18.
João acordou; olhou Luísa nos seus olhos claros; sorriu; e adormeceu de novo. E depois dormiu durante doze dias seguidos, acordando apenas a breves espaços em que dizia coisas aparentemente sem sentido. E Luísa pensou que talvez houvesse uma diferença fundamental entre o que foi e o que sentimos que foi; e que talvez, a ser assim, João tivesse apenas memórias do que sentiu (não do que viveu) durante o curso dos anos vividos. Porque falava de coisas misturadas, sem cronologia, sem arrumação dos factos. O seu rosto (dela, Luísa), por exemplo (e a sua pele, e os seus olhos «iluminados por dentro», e as suas mãos), ganhavam nas palavras de João Pequeno (na memória que retinha do tempo antigo) um espaço que o tempo real e verdadeiro não lhe concedera (a ela) nunca. João Pequeno, durante esse estado febril, falava do mundo como se o mundo não pudesse deixar de ser o que sentimos que deveria ter sido.