si mesmas. Ambas procuram ainda, sempre, a seu modo, o amor.
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A Aline desta história, confrontada com a possibilidade do regresso, acabou por decidir vender a casa e apagar as memórias antigas. Era uma noite de Inverno. Lá fora, por dentro da noite, os automóveis corriam nas avenidas da cidade a caminho de lugar nenhum. Manuela adormecera no seu colo. E Aline olhava-a sabendo que a vida exige escolhas; e que tudo se decidiria entre o tédio e o sobressalto.
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Capítulo XVI
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(Onde se procuram reconhecer os limites das cavadas e se compreende como é acertado o rifão dos tolos que se enganam com papas e bolos)
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«Deixe arder.» Isto dissera Leonardo da primeira vez que me acompanhara à Casa a Jusante da Ponte de Arame quando eu me lamentava da paisagem das encostas devastadas pelo fogo. «Se é duma verdadeira floresta que se trata, os incêndios fazem parte dessa procura constante de equilíbrios; porque a floresta é um organismo vivo que se desenvolve por etapas sucessivas; porque o fogo faz parte desse processo evolutivo natural. Não é o caso, como sabe: estes pinheiros são um arremedo das antigas matas de folhosas; o fogo, neste caso, não representa uma fase nos estádios de sucessão do seu desenvolvimento. Seja como for: o homem parece ter desenhado estas florestas de resina combustível para isso mesmo: para os incêndios como um fim em si mesmo. Deixe arder, portanto, que algo acabará por renascer das cinzas» – dizia Leonardo. E, de facto, pouco tempo depois, os matos pareciam emergir da terra queimada como se apenas esperassem o fogo para afundar as suas raízes e erguer na tarde as flores amarelas e azuis. A verdade é que não passei a olhar os incêndios de um modo diferente. A tristeza de ver a floresta reduzida a cinzas, a galhos retorcidos, a carvão, a troncos queimados, permanecia em mim de cada vez que o fogo deixava nos montes esse rasto de desolação e inquietude; como se o mundo se rendesse assim, e nós com ele, à fuligem e à devastação.
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Tinha jurado não regressar. Tinha jurado esquecer de vez o sonho da casa na margem do rio. Mas precisava de confrontar-me com a realidade. Por isso regressei nesse fim de manhã de Maio. A Aldeia estava diferente. As obras trouxeram gente e o café transformara-se num restaurante de comida instantânea e pratos económicos. Um terrapleno permitira a instalação de um parque de máquinas no largo da escola, entre a Casa do Morgado e o forno do povo. E um estradão de tout-venant, correndo de nível por entre os campos agrícolas e os montes, largo, deixando taludes instáveis nas bermas cortadas a pique, levava à zona do paredão.
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Eu conhecia a devastação dos incêndios. Mas nada podia comparar-se a este cenário depois da desmatação, da desarborização, dos caminhos rasgados a eito pelo meio dos montes e dos vales, descendo às linhas de água, subindo às colinas, das nuvens de poeira levantadas à passagem das máquinas de rastos, dos jipes, dos tractores. Em vão procurei reconhecer os lugares onde passeara por entre um bosque de bétulas, pelo carreiro ladeado de freixos, pela cavada com seus muros derruídos a demarcar o cadastro antigo, pelas ribanceiras de mato rasteiro, pelas margens onde cresciam os fetos e as giestas, pelas clareiras planas dos carvalhais, pela sombra dos pinheiros bravos cobrindo a terra de caruma. As cicatrizes do aterro e da escavação anunciavam o plano onde haveriam de estender-se, de encosta a encosta, contra um paredão imenso de cimento, as águas da albufeira; e delimitavam já, em redor, perdendo-se no curso sinuoso dos talvegues, a linha de nível do regolfo.
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O pesadelo começara há um ano.
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Temi logo o pior quando o engenheiro da Câmara me telefonou com falinhas mansas. Eu a perguntar «mas então os gajos da Reserva Agrícola Nacional?», e ele que não, que «isso era o menos». Enrolava, exagerava nos advérbios e nos diminutivos, não atava nem desatava. Combinámos uma reunião para essa tarde. Lá fui do Porto numa corrida. O engenheiro não sabia como encetar a conversa. Gaguejava. As faces muito vermelhas, as mãos nos bolsos, encolhido; abanava os ombros, arrumava e desarrumava os papéis na secretária de mogno.
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A racionalidade fascina os telejornais menos que os gráficos da predição da catástrofe. E há uma imagem que nos seduz; que o nosso tempo privilegia: a do paraíso perdido e do sentimento de culpa que nos ficará para sempre agarrado à pele. O sentimento de culpa reverte duma ordem moral: regressamos nele, portanto, a uma menoridade de que o exercício da razão supostamente nos libertara há trezentos anos. O prejuízo (e a desonra) de tutelas assim subordinadas foi há muito descrito por Kant. Mas a ordem moral precisa de símbolos: o espectáculo e a catástrofe possibilitam-nos abundantemente: catástrofes naturais, de preferência, em que o homem se constitua como causa e vítima potencial. É por estas e outras que as previsões climáticas de longo prazo ficaram a cargo dos políticos e dos ambientalistas (que o arauto do aquecimento global seja um político, e não um cientista, deveria dar-nos que pensar): os meteorologistas são sisudos e a ponderação de que usam é desconforme à velocidade e à vertigem do nosso tempo.
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A baixa densidade deu os terrenos ao Estado Novo que lhe permitiu, entre outros objectivos edificantes ao serviço do vasto interesse público, «reafirmar [pelo pinheiro bravo e a eliminação dos baldios] a continuidade da alma nacional». É só um exemplo. A baixa densidade sempre se pôs a jeito: tivesse gente, poluísse, produzisse dióxido de carbono, contasse nas estatísticas. Mas não: uma consabida desgraça sem densidade nem peso. Por isso a legislação, sempre muito prevenida, se apraz de costume em defendê-la ou em dar-lhe, para que não fique à margem dos contributos, a possibilidade de concorrer para o interesse público geral e abstracto.
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O engenheiro, portanto, gaguejava, abanava os ombros, arrumava e desarrumava os papéis na secretária de mogno. Que nunca lhe ocorrera que a coisa se viesse a precipitar assim de repente. Que havia rumores, claro: mas que já ninguém acreditava na concretização de planos que vinham do tempo da outra senhora. Fosse como fosse: que, enfim, pouco haveria a fazer em face do óbvio interesse público da iniciativa já anunciada pelo Governo. Em resumo: as operações urbanísticas estavam suspensas na zona de influência da albufeira de (ao engenheiro não ocorria assim de repente o nome de código da albufeira) prevista no Programa Nacional das Barragens com Elevado Potencial Eléctrico. Preparavam-se já, de resto, os procedimentos relativos à instauração das respectivas medidas preventivas. «Achei que lhe devia dizer isto em primeira mão.» Agradeci. Ainda confuso. A Casa a Jusante da Ponte de Arame, se bem compreendia, iria ser sacrificada em nome do Protocolo de Kioto e do esforço de redução das emissões globais do dióxido de carbono.
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O engenheiro não me parecia mau tipo e eu começava a lamentar tê-lo conhecido nestas circunstâncias. «Acho que merecemos uma imperial. Que lhe parece?» Já passava da hora de fecho do expediente: anoitecera. Atravessámos a rua, entrámos no Arsénio, sentámo-nos em silêncio. Eu continuava confuso. E foi ele a quebrar o gelo: «Veja isto pelo lado bom: pelo menos o projecto não vai ser reprovado à mor da teimosia do arquitecto Leonardo em manter a empena de cimento.» E acabei por sorrir.
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Aline estava desolada; e persistia em desfazer o negócio, em devolver-me o dinheiro que recebera por uma casa condenada à submersão. Expliquei-lhe que não me devia nada; que a nenhum de nós era dado adivinhar este desfecho infeliz. Mas Aline insistia. E acabei por compreender que a questão tinha a ver essencialmente com ela mesma: com a necessidade de que lhe pertencesse a casa de família no momento em que a barragem começasse a represar as águas; no momento em que os soalhos, e as paredes antigas de perpianho, e a empena de cimento, e as cornijas, e a tília imensa do pátio, e os muros, e as lágrimas, e os sonhos, ficassem soterrados para sempre no fundo do vale.
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Capítulo XVII
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(Onde se conclui que uma história podia começar no preciso momento em que se decide ser o tempo de findá-la)
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«Eu considero dois amores entre a gente: o primeiro é aquele comum afecto com que, sem mais causa que a sua própria violência, nos movemos a amar, não sabendo o que, nem o por que amamos; o segundo é aquele com que prosseguimos em amar o que tratamos e conhecemos. O primeiro acaba na posse do que se desejou; o segundo começa nela, mas de tal sorte, que nem sempre o primeiro engendra o segundo, nem sempre o segundo procede do primeiro.»
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«A feia é pena ordinária, porém que muitas vezes ao dia se pode aliviar, tantas quantas seu marido sair de sua presença, ou ela da do marido. Considere que mais vale viver seguro no coração, que contente nos olhos; e desta segurança viva contente; que pouco mais importa haver perdido por junto a formosura, que vê-la ir perdendo cada dia, com lástima de quem a ama. Isto sucede sempre nas mulheres, já pela idade, já pelos achaques, a que toda a formosura vive sujeita. Donde com muita razão se queixava um discreto, não de que a natureza acabasse as formosas, mas de que as envelhecesse.»
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«Mulher néscia, coisa é pesada, mas não insofrível. Procure o marido emprestar de seu juízo às acções de sua mulher aquela discrição que vir lhe falta. Assim o fará entendido, e se ele também o não for, pouca pena lhe dará que ela o não seja.»
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D. Francisco Manuel alertava que da formosura deve folgar cada um de a ter, mas não que a mostre. Perigosa mercadoria é esta tão propícia ao que de pior levará: ao desejo que nasce e irrompe e nos perde de nos perdermos nele em nós mesmos. Aline conhece os avisos: excessivamente os teve consigo. E sente que as páginas da Carta de Guia, ou outras por elas, demasiado tempo ficaram poisadas no tempo e nas cómodas de casa, nas tábuas dos escanos, nas mesinhas de cabeceira dos quartos fechados por dentro. Um dia, há muitos anos, o desejo irrompera como se o lume das águas e da terra se concentrasse nas suas mãos desprotegidas; um jovem, no movimento exacto de cortar a lenha, no momento exacto do preciso golpe repercutido na abóbada do vale, despertara em si o que a Carta de Guia censurava por revelar essa perigosa mercadoria do corpo a conhecer-se e a libertar-se das amarras do mundo.
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E sabe-se lá.
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Aline quase não reconheceu a Aldeia. Mas talvez a mudança mais em si estivesse e menos nos terraplenos do largo, no anúncio luminoso e nos cartazes de papel brilhante do café, nos hambúrgueres e nos bitoques, no parque de máquinas, nos estradões rasgados pelo meio dos campos lavrados do nascente. O ondulado dos montes, das linhas de cumeada sucedendo-se na distância, devolviam-lhe aos poucos o tempo antigo e aproximavam os lugares e a memória que ficara deles. E então, na curva do caminho que levava à Colina das Pedras Amarelas, ficou por instantes a olhar a Ponte de Arame e o rio subindo e quase tocando as suas tábuas velhas e os cabos metálicos que a suspendiam de um ao outro lado do vale. Aline e Manuela olhavam em redor; e, de súbito, a Casa desenhou-se no seu perfil inconfundível. As águas da albufeira, represadas por uma barragem de cimento erguida a mais de cem metros de altura, subiam vagarosamente as curvas de nível, avançavam pelos degraus da entrada, cobriam já os muros que ligavam o pátio e a adega da Mina. O silêncio parecia reverter dos lençóis subterrâneos. E Aline, também ela em silêncio, olhava esse mundo antigo que desaparecia para sempre no fundo das águas.
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E foi então que Manuela lhe tocou no ombro. As suas mãos a iluminar a tarde.
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[Cacela, Gardunho, Segirei. 3 de Fevereiro de 2008, 3 de Janeiro de 2009]

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