sábado, setembro 13, 2008

10.

João Pequeno tinha conhecido Mário de Andrade em Novembro de mil novecentos e vinte e um: pouco mais de dois anos depois de deixar a Vila, de atravessar o imenso mar oceano, de chegar ao porto de Santos, de passar enfim a viver em S. Paulo. João ficou fascinado com o poeta e com o grupo de amigos; e rendido a essa ideia de provocação permanente, de subversão cultural como princípio de insubordinação ao mundo. Não mais deixou de acompanhá-los sempre que o tempo lhe permitia o abandono das contas e das estratégias de expansão do negócio. E foi assim, tantos anos depois de ver pela primeira vez a gravura pendurada na parede do fundo da Pensão Americana, que João Pequeno se confrontou de novo com uma reprodução do Rapto de Europa. Um jovem pintor falava com entusiasmo do verdadeiro precursor do modernismo e de toda a arte moderna e espalhava estampas numa mesa. «Atenção: estamos em meados do século XVI; e no entanto veja-se como Ticiano se libertou da tirania da linha, da precisa delimitação das formas; reparem nas pinceladas largas e livres; imaginem as marcas dos seus dedos espalhando a tinta, pressionando a tela; e compreendam como a verdadeira arte não imita a perfeição do mundo mas lhe acrescenta a incorrecção que o faz mover na direcção do futuro.» O espaço e o tempo misturam-se. Uma tontura. O eco das palavras antigas de Di Cavalcanti. O cérebro a estalar. Um regresso. João Pequeno recorda: por várias vezes dona Fernanda fizera tenção de retirar a gravura da parede. As manas Custódias, por exemplo, não se coibiam de falar em escândalo. E o padre Pedro chegou a pedir-lhe («não por ele, que sabia o que era a arte») que substituísse o painel por uma paisagem marinha ou uma natureza morta. João Pequeno recorda: os rapazes procuravam uma distracção para atravessar a porta e ficar assim, extasiados, a olhar o seio e as pernas opulentas da mulher deitada no dorso de um touro branco que parecia caminhar à flor das águas; e os comentários sobre o «pedaço de mulher» eram recorrentes. O quadro, nesse tempo, era isso: anjinhos a abençoar com setas de Cupido a mulher quase nua que lhes acenava com um lenço vermelho enquanto fugia no dorso de um touro.