CHAMO-ME JOÃO, tenho vinte e três anos e garanto que os dias estão a ficar mais pequenos. É certo que deixei os estudos muito cedo para trabalhar nos bares e no que fosse aparecendo. É certo: sinto muitas vezes que me falta um pouco da ciência dos livros. Mas sei como funcionam as coisas do mundo e do universo vasto onde se perde o que de nós mesmos sabemos. Orgulho-me, aliás, de conhecer o que tantos desconhecem sobre os astros e os asteróides, sobre a passagem do tempo, sobre a Próxima de Centauro, sobre Andrómeda ou as galáxias espirais. Reconheço: aprendi com a Teresa a olhar o céu no silêncio da sua casa, nos bancos corridos do jardim de pequenos arbustos aromáticos, na açoteia onde montou um telescópio, e a ficar assim rendido ao silêncio das estrelas, dos cometas, dos outros dois iluminados planetas do nosso sistema solar: aprendi com ela, reconheço, a experimentar em mim a lancinante percepção da pequenez do que somos. Mas não é isso o que vem ao caso. O que vem ao caso é a evidência de que os dias, dia após dia, e quando deveria ocorrer exactamente o contrário, estão a ficar mais pequenos. Recordo-me: despedimo-nos com lágrimas no dia vinte e dois de Março. E recordo-me por não esquecer a frase que a Teresa me deixou como memória desse desencontro: «Separamo-nos, João, no momento em que a elíptica cruza o equador celeste». Era o equinócio: quando as águas do mar se erguem num rumor subterrâneo, afastado, vindo de longe e de lugar nenhum. Quando as aves, de súbito, deixam os ramos das árvores e cruzam o céu em largas e vagarosas elipses. Quando o dia e a noite têm a mesma exacta duração. Isso recordo-me. E sei que a partir dessa data, até que o solstício de finais de Junho inverta os movimentos do mundo, os dias continuam a crescer progressivamente em duração e intensidade de luz. Não se compreende, pois, que aconteça exactamente o contrário. Que cada vez anoiteça mais cedo, que cada vez a manhã demore mais um pouco a levantar-se da terra: hoje é dia doze de Junho, são quatro da tarde e é quase noite. E é assim, como se a sombra e a passagem do tempo tivessem uma origem comum, que a memória de Teresa regressa. É quase noite. Confuso, indeciso, rendido à evidência das sombras, caminho ao acaso na rua deserta. E uma tristeza sem nome parece caminhar a meu lado, tocar-me nas mãos, entrar comigo pela noite dentro numa noite que deveria ainda ser dia, claridade, luz e exaltação.
CHAMO-ME TERESA, tenho vinte e três anos e garanto que os dias estão a ficar mais pequenos. É estranho: hoje é dia doze de Junho, são quatro e meia da tarde (isto é um modo de dizer) e é já de noite. Demorei a acreditar que não era em mim apenas que sentia crescer a sombra e a sentir que a sombra me tocava mais tempo. Vivo sozinha. A minha casa fica quase na cumeada, erguida sobre a vertente aplanada do ribeiro do Álamo. Vejo dali, olhando na direcção da terra ou na direcção do céu, quase tudo o que me interessa no mundo: o meu pequeno mundo e simultaneamente vasto, inominável, sem fim nem princípio. O Guadiana: as suas águas, em Maio, a reflectir um outro azul ou a correr na vazante, lamacentas, depois da chuva, sob uma nuvem espessa que vem de Espanha e parece ficar poisada nas areias da península de Cacela Velha. O mar da baía recolhido ao silêncio do Inverno. O pátio. Os muros de xisto. As hortas minúsculas, as últimas. Uma eira em ruínas, uma nora, uma cisterna. A amendoeira grande. As paredes de cal. A açoteia com tijoleira de Santa Catarina. Canes venatici e cor caroli, a sua estrela alfa. Bootes e arcturus. Cassiopeia. A ursa maior, a ursa menor, dubhe e polaris. Draco, lynx, coma berenices. Mas hoje sei que o mundo não faz sentido sem as suas mãos a tocar as minhas mãos. Hoje sei que a sombra vai crescendo, dia após dia, noite após noite, à medida que vai ficando mais ténue, ou mais viva, a memória das suas mãos nas minhas mãos. Atravesso o jardim e fico por algum tempo sentada na pedra do muro do pátio a olhar a noite. Uma noite escassamente iluminada pela lua que começa a erguer-se no horizonte. Uma noite estranhamente fria, estranhamente feita de um silêncio que parece nascer das profundezas da terra. E é então que vejo um automóvel a aproximar-se. Dois faróis acesos a iluminar o estradão e os troncos das alfarrobeiras do pomar. Um automóvel a cortar o silêncio ancestral da noite em fatias descontínuas. E fico assim, por instantes, interdita, a imaginar que talvez amanhã a luz se erga mais cedo, que talvez amanheça mais cedo e que tudo regresse à ordem natural das coisas.