Já vi gente de pouca instrução a falar
emocionadamente da Vénus de Milo
ou a esforçar-se por compreender os mecanismos
que nos permitem fruir um objecto
e passar a sentir além do que sentíamos
conscientes de uma nova experiência
que vem da descoberta desta
respiração assistida. E isso sei
que leva muitas pessoas sem especial instrução
a esforçar-se por procurar o instante
a partir do qual a fruição de uma
obra de Mark Rothko é já um outro lugar
além do lugar onde estávamos.
Também conhecemos todos
esses indisponíveis para a emoção estética
que chamam picassadas a
toda a pintura que não imita o real
como se a arte não fosse
exactamente o contrário: interrogar o real
a cada momento que passa.
O certo é que dos intelectuais haveria
de esperar-se uma outra disponibilidade
para o entendimento mais geral
da mecânica das artes: dos intelectuais
que não compreendem
que o futebol é tão belo como a Vénus de Milo
haveria de esperar-se
no mínimo a humildade do reconhecimento
dessa incompreensão ou dessa indisponibilidade
para aceder à emoção sobressaltada
de uma experiência nova: haveria
de esperar-se o reconhecimento
da distância que os separa das qualidades do objecto
e assim os impede de aceder
ao milagre de uma
respiração mediada. Mas oh
nem pensar: muitos intelectuais
caem com uma simplicidade impressionante
nas armadilhas da vulgaridade
e do pior que fecha por dentro
as cápsulas estáveis do lugar
comum. E dizem coisas do género
tanta gente a morrer de fome
e a sociedade a idolatrar uns selvagens
cheios de dinheiro que não sabem fazer mais
nada do que dar uns pontapés na bola.
Estes mesmos intelectuais
ficam de pêlo eriçado
se os que morrem de fome
ou perdem os empregos
não atingem que um quadro de Paula
Rego inspirado na Madame Butterfly
seja vendido por oitocentos
e cinquenta mil euros em tempo de crise
ou que o retrato de Henrietta
Moraes atinja em leilão um valor superior
a vinte e cinco milhões. Aceito
que ao meu amigo
Adolfo lhe custe compreender o preço
que se paga por uma mulher assim enviesada
só porque Francis Bacon
a pintou: custa-me que um intelectual
não compreenda que há no futebol
uma arte feita de um conjunto
de várias artes
e que essa arte contemporânea vai
muito além da caricatura tão apressada
de uns ignorantes ao pontapé
na bola. Mas ainda bem que o preconceito
não anda apenas do lado dos que riem
da pintura abstracta
para se perceber que os artistas
e os intelectuais em geral
não são mais nem são menos
do que um cavador de enxada
ou do que um alfaiate meu conhecido
que escondia a sete chaves
os moldes de pano cru
para que não lhe copiassem a arte
de fazer um fato de caxemira.