sábado, dezembro 27, 2008

Capítulo XVI

(Onde se procuram reconhecer os limites das cavadas e se reflecte sobre o rifão dos tolos que se enganam com papas e bolos)

1.

«Deixe arder.» Isto dissera Leonardo da primeira vez que me acompanhara à Casa a Jusante da Ponte de Arame quando eu me lamentava da paisagem das encostas devastadas pelo fogo. «Se é duma verdadeira floresta que se trata, os incêndios fazem parte dessa procura constante de equilíbrios; porque a floresta é um organismo vivo que se desenvolve por etapas sucessivas; porque o fogo faz parte desse processo evolutivo natural. Não é o caso, como sabe: estes pinheiros são um arremedo das antigas matas de folhosas; o fogo, neste caso, não representa uma fase nos estádios de sucessão do seu desenvolvimento. Seja como for: o homem parece ter desenhado estas florestas de resina combustível para isso mesmo: para os incêndios como um fim em si mesmo. Deixe arder, portanto, que algo acabará por renascer das cinzas» – dizia Leonardo. E, de facto, pouco tempo depois, os matos pareciam emergir da terra queimada como se apenas esperassem o fogo para afundar as suas raízes e erguer na tarde as flores amarelas e azuis. A verdade é que não passei a olhar os incêndios de um modo diferente. A tristeza de ver a floresta reduzida a cinzas, a galhos retorcidos, a carvão, a troncos queimados, permanecia em mim de cada vez que o fogo deixava nos montes esse rasto de desolação e inquietude; como se o mundo se rendesse assim, e nós com ele, à fuligem e à devastação.