domingo, janeiro 25, 2009

6.

João não conhecia ainda essa sensação estranha entre a náusea e o torpor: o almareio do levante. Chegou a casa, era ainda cedo. Ouvia o rumor contínuo que atravessava paredes e divisórias: mas não ligava esse rumor à rarefacção do ar. Adormeceu. Acordou a pensar que a cama rodava sobre um eixo imaginário. Uma tontura feita do tempo suspenso de fios invisíveis atados aos pulsos. E foi então que uma luz se acendeu e apagou por três vezes na casa do outro lado da rua; dessa espécie de pátio comum. Um código, talvez. A noite atravessada apenas por esse rumor da ondulação sucessiva. E um quarto iluminado: as cortinas abertas a diluir as fronteiras entre público e privado, intimidade e alarido. E ela, Tatiana, a atravessar o quarto da casa do outro lado da rua. Os contornos do seu corpo a desenhar-se como uma aparição: a sobrepor-se ao permanente marulhar e à irrealidade do mundo. E João reflectia sobre as fronteiras difusas; sobre a membrana fina que separa ficção e realidade, sonho e chão lavrado. Estava confuso. Olhava esse corpo nu e a imagem do desejo a incendiar-se por dentro da noite, a misturar-se ao rumor do levante. João não conhecia ainda essa sensação estranha entre a náusea e o torpor. Paola. Tatiana. Três versos. Um corpo nu. O sueste. A noite a correr, vagarosa, por entre realidade e ficção, sonho e chão de areias depositadas pelo tempo.