UM ROSTO ESTRANGEIRO
não chegavam a olhá-los de frente
olhos nos olhos
com receio de que uma qualquer forma de afecto acabasse por aproximá-los
limitavam-se a dar-lhes água e a inventar uma desculpa
para se fecharem de novo e
ficarem a olhá-los por detrás dos vidros das
janelas das casas enquanto eles vagarosamente se afastavam
era assim que estava escrito
nenhum sentimento nos deve ligar aos que estão de passagem
nenhum sentimento nos deve ligar aos que desconhecemos
por isso não os olhavam de frente e não faziam perguntas
até a esse dia em que alguém decidiu ficar por mais tempo na rua
e olhou de frente um rosto estrangeiro
até ao sobressalto de compreender que
havia alguma coisa nesse rosto que pertencia ao seu próprio rosto
que havia alguma coisa nos seus gestos que
era já parte dos seus próprios gestos
e fumaram juntos e falaram de lugares diferentes do mundo
como se ambos fossem estrangeiros e
assim começassem aos poucos a deixar de sê-lo
ou pelo menos a deixarem de
ser estrangeiros um do outro
como se ambos andassem há muito tempo perdidos
e agora se encontrassem para a possibilidade fabulosa de
caminharem juntos
e se perderem juntos
nos caminhos do mundo