quarta-feira, fevereiro 04, 2009

10.

O dia amanhecera sem uma nuvem, sem uma névoa. O ar lavado à transparência. Uma linha precisa delimitava o horizonte. As águas do mar pareciam derramar-se no vácuo. João imaginava-se a caminhar sobre esse muro estreito e a olhar na direcção do infinito no momento em que lhe seriam devolvidas todas as imagens do mundo. Mas a meio da tarde ergueu-se uma aragem ligeira que vinha do Norte e trazia consigo uma nuvem cinzenta. E quando entrou no automóvel, já escuro, a chuva começou a cair. Virou à direita na estrada nacional. A caminho de casa, com os movimentos lentos do limpa pára-brisas a trazer-lhe o torpor, sorriu a pensar nos acontecimentos desse dia. Na coincidência desses desencontros quase simultâneos, dessa troca de nomes. Duas pessoas, em momentos diferentes, dirigiram-se-lhe como se o conhecessem desde sempre. Uma jovem, Ana Leonardo, belíssima, a saia muito curta de golfe com os bolsos cortados quase na vertical, saía do club house quando João seguia a caminho do gabinete de trabalho. «Como é possível que não te recordes de mim?» Depois, ao almoço, enquanto comia uma tosta mista e bebia cerveja, percebeu que alguém, sentado no banco alto do balcão, o olhava com insistência. Cruzaram o olhar por um breve instante. O homem era-lhe completamente desconhecido. Mas aproximou-se da mesa do canto e abordou-o cerimoniosamente: «Como vai, António? Então deixou o teatro?» João virou de novo à direita na rotunda do Monte Pequeno, os movimentos lentos do limpa pára-brisas a acompanhar a cadência da noite. Que coincidência era essa de, num mesmo dia, lhe confundirem o rosto, o nome, a identidade? Subiu ao quarto e ligou o computador. Mas estava cansado, com sono. Deitou-se. Adormeceu. Quando acordou subiu a persiana. Chovia ainda. Tatiana, corpórea, concreta, desenhava-se, além da janela, do outro lado da rua, nua, no quarto iluminado. Sorriu de novo ao lembrar-se que tinham combinado sair juntos no fim de semana. Uma chuva miúda, uma indecisa bátega, erguia uma cortina entre as duas casas. João sentiu uma tontura quando abriu o mail, quando imaginou que todas as coisas do mundo se misturavam nesse preciso momento num vórtice devolvido pela cortina translúcida do aguaceiro de Outono, quando compreendeu que continuava ligado, desde manhã, à mesma irrealidade. Tinha uma mensagem de Paola Natucci: «Che cosa sei disposto a fare per me?» João não compreendia como podia estar apaixonado por um nome sem rosto, como podia tocá-lo assim a intranquilidade. E ao fundo, contínuo, sobressaltado, continuava a ouvir-se o rumor do levante.