Primeiro treinamos o disfarce de sermos cosmopolitas
e depois procuramos livrar-nos dos disfarces
de fazer de conta que o somos: tiramos as máscaras
com a ilusão de que assim nos disfarçamos melhor
e de que assim nos é possível fazer de conta
que não trazemos merda agarrada aos sapatos.
Nas grandes cidades chegávamos a dar-nos
bem: Paris ou Copenhaga não são muito
diferentes de uma aldeia de montanha
no que respeita ao modo como os outros nos olham
e olhamos os outros. Quer dizer: a cumplicidade
ou a distância que entre as pessoas se estabelece
nos pequenos lugares não é substancialmente
diferente da que o anonimato proporciona
nas praças e nos largos das urbes. E ser rural
chegava a deixar de ser esse peso de falarmos
ou fazermos um gesto e descobrir-se
à distância a pesada pronúncia ou o cheiro
da urze entranhado na pele. O problema
são os espaços sociais de média dimensão:
um jantar com amigos de amigos num restaurante
caro ou uma conferência num anfiteatro
sobre a imortalidade da alma: o nosso inglês
mesmo que seja perfeito vê-se que foi aprendido
a custo nos livros de um liceu
da província; os nossos fatos têm sempre
desusados vincos e parece que foram
feitos para alguém um pouco mais gordo
ou um pouco mais magro do que nós; os nossos
argumentos filosóficos descambam inevitavelmente
no senso comum e risível dos provérbios;
e nunca acertamos os talheres ou os copos
com as protocoladas necessidades deles.
Compreendemos um dia que não adianta
colocar uma máscara e outra máscara
sobre o rosto ou retirá-las todas na ilusão
de que assim nos é mais fácil disfarçar
a ruralidade que somos como se não pertencêssemos
ainda e para sempre aos lugares afastados
onde nascemos e onde ficámos mesmo quando de
lá saímos muito cedo. E portanto resta-nos
ser rurais e trazer a merda agarrada
aos sapatos com a arrogância e a displicência
com que os cosmopolitas à mesa manobram
os talheres bastando-nos a nós o disfarce
de não sentirmos vergonha quando não sabemos
se é de faca e garfo ou com uma colherzinha
de entre tantas facas e tantos garfos e tantas colherzinhas
que nos devemos meter ao petit gateau de chocolate.
Claro que não é isto que pode salvar-nos.
Mas a partir de certa altura já quase
nos basta ter uma máscara que nos disfarce
até sermos exactamente o que somos.