domingo, outubro 05, 2008

22.

João Pequeno não queria acreditar quando olhou o carro parado no Largo: o tejadilho bege, plano; os seis vidros rectangulares; a oval do motor com a protecção da grelha formada por elementos metálicos verticais; os guarda-lamas castanhos e a sua curvatura em onda a realçar a elegância da carroçaria desenhada em linhas quase rectas; a barra finíssima do pára-choques com uma ligeira curvatura nas extremidades; os dois faróis redondos incrustados na moldura inoxidável; o pneu sobressalente pendurado por correias de cabedal adiante da porta do lado direito; os aros reluzentes das rodas. O motorista sorria; adivinhava o deslumbramento que o carro causava a João Pequeno. «Vê-se que é entendido», disse; antes mesmo que a João se lhe ouvisse uma palavra. «Bem, só pode ser um Fiat Balilla. Mas confesso que desconhecia este modelo.» João Pequeno regressava de novo aos lugares onde nascera. E olhava as amoreiras do Noro, o pó levantado no caminho que subia quase a pique até ao Padrão e seguia depois a encosta do lado poente da serra da Seixa. «Já ouvi falar de si. Mas é claro que não nos conhecemos: estabeleci-me na Vila há pouco mais de dois anos; faz amanhã dois anos e dois meses.» E, lá ao fundo, a espaços, o rio desenhava-se iluminado pela claridade da manhã de Abril; serpenteando por entre a montanha; desaparecendo de novo. O Fiat Balilla avançava na manhã clara e azul. Os pinheiros dominavam a paisagem; de um e outro lado do estradão; elevando-se nas colinas; a perder-se nas sucessivas cumeadas. «Outro destes não encontrará você no país; é este, e dois em Itália; à experiência; veio-me, como imagina, directamente de Turim.» O passado regressava numa luz baça. E João recordou um dia antigo e o rumor da água das ribeiras a descer os alcantilados da serra; o odor das flores da urze pisadas pelas patas dos cavalos; uma casa em Lamego; um outro rosto. «Eu contava-lhe, mas você não ia acreditar.» E então, numa curva súbita, o casario de granito; compacto; os telhados e as pedras inteiras dos vãos; a calçada do caminho que haveria de levar ao Meio da Aldeia. «Contingências da vida. O meu pai era o maior amigo do sócio de Giovanni Agnelli. Um senhor. Um aristocrata, como deve saber. Ele devia-lhe favores de honra. Ou não devia. Outros tempos. A amizade, sabe como é.» O largo do Meio da Aldeia; o novo tanque construído pela ditadura nacional; a mão que Luísa lhe estendia no temor de que tudo o que começava a erguer-se pudesse desmoronar como as paredes das casas onde o silêncio se misturava às raízes das árvores. «Este motor, já viu? Parece um relógio suíço. Isto, quando começar a comercializar-se, é um ver-se-te-avias.» O largo do Meio da Aldeia; os bois barrosos, lentos, a meio da manhã, a regressar dos lameiros das águas de lima; as histórias inverosímeis de Adriano Marques; um tempo antigo; o eco de um tiro a repercutir na memória. Como se tudo se misturasse até à impossibilidade da narrativa; como se os factos e a memória dos factos não coincidissem nem pudessem coincidir. Uma tontura. E a voz de Luísa, distante na manhã clara de Abril de mil novecentos e trinta e um: «O senhor Adriano já sabe: espera-nos aqui por volta das quatro da tarde.» O tempo dividido; a incoerência cronológica; um vórtice; como se nada fizesse sentido.