domingo, maio 02, 2010
[Chamo-me Luísa]
Chamo-me Luísa. Sou uma personagem de ficção. Devem conhecer-me, pelo menos, do Primo Basílio. Mas sou também a drª Luísa Fragoso duma novela reles do Manuel Arouca, a Maria Luísa dum romance notável e esquecido de José Lins do Rego, a mulher do conto do Onésimo que saiu dos Açores na ilusão de que é possível fugir ao destino que o acaso nos ditou, a personagem obscura ou exaltante de um outro livro cujas páginas nunca te será dado leres. Já fui concubina e princesa, criada de servir, engenheira electrotécnica, assalariada rural no Alentejo. Já vivi no Iémen, numa cidadezinha da Bretanha rodeada por um bosque, em Angra do Heroísmo, em Portimão. Já fiz de tudo. Só nunca fiz de mim mesma. E por isso nunca soube o que era (de facto) acordar ou sentir o desejo ou o cheiro da terra molhada, ter frio, ter medo, amar, ser feliz. É verdade que já caminhei sobre o fogo, que já morri, que já ressuscitei, que já fui condenada ao degredo, que já conheci a glória, que já traí, que já dormi no deserto, que já fui heroína numa batalha em que os guerreiros mais corajosos acabaram por desertar. Mas fui sempre, senti sempre, por interposta pessoa. Por isso chego a pensar que trocaria tudo, sei lá, por um instante em que pudesse (de facto) sentir. Podia ser a dor, tudo bem. A dor que me trouxesse as lágrimas mais concretas. E que essas lágrimas me corressem na cara, sim, mesmo que então me descobrisse a mais desgraçada das mulheres à face da terra.