terça-feira, dezembro 30, 2008
O engenheiro não me parecia mau tipo e eu começava a lamentar tê-lo conhecido nestas circunstâncias. «Acho que merecemos uma imperial. Que lhe parece?» Já passava da hora de fecho do expediente: anoitecera. Atravessámos a rua, entrámos no Arsénio, sentámo-nos em silêncio. Eu continuava confuso. E foi ele a quebrar o gelo: «Veja isto pelo lado bom: pelo menos o projecto não vai ser reprovado à mor da teimosia do arquitecto Leonardo em manter a empena de cimento.» E acabei por sorrir.
O engenheiro, portanto, gaguejava, abanava os ombros, arrumava e desarrumava os papéis na secretária de mogno. Que nunca lhe ocorrera que a coisa se viesse a precipitar assim de repente. Que havia rumores, claro: mas que já ninguém acreditava na concretização de planos que vinham do tempo da outra senhora. Fosse como fosse: que, enfim, pouco haveria a fazer em face do óbvio interesse público da iniciativa já anunciada pelo Governo. Em resumo: as operações urbanísticas estavam suspensas na zona de influência da albufeira de (ao engenheiro não ocorria assim de repente o nome de código da albufeira) prevista no Programa Nacional das Barragens com Elevado Potencial Eléctrico. Preparavam-se já, de resto, os procedimentos relativos à instauração das respectivas medidas preventivas. «Achei que lhe devia dizer isto em primeira mão.» Agradeci. Ainda confuso. A Casa a Jusante da Ponte de Arame, se bem compreendia, iria ser sacrificada em nome do protocolo de Kioto e do esforço de redução das emissões globais do dióxido de carbono.
A baixa densidade deu os terrenos ao Estado Novo que lhe permitiu, entre outros objectivos edificantes ao serviço do vasto interesse público, «reafirmar [pelo pinheiro bravo e a eliminação dos baldios] a continuidade da alma nacional». É só um exemplo. A baixa densidade sempre se pôs a jeito: tivesse gente, poluísse, produzisse dióxido de carbono, contasse nas estatísticas. Mas não: uma consabida desgraça sem densidade nem peso. Por isso a legislação, sempre muito prevenida, se apraz de costume em defendê-la ou em dar-lhe, para que não fique à margem dos contributos, a possibilidade de concorrer para o interesse público geral e abstracto.
A racionalidade fascina os telejornais menos que os gráficos da predição da catástrofe. E há uma imagem que nos seduz; que o nosso tempo privilegia: a do paraíso perdido e do sentimento de culpa que nos ficará para sempre agarrado à pele. O sentimento de culpa reverte duma ordem moral: regressamos nele, portanto, a uma menoridade de que o exercício da razão supostamente nos libertara há trezentos anos. O prejuízo (e a desonra) de tutelas assim subordinadas foi há muito descrito por Kant. Mas a ordem moral precisa de símbolos: o espectáculo e a catástrofe possibilitam-nos abundantemente: catástrofes naturais, de preferência, em que o homem se constitua como causa e vítima potencial. É por estas e outras que as previsões climáticas de longo prazo ficaram a cargo dos políticos e dos ambientalistas (que o arauto do aquecimento global seja um político, e não um cientista, deveria dar-nos que pensar): os meteorologistas são sisudos e a ponderação de que usam é desconforme à velocidade e à vertigem do nosso tempo.
domingo, dezembro 28, 2008
5.
Temi logo o pior quando o engenheiro da Câmara me telefonou com falinhas mansas. Eu a perguntar «mas então os gajos da Reserva Agrícola Nacional?», e ele que não, que «isso era o menos». Enrolava, exagerava nos advérbios e nos diminutivos, não atava nem desatava. Combinámos uma reunião para essa tarde. Lá fui do Porto numa corrida. O engenheiro não sabia como encetar a conversa. Gaguejava. As faces muito vermelhas, as mãos nos bolsos, encolhido; abanava os ombros, arrumava e desarrumava os papéis na secretária de mogno.
sábado, dezembro 27, 2008
3.
Eu conhecia a devastação dos incêndios. Mas nada podia comparar-se a este cenário depois da desmatação, da desarborização, dos caminhos rasgados a eito pelo meio dos montes e dos vales, descendo às linhas de água, subindo às colinas, das nuvens de poeira levantadas à passagem das máquinas de rastos, dos jipes, dos tractores. Em vão procurei reconhecer os lugares onde passeara por entre um bosque de bétulas, pelo carreiro ladeado de freixos, pela cavada com seus muros derruídos a demarcar o cadastro antigo, pelas ribanceiras de mato rasteiro, pelas margens onde cresciam os fetos e as giestas, pelas clareiras planas dos carvalhais, pela sombra dos pinheiros bravos cobrindo a terra de caruma. As cicatrizes do aterro e da escavação anunciavam o plano onde haveriam de estender-se, de encosta a encosta, contra um paredão imenso de cimento, as águas da albufeira; e delimitavam já, em redor, perdendo-se no curso sinuoso dos talvegues, a linha de nível do regolfo.
2.
Tinha jurado não regressar. Tinha jurado esquecer de vez o sonho da casa na margem do rio. Mas precisava de confrontar-me com a realidade. Por isso regressei nesse fim de manhã de Maio. A Aldeia estava diferente. As obras trouxeram gente e o café transformara-se num restaurante de comida instantânea e pratos económicos. Um terrapleno permitira a instalação de um parque de máquinas no largo da escola, entre a Casa do Morgado e o forno do povo. E um estradão de tout-venant, correndo de nível por entre os campos agrícolas e os montes, largo, deixando taludes instáveis nas bermas cortadas a pique, levava à zona do paredão.
Capítulo XVI
(Onde se procuram reconhecer os limites das cavadas e se reflecte sobre o rifão dos tolos que se enganam com papas e bolos)
1.
«Deixe arder.» Isto dissera Leonardo da primeira vez que me acompanhara à Casa a Jusante da Ponte de Arame quando eu me lamentava da paisagem das encostas devastadas pelo fogo. «Se é duma verdadeira floresta que se trata, os incêndios fazem parte dessa procura constante de equilíbrios; porque a floresta é um organismo vivo que se desenvolve por etapas sucessivas; porque o fogo faz parte desse processo evolutivo natural. Não é o caso, como sabe: estes pinheiros são um arremedo das antigas matas de folhosas; o fogo, neste caso, não representa uma fase nos estádios de sucessão do seu desenvolvimento. Seja como for: o homem parece ter desenhado estas florestas de resina combustível para isso mesmo: para os incêndios como um fim em si mesmo. Deixe arder, portanto, que algo acabará por renascer das cinzas» – dizia Leonardo. E, de facto, pouco tempo depois, os matos pareciam emergir da terra queimada como se apenas esperassem o fogo para afundar as suas raízes e erguer na tarde as flores amarelas e azuis. A verdade é que não passei a olhar os incêndios de um modo diferente. A tristeza de ver a floresta reduzida a cinzas, a galhos retorcidos, a carvão, a troncos queimados, permanecia em mim de cada vez que o fogo deixava nos montes esse rasto de desolação e inquietude; como se o mundo se rendesse assim, e nós com ele, à fuligem e à devastação.
quinta-feira, dezembro 25, 2008
6.
A Aline desta história, confrontada com a possibilidade do regresso, acabou por decidir vender a casa e apagar as memórias antigas. Era uma noite de Inverno. Lá fora, por dentro da noite, os automóveis corriam nas avenidas da cidade a caminho de lugar nenhum. Manuela adormecera no seu colo. E Aline olhava-a sabendo que a vida exige escolhas; e que tudo se decidiria entre o tédio e o sobressalto.
5.
Esta história (este capítulo duma história que não é possível contar) começou pelas contingências da blogosfera: meter um ou outro texto disperso, em prosa, por entre poemas e desenhos. Os textos, no entanto, foram convocando a necessidade da narrativa. Foi pena não ter-se optado por contar a história verdadeira que um dia o narrador se propõe contar. A de uma Aline que não estudou à noite; que não arranjou um emprego de secretariado; que nunca se entendeu com os talheres dos restaurantes e que sempre se sentiu ridícula nos saltos altos dos casamentos e nos vestidos de alças; que nunca se interrogou sobre as diferenças entre o tédio e a melancolia; que sempre se sentiu usada no amor; que, cedo, confundiu o desejo com a ternura e a ternura com o momento em que um homem é capaz de dizer o seu nome a tremer de frio. Esta Aline verdadeira não sentiria nunca o sobressalto do desejo até o desejo reverter da ternura e da protecção do amor. E, no fundo, quase nada as separa. A história de uma é a história de outra. Ambas saíram de casa e ambas sentiram a impossibilidade do regresso. Ambas se perderam em si mesmas. Ambas procuram ainda, sempre, a seu modo, o amor.
4.
Aline dividia-se. Sabia que não era possível regressar à casa da infância (passara o resto da vida a tentar libertar-se da memória desse tempo) e sabia que não era possível fazer de conta que uma história começa quando decidimos que é tempo de começar. A história de uma vida começa sempre muito antes. Uma história, qualquer história, começa sempre muito antes ou muito depois das primeiras frases. Por isso se diz às vezes que não existe senão uma única história no mundo; e que não é possível contar essa história.
3.
Desaprender. Procurar um nome para cada uma das coisas. Esquecer as evidências. Procurar desde o princípio. Desde os alicerces da casa. Procurar desde a raiz e construir as frases de novo. O que liga e separa a ternura e o desejo? Não sabia. Mas Manuela ficava no seu colo, aninhada no seu corpo, como se o desejo começasse num gesto de trazer de longe a memória da chuva, da lareira acesa, do pó levantado nos caminhos de Verão: antes do sexo, antes do lume erguido nos ombros, nas mãos, na pele inteira dum corpo desprotegido no meio da tempestade. Aline tocava a pele adormecida, abandonada às suas mãos vagarosas. Como se a não despertasse o desejo, o amor: mas a memória de um lugar onde o desejo, então, haveria de erguer-se por dentro da noite.
segunda-feira, dezembro 15, 2008
2.
Lembra-se de tocar a pele de Manuela. Era uma noite de Inverno e Manuela adormecera no seu colo. Aline olhava a mulher que tanto continuava a fasciná-la pelos segredos que ocultava (a si mesma?) na suposta transparência do que dizia; como se, despindo-se, ficasse cada vez com mais roupa a tapar-lhe o corpo que desnudava ou procurava despir. Manuela desconhecia o desejo. E Aline não compreendia como era possível alguém não sentir, não ter sentido jamais na sua pele a erupção demorada da água. E foi então que lhe tocou a curva do ombro e olhou esse rosto adormecido: essa estranha sombra num rosto adormecido. Era uma noite de Inverno. E Aline imaginava que o tédio poisara nos pulsos de Manuela a sua teia incombustível.
sábado, dezembro 13, 2008
Capítulo XV
(Onde regressa Aline e se regressa às reflexões sobre o tédio e o mais que se verá)
1.
Aline conhece a diferença entre a melancolia e o tédio. Sabe que do tédio nunca se regressa; que o tédio é o fogo apagado ou a labareda incombustível; a indiferença sem a ostentação que tantas vezes decorre dela. A melancolia, por sua vez, é um fogo ainda por arder; um vagaroso lume a meio de reacender ou apagar-se. E é disso que Aline se sente trespassada: da espada melancólica do tempo.
sexta-feira, dezembro 12, 2008
10.
Sentia-me, de um modo inexplicável, um intruso: a olhar as árvores distantes, o ondulado dos montes reflectido no espelho invertido das águas do rio. O processo de licenciamento já tinha entrado na Câmara. E desci, talvez pela última vez, o carreiro que levava à Casa a Jusante da Ponte de Arame. Era uma tarde de Verão; ouvia o rumor do fio de água a correr nas poldras; e o resto era um silêncio que vinha do fundo do tempo e que parecia afastar-me de cada uma das pedras da casa e de cada uma das folhas da tília do pátio.
9.
Leonardo despediu-se dos técnicos da Câmara com uma daquelas suas frases enigmáticas: «Só gostaria que compreendessem que uma casa é o lugar antes de todas as coisas que haverão de existir; que uma casa é o lugar onde se cruzam as memórias do que haverá de ser.» Saí da reunião antevendo como certa uma proposta técnica de indeferimento à consideração superior. Mas já estava por tudo.
8.
Acordámos em eliminar as intervenções previstas no exterior: o suporte de terras no talude erosionado e a reconstrução de muros além do pequeno troço onde as pedras arrumadas eram ainda visíveis e não se exigiam mais que intervenções de manutenção. Acordámos em eliminar o alpendre; e acordámos, com Leonardo a dizer-me nos olhos a sua objecção, em abdicar, mantendo-se a madeira à vista, da tinta vermelha no portão do pátio. Mas não chegámos a acordo quanto à parede do corpo central. E decidimos que o projecto não abdicaria da empena de cimento.
sábado, dezembro 06, 2008
7.
Leonardo teve que acompanhar-me e defender o projecto que parecia condenado a não passar o primeiro crivo: o da «integração paisagística na envolvente». Aos técnicos do município causava-lhes particular maçada «a empena de cimento à vista», para não falar do portão vermelho do pátio que, «está a ver, não se coaduna». Eu ainda perguntei: «Mas não se coaduna com o quê?» A resposta pareceu-me sábia, defensiva, evasiva: «Bem, desde logo com o espírito do legislador; é ver o RGEU.» Impunha-se um resumo: a casa (eles diziam «a ruína») localizava-se em Reserva Ecológica Nacional e não existiam evidências de que o alpendre fosse uma pré-existência, o que obrigava a uma «consulta interna do ponto de vista jurídico», ponderando-se melhor a letra exacta da mais recente alteração ao diploma – «porque antes, oh, era taxativo: proibição de quaisquer novas áreas impermeabilizadas»; e, por outro lado, prevendo-se a reconstrução de muros no exterior, e sobretudo uma intervenção de suporte de terras no talude erosionado, exigia-se a obtenção de prévio parecer favorável da Comissão Regional da Reserva Agrícola Nacional. Bem. Cada coisa a seu tempo. «Comecemos então pelas questões específicas do projecto.» O chefe de divisão urbanística, numa voz calma, num tom pedagógico, ligeiramente enfadado com a nossa incompreensão das leis, explica: «Está a ver, isto é uma intervenção em meio rural; e lá diz o artigo centésimo vigésimo primeiro do RGEU, na sua actual redacção, que uma nova construção não pode prejudicar a beleza das paisagens; trata-se dum princípio liminar de indeferimento; isto para não invocar a conjugação com as disposições genéricas do PDM sobre as áreas rurais ou com o número dois do artigo vigésimo quarto do sessenta de dois mil e sete no que respeita às condições especiais relativas à estética das edificações. Ora, a ruína [eu, em vão, procurava corrigir: a casa] localiza-se em área de especial relevância paisagística e na proximidade [eu, em vão, procurava corrigir: a mais de cinco quilómetros por um caminho de pé posto] de uma aldeia preservada – para usar, se me permitem, a terminologia legal. Tudo o que seja cimento nas empenas ou pinturas nos vãos em vez de madeira à vista, está a ver, é contrariar o espírito, ou mesmo a letra, do legislador. Veja se me compreende: estas objecções prévias que levantamos é no seu interesse; não vá dar-se o caso de o processo, dando entrada oficial nos serviços com tantas pontas desligadas, levar a um indeferimentozinho que nunca mais, não sei se está a ver.» Leonardo, as faces vermelhas, crispado, movia-se na cadeira da sala de reuniões. Em silêncio, tocando-lhe no braço, olhando-o nos olhos, encareci que se acalmasse. E disse: «pois muito bem: vamos então, ponto por ponto, ver no que concluímos. Se houver alterações a fazer, fazem-se. E não quero ser, acreditem, o responsável pela destruição das paisagens, pelo incumprimento do artigo centésimo vigésimo primeiro do RGEU ou pelo desrespeito ao espírito do legislador.» A coisa corria assim há três meses; esta era já a terceira reunião; eu, confesso, começava a ficar um bocadinho cansado.
quinta-feira, dezembro 04, 2008
6.
Dois dias depois, quando regressávamos, quando chegávamos à linha de festo, parámos e olhámos mais uma vez a curva do rio, a casa encaixada no limite da plataforma que subia a encosta, a tília erguida no pátio, os pinheiros bravos, os salgueiros com o verde ténue das suas folhas, os troncos brancos dos vidoeiros, os musgos dos ramos dos carvalhos, o azul e o amarelo e o vermelho e o castanho e outra vez o verde escuro da serra. E o que víamos era uma construção humana; feita do riso, da tragédia, da tristeza, do sonho. Leonardo olhava o fim de tarde, a luz de Junho a estender as suas sombras nas cumeadas sucessivas, como se a paisagem e os desenhos dos seus blocos de papel cavalinho se misturassem. Eu dividia-me perante a imagem dos milagres. E, de súbito, pela primeira vez, de um modo inexplicável, sentia-me ali um intruso: a olhar as árvores distantes, a olhar o ondulado dos montes reflectido no espelho invertido das águas do rio.
segunda-feira, dezembro 01, 2008
5.
É incrível imaginar que há pouco mais de cem anos não existia aqui um único pinheiro; e que hoje não haveria outra espécie por estes montes e vales se os incêndios não fossem devastando as matas contínuas de resinosas feitas para isso mesmo: para a combustão e o avanço do deserto. Essa foi a maior transformação de todas. O Estado, na sua acção, não visa a felicidade do indivíduo concreto: move-o a ideia abstracta de um interesse «superior». Tão superior e geral e abrangente que, vai-se a ver, acaba por vogar muito acima (e portanto fora) dos interesses específicos das pessoas comuns. O interior sempre foi vítima desta desvelada atenção do Estado. Porque o impulso da acção governativa reverte do princípio de que é preciso acudir ao todo. Ora um Estado centralizador nunca compreendeu que o todo é, ou deveria ser, a soma das partes. E, portanto, em nome do todo abstracto fodeu o todo concreto ao derruir as partes que o constituem. Foi o bem comum que justificou o envio a estas longes terras de topógrafos e engenheiros florestais por finais do século dezanove. As experiências com o pinheiro bravo participavam do desígnio de revitalização económica da Nação «como um todo». O obscuro bem comum, no entanto, como cedo se verificou, começava pela lesão do interesse particular. Ora a densidade populacional sempre foi um conceito a que o Estado não soube nunca ficar imune. Pelas razões óbvias de sobrevivência política, claro. Mas por uma outra decisiva razão: o Estado é uma cortina por detrás da qual há sempre um rosto ou vários rostos e essa necessidade tão humana do reconhecimento e do aplauso. E o interior não dava, nunca deu, notícias, visibilidade, votos, vivas ou sinais de aclamação. Fomos sempre poucos; e esquecidos na exacta proporção desse número. Não contávamos; não contamos. E o bem comum mais vasto que o Estado prossegue não vai agora empancar numa família ou numa comunidade dispersa e sem outra voz que a do silêncio. Por isso a gente da província temia a intervenção do Estado. A ideia era a de que onde metesse a pata ou vinha foda ou canelada. Viu-se com esse exercício experimental de finais do século dezanove a que apenas não se deu seguimento por mor das crises e das trapalhadas políticas que se sucederam até chegar, tantos anos depois, o salvador da Pátria e do interesse público. E o que começou então por fazer-se foi apenas o que os sucessivos distúrbios governativos impediram que mais cedo se fizesse. O Estado (a sua pata) veio de novo às periferias e à baixa densidade. Vários objectivos pretendiam atingir-se com o Plano de Fomento Florestal de mil novecentos e trinta e oito; múltiplos, menos o de salvaguardar os interesses dos que viviam nos lugares onde a floresta haveria de avançar sobre baldios e terrenos comunitários. «Reafirmar a continuidade da alma nacional», «desenvolvimento industrial», «exportação», «reconstruir bosques que os antepassados não separaram nunca da sua aldeia distante quando dela se lembravam em terras de outros continentes» – eis os termos e as considerações preambulares de um Plano em que o Estado garantia o progresso da indústria por via da condenação à fome de quem assistia assim ao avanço do abstracto interesse nacional, do bem comum, a roubar-lhe os pastos concretos e a lenha e os matos e a madeira e o direito a usar o que lhe pertencia. Mas a transformação da paisagem, claro, começou muito antes. E teve sempre a mão do homem. Com a diferença de que, ausente a pata estatal, os equilíbrios se garantiam. Passámos ontem no crasto da Cidadela e você não se teve, olhando os restos das casas circulares e as escadas interiores por onde se acedia às muralhas defensivas, que não dissesse: «até aqui os pinheiros chegaram, os filhos da puta». E olhou o pequeno bosque de carvalhos na vertente cortada quase a pique sobre o ribeiro que desagua no Beça, e as duas ou três linhas de salgueiros e freixos serpenteando na margem, como se essa, multiplicada pelas encostas e pelas cumeadas e pelos terraços das vertentes, fosse a imagem que a sua memória do paraíso lhe devolve. Mas não é assim: nós, há uns cinco milénios, chegámos aqui e cortámos as árvores antigas e queimámos os matos. E se deixámos esses carvalhos e esses vidoeiros foi apenas porque não davam terrenos de pastagem ou o declive não justificava a empreitada. O homem fixava-se ao território e precisava de mel e cereais e lameiros e carqueja e tojo e carvão. O que lhe quero dizer é que a paisagem é uma construção humana. E que esta tília foi plantada por alguém que procurou, contra a inclemência, o prazer de uma sombra no Verão. O que lhe quero dizer é que aquela parede de cimento deveria ser mantida no projecto de reconstrução da casa. Sei que vai contra os seus princípios de manter ou recuperar a memória original do perpianho, das padieiras de pedra, dos tabiques, das empenas sem emparelhamento. Mas há uma história. Há sempre uma história. Que inscrição é aquela na parede de cimento a indicar uma data? O que aconteceu aqui que levou alguém a deixar na parede a inscrição do ano de mil novecentos e sessenta e oito? Seja o que for. É tudo uma construção do homem: a natureza, um bosque, uma casa, uma tília erguida num pátio. Até esta mancha contínua de pinheiros que a pata do Estado trouxe de longe para que hoje possamos sentir, apesar de tudo, o odor da resina a atravessar o rio e a poisar nesta mesa feita com uma tábua das bobines dos cabos eléctricos dos anos cinquenta.
domingo, novembro 30, 2008
sábado, novembro 29, 2008
3.
Calcorreámos a envolvência como se preparássemos uma minuciosa cartografia em que a emoção e o território se confundissem. Subimos e descemos os caminhos de pé posto onde cresceram, por mor da ausência repetida, a urze e o tojo; caminhámos nas margens do rio a ouvir o rumor antigo das águas correntes e a pisar as ervas e os fentos que se alargavam nas plataformas sombrias de pequeno declive; atravessámos, a medo, vagarosamente, a ponte suspensa na garganta cortada na pedra, a direito, ligando assim as duas encostas por tirantes metálicos e pranchas de castanho partidas ou apodrecidas; guardámos folhas de bétulas em cadernos de apontamentos; lamentámos as manchas contínuas de pinheiro bravo; e regressámos atravessando o rio mais uma vez, nas poldras, um pé e depois o outro sobre as pedras erguidas no gralheiro como esculturas mágicas a devolver-nos a memória do tempo.
quarta-feira, novembro 26, 2008
2.
As minhas indicações eram simples (o costume; o lugar-comum): respeitar o objecto a reconstruir; guardar, tanto quanto possível, as memórias antigas. Leonardo é um arquitecto jovem. O lugar fascinou-o, sobressaltou-o. E propôs passarmos ali um fim-de-semana. Era em Junho. Dormimos ao relento, em sacos-cama, sob os ramos imensos da tília do pátio. E só então senti verdadeiramente que a casa começava a pertencer-me e eu a pertencer-lhe.
10.
Adormeces devagar
lá fora os automóveis correm disparados nas avenidas da cidade
no sonho sobes a escada íngreme do coreto e tens uma folha à tua frente
será o mês de novembro será o verão
raramente escolhemos os papéis que representamos
dizes a tua deixa e estranhas o silêncio de súbito quebrado como um vidro numa tarde de domingo
«talvez na minha vida nunca tivesse perdido nada que tivesse tido»
e sentes que só então regressas a ti mesma
será o mês de novembro será o verão
na verdade só então adormeces.
9.
Há uma casa e o mais certo é que seja em novembro
que é quando o inverno irrompe nos pátios sem ser ainda o seu tempo
e no entanto há um caminho a correr na orla do rio e todas as águas nascem desse rio
e nesse rio desaguam todas as águas
e a memória devolve-te as grinaldas e o alecrim nas ruas e os mapas da infância e o largo onde haveria de ser verão se ainda lá estivesses
porque novembro podava com minúcia as roseiras bravas e no entanto as mulheres das fotografias exerciam ainda o ofício de misturar em tabuleiros de vime as flores sucessivas enquanto os homens viravam os fenos à lâmina e as cantigas de trabalho eram copiadas dos registos de michel giacometti
há uma casa e por instantes imaginaste o verão
o mais certo é que seja em novembro
que é quando o inverno irrompe nos pátios sem ser ainda o seu tempo.
sexta-feira, novembro 21, 2008
uma avenida e outra avenida correm disparadas contra os automóveis da cidade
o néon reflecte nos charcos de água de novembro um estranho movimento oscilatório
depois das chuvas é preciso repor os sobretudos e as gabardines nas lojas
depois das chuvas e do vento os dirigentes bancários trazem nas disquetes embrulhadas em laços de seda e nos nós de windsor as máquinas automáticas das crises contra os vendavais
passando ausente dos palcos e dos coretos e da flor única e última do agave uma criança pára por instantes a caminho da escola a olhar o vórtice repercussivo dos escritórios do comércio e das repartições de finanças
os semáforos variam entre o verde e o vermelho nos bares e nas praças interditas à demasia ou ao recreio
há um tumulto [e quase passam as aves] que parece queimar por dentro a alucinação das montras iluminadas
adormeces
adormeces devagar entre a torrente e a conciliação e o trânsito
e o domínio sempre presente da passagem do tempo
às vezes é tarde
não é tarde nem é cedo são
quatro da manhã
e um automóvel corre disparado nas avenidas da cidade.
terça-feira, novembro 18, 2008
deixar as folhas da hera ou a trepadeira do sono com as cinco pétalas de cobre nos muros de pedra e as raízes atadas à sombra dos meses frios
que nenhum rumor se acrescente às fendas de circulação das águas minerais ou dos depósitos de vertente para que a erosão exerça o ofício de retirar as palavras uma a uma dos seus leitos inclinados repondo apenas à superfície os materiais mais leves da lenta deposição aluvial
deixar o tempo misturar-se às folhas do chão da floresta até rasurar nas fotografias de satélite as linhas antigas do cadastro
os muros das culturas temporárias
a luz errada dos encontros
deixar assim o vento adormecido sobre a urze e o tojo
deixar que o silêncio seja a única reverberação das paredes da casa e os dias apenas amanheçam como se alguma coisa estivesse ainda para acontecer
e então chegasses com a memória da vara de lódão
em vez dos milagres
e não procurasses nada.
segunda-feira, novembro 17, 2008
como se não houvesse palavras para nomear as coisas
deixa adormecer as mãos sobre o corpo até não teres uma biografia
dias sucessivos devolvidos por imagens vagas
é do outro lado de ti que tudo acontece
uma criança corre sozinha numa estrada de terra batida que não vem ainda desenhada nos mapas
é no inverno
há-de ser inverno por muitos meses e estações que o tempo acrescente aos calendários das paredes das tabernas
é no inverno e tocas vagarosamente a labareda azul da insónia como se fosse possível adormecer as mãos sobre o corpo até não ter uma biografia.
sábado, novembro 15, 2008
5.
Os muros intransponíveis é um modo de dizer
confesso que nunca fui muito dada à inventariação dos escombros
que nunca foi o meu exercício preferido este de retirar as camadas sucessivas de sedimento
o entulho acumulado do lado de dentro das palavras e das fotografias dos aniversários
o de reconstruir a peça de cerâmica de renda
o de puxar por um fio e trazer de longe a memória dos fustes densos das árvores inclinadas nas margens antes do inverno
confesso
nunca a melancolia me comoveu da distância que vai do sonho à devolução das suas estilhaçadas imagens
eu olhava a chuva oblíqua dos poemas e via o retrato iluminado das searas pelo verão imenso
eu entrava nas represas e só ouvia o rumor das águas desenhando nas pedras o círculo imperfeito da passagem do tempo
confesso
dos paraísos às vezes é preciso fugir a sete pés
prefiro o veneno da transfiguração
prefiro ao júbilo o prodígio da ignorância ou o reconhecimento da precariedade do prazer
confesso que nunca fui muito dada à inventariação dos escombros
eu quero tudo e o seu contrário
às vezes apetecia-me dizer
«eu sou a deusa das contradições».
terça-feira, novembro 11, 2008
Um caule ou a linhagem ou uma pedra ou as águas de lima ou uma sílaba ou a imagem esculpida a navalha na madeira dos lódãos
ou ainda o vento nos ramos dos negrilhos
a lâmpada e a raiz da urze acesa no inverno
coisas assim que depois de irremediavelmente as termos perdido é que parecem regressar como se nos pertencessem desde sempre
como se nenhuma defesa resistisse a essa vocação incombustível dos desastres
ou o desejo exigisse o vórtice e a incineração
e a melancolia impusesse aos meteoros uma condição antecedente
como se não respirássemos do outro lado das margens dos incêndios enquanto não viesse o abandono e nos muros intransponíveis começassem a inscrever-se os mapas dos territórios obscuros da infância e a nervura mais íntima das suas quatro folhas desiguais
enquanto nos desenhos a lápis não emergissem as ilhas desertas dos primeiros nomes ou os enigmas de uma língua cuja aprendizagem exige o prévio desprendimento
de tudo.
quinta-feira, novembro 06, 2008
Procurar então a raiz de que nos desligámos por inércia e no labirinto das linhas do ábaco ou nos sulcos das parcelas do cadastro a caligrafia trémula dos primeiros anos
a pedra do lagar e o esquecido rumor do vento nos arames das vinhas
o dia claro
a sombra nas paredes de cimento do telheiro do pátio
o aroma das amoras inverosímeis nos muros dos caminhos
a raiz de que nos desligámos por inércia enquanto a escassez acumulava a cinza em redor do lume.
quarta-feira, novembro 05, 2008
O prazer sem as suas roldanas sobressaltadas
sem os seus fios erguidos e desatados entre o corpo e a nuvem
deixando aos poucos a luz das nascentes entregue à variação dos seus pronomes possessivos
como se a abundância e a claridade e a indiferença trouxessem o tédio por osmose
como se apenas tivéssemos frio e puxássemos a roupa e adormecêssemos misturando na água as sementes azuis da valeriana
ou o torpor das folhas da tília
ou o incandescente ramo vagaroso da hipnose
como se a inquietação tivesse já desmoronado em si mesma
uma a uma
as barreiras precárias da exaltação
sem os seus fios erguidos e desatados entre o corpo e a nuvem.
terça-feira, novembro 04, 2008
segunda-feira, novembro 03, 2008
9.
Bem vê. Já sabe. João Pequeno veio do Brasil fugindo, se assim se pode dizer, de si mesmo. Veio quando a sua vida parecia enovelar-se irremediavelmente e correr sem rumo, e quando as imagens antigas lhe foram devolvidas no alarme da sua irreparável ausência. João Pequeno, então, não sabia que Catarina Ribeiro da Conceição ficara grávida; à espera de um filho seu. Talvez nunca o tivesse chegado a saber. A verdade é que Catarina regressou a Portugal, a Lamego, à casa junto ao Seminário e ao Paço Episcopal, e teve uma criança a que deram o nome de Margarida. Margarida é a minha mãe. Poupo-lhe pormenores. O avô de Aline e o meu avô não são senão uma e a mesma pessoa. O destino acabou por juntar-me a Aline numa noite de copos e por descobrir-nos como primas irmãs. Compreende agora porque lhe disse que falar de Aline era falar de mim?
domingo, novembro 02, 2008
8.
Veja; veja como são as coisas; os caminhos que levam. A história é nebulosa, como lhe disse. Mas sabe-se que Luísa teve o seu filho no Porto; em casa de Fernanda, dona Fernanda, e do professor com ar de maricas que tinha chegado à Vila na camioneta da carreira numa manhã de Outubro de mil novecentos e dezanove. Pouco mais se sabe de Luísa. Fernanda tinha setenta e cinco anos e morreu em Julho desse ano em que Mário Pequeno chegou e abriu a porta da Pensão e estendeu colchas na varanda. E talvez tivesse ficado como guardiã única dos segredos e dos mistérios desses obscuros anos.
7.
Numa sexta-feira, no dia catorze de Agosto de mil novecentos e quarenta e nove, um jovem chegou à Vila, subiu os três degraus da escaleira da entrada da Pensão Americana, abriu a porta e entrou. E, no dia seguinte, às seis e meia da tarde, quando a procissão seguia a caminho do Alto da Ribeira, estendeu as colchas coloridas no parapeito da varanda e ficou assim, belo, iluminado por dentro, quase como uma aparição, a olhar os anjinhos e os andores. O filho de Luísa chamava-se Mário e o seu rosto era quase uma cópia do rosto da mãe.
6.
É uma história nebulosa. Ninguém sabe como Luísa saiu da Vila. Ninguém a viu sair. Ninguém a viu a descer a escaleira da Pensão, ninguém a viu a esperar a camioneta da carreira no largo do Toural, ninguém a viu na rua Vinte e Oito de Maio, ninguém a viu a atravessar a Senhora da Livração. Ninguém a viu. Desapareceu. Simplesmente. Nunca mais ninguém a viu depois do almoço desse sábado à tarde de Julho. Contaram-se histórias, claro. Que a luz duma vela acesa se desenhava, em algumas noites, contra a janela do seu quarto da Pensão Americana; que uma mulher atravessava as poldras da Presa das Tílias em havendo lua, e que só podia ser ela. O certo é que Luísa desapareceu como se nunca tivesse existido ou como se o seu nome tivesse sido riscado das folhas das árvores do Noro e do jardim dos Correios.
sábado, novembro 01, 2008
5.
Mas, depois do almoço, Luísa fechou a porta, correu as cortinas das janelas do piso térreo, cerrou as portadas, puxou o trinco das cancelas de ferro do pátio. E desapareceu. Para sempre. E a casa ficou fechada; e ninguém entrou por essa porta, galgando os três degraus da escaleira, atravessando a sala da entrada da Pensão Americana, olhando a gravura do Rapto de Europa pendurada na parede do fundo, subindo depois até ao andar dos quartos, abrindo uma janela, chegando-se à varanda que dava para o Largo do Toural, até à sexta-feira do dia dezanove de Agosto de mil novecentos e quarenta e nove.
4.
Fernando Lalice, Agenor e Arnaldo Adão, o Lindinho, almoçaram na sala da entrada da Pensão Americana. Era um sábado de Julho, de finais de Julho de mil novecentos e trinta e um. O calor poisava na abóbada do vale como uma nuvem espessa: agarrada à pele das crianças, agarrada às folhas das árvores, misturada no ar incandescente. Ninguém sabe ao certo o que se passou nesse dia e nos dias e nos meses que se sucederam a esse dia em que Lalice comemorava a empreitada de remodelação do mobiliário do colégio do Eiró. Imagino o Lindinho a lamentar para si mesmo que Luísa já não lhe pedisse ajuda na preparação do clafouti de maçã reineta; que Agenor, sabendo embora da gravidez de Luísa, a olhasse ainda como se um rio desaguasse no seu corpo; e imagino que Lalice, muito dado à farinheira frita e à truta de escabeche, fosse pedindo «vinho, minha querida, até lhe chegarmos com um dedo». Era, como lhe digo, uma tarde quente de finais de Julho. O povo, claro, falava da gravidez de Luísa; dessa «vergonha»; e ligava o sexo (e a desonra, e a infâmia) ao desaparecimento de João Pequeno e Adriano numa noite de chuva e vento sobre os telhados e os vidoeiros e os pinheiros bravos. Porque o sexo decorria da ideia de prazer; e o prazer representava o pecado supremo de sentir-se o corpo por dentro dele. O certo é que Luísa estava feliz; ria; falava em voz alta. Lalice é assim que a recorda durante o almoço, trazendo as sobremesas, o café, o medronho de Fiães: «Cheguei a pensar que o filho da puta do João Pequeno nunca tinha saído do seu quarto da Pensão e que Luísa se ria de nós a esconder um segredo.»
sexta-feira, outubro 31, 2008
3.
Eu disse uma nuvem poisada nos telhados; talvez fosse mais correcto dizer o silêncio escondido no fundo da terra. Porque é esse pressentido rumor que faz deslocar as placas dos pequenos lugares da província; porque é esse alvoroço sem rosto que se mistura à água das nascentes para sentirmos, depois de tocá-la e recolhê-la com as mãos em concha, a perturbação da passagem do tempo; porque é o silêncio que traz o esquecimento e a memória do que esquecemos assim.
quarta-feira, outubro 22, 2008
2.
Luísa começou por não dar ouvidos ao mundo. Como se João apenas demorasse a chegar ao almoço e em breve estivessem juntos a mostrar ao povo e à sua língua bífida que o amor se sobrepõe a tudo. E haveriam então de falar do futuro e da luz da primavera a entrar nas copas e a poisar nas folhas do ano dos negrilhos dos quintais. Mas depressa uma nuvem pareceu ficar poisada sobre os telhados da Pensão Americana e o jardim dos Correios e as ruas quando descia ou subia as ruas da Vila. E o azul do céu, aos poucos, distanciava-se; e não era já distante: diluía-se no acinzentado das manhãs e das tardes de Maio e Junho até desaparecer e ser a memória vaga de um tempo que, tudo indicava, não poderia regressar mais aos seus nomes.
quarta-feira, outubro 15, 2008
Capítulo XII
(Onde Maria Teresa continua a puxar os fios da história, já que mais ninguém, começando pelo A., parece interessado em fazê-lo)
1.
Ao povo não se lhe entaramelou a língua na boca; a complexidade do caso só parece tê-la acirrado. As estranhas circunstâncias do desaparecimento de João e Adriano, de resto, assumiam carácter secundário; porque em havendo sexo à mistura, ou a suspeita dele, é tiro e queda. A isso, desde sempre, a língua do povo não renuncia. E de Luísa, como imagina, o menos que se disse na Vila foram coisas do género «ai esta a mim nunca me enganou a filha da puta».
domingo, outubro 12, 2008
31.
Choveu durante dias a fio. As ribeiras galgaram as margens, as águas correram no vale, subiram as linhas das encostas. Nunca mais se soube de João Pequeno; nem de Américo Fontes. Até que chegou à Vila a notícia de um carro encalhado nas pedras a seguir ao gralheiro da Presa do Lameiro Grande. Só podia ser que tivesse caído da Ponte de Arame e o arrastasse a correnteza; as tábuas, a meio da ponte, estavam partidas. Mas era impossível compreender o que levara um Fiat Balilla, numa madrugada chuvosa de Abril, a aventurar-se sobre uma ponte pedonal que ligava, é certo, uma parte do mundo a outra parte do mundo, o estradão da Aldeia às estradas de macadame e às luzes das cidades longínquas.
30.
Luísa deitou-se. Já era tarde. João e Adriano Fontes ficaram na sala de entrada da Pensão Americana. «Fechem-me as portas; não se esqueçam de me apagar as luzes.» Comiam presunto, bebiam canecas sucessivas de vinho de Anelhe. Não havia uma nuvem no fim de tarde; estava um calor quase insuportável. E, de súbito, uma aragem anunciou-se nas folhas minúsculas do espinheiro-da-virgínia do largo do Toural. E, como se o Inverno voltasse de novo, começou a chover. Luísa acordou com as mãos de João a tocar-lhe a pele muito devagar; acordou na surpresa de sentir o seu corpo regressar a si mesmo. A chuva, lá fora: sobre os telhados e a copa das árvores e o zinco dos anexos. Luísa quase não se movia. As mãos de João Pequeno tocavam a sua pele como se apenas a pressentissem; como se a procurassem, um poro e depois outro, desde um tempo antigo; como se, procurando o seu corpo, o desenhassem pela primeira vez. A chuva, lá fora: o barulho da chuva sobre os telhados e a copa das árvores e o zinco dos anexos. Até à vertigem ou à certeza de que o amor existe num único momento para sempre. E, com a chuva ainda nos telhados, acordou; a luz indecisa a entrar no quarto. Estendeu as mãos. João não estava a seu lado. Chovia ainda. Chovia sempre. E Luísa temeu que tudo (o mundo, o prazer, o amor) não passasse de um sonho.
29.
Luísa sentia-se confusa. Havia dois tempos que pareciam sobrepor-se e afastar-se. E, entre eles, as interrogações; as dúvidas. Luísa ouvia apenas a espaços os diálogos de João e Adriano. «Isto, como você sabe, é uma máquina; vai onde se quiser, amigo João; ao fim do mundo.» O tempo, a passagem do tempo, era o objecto de reflexão. Luísa compreendia finalmente que o prazer não está no que julgamos ter mas no que se teme perder do que se dá e recebe. Luísa conhecia o prazer de o procurar em si mesma; e de o receber dos outros. Mas só agora compreendia que o prazer verdadeiro se desenha na fronteira dos desastres; na precariedade dos seus excessos e das suas iluminações. Talvez o amor e o prazer pudessem confundir-se. Talvez fosse preciso o tempo (a passagem do tempo) para que o prazer (o amor) alumiasse as suas falhas, as suas ausências. «O mundo, amigo João. Oh, o mundo. O mundo é o que quisermos que nos possa pertencer. A Vila, claro, como sabe…» Porque o amor (o prazer) não existe se a conquista não for a sua permanente definição. E Luísa sentia o prazer pela primeira vez. Procurando-se; lutando por ele; na certeza de que o hedonismo não é senão a máscara do que verdadeiramente procuramos em nós mesmos. «Sim, o Brasil. O Brasil. A imensa Europa. A música, as cidades, as mulheres, amigo João.» O Fiat avançava por dentro da tarde quente; entre a poeira levantada e a sombra que começava a descer. E Luísa sentia-se confusa: descobrira finalmente o amor; e intuía o quanto esse momento era raro entre a terra e o céu.
sábado, outubro 11, 2008
Eram quase cinco horas quando chegaram ao largo do Meio da Aldeia. Os cromados do Fiat Balilla reluziam na tarde que declinava como se o pó do estradão, horas antes, não tivesse coberto a carroçaria em várias camadas e não se tivesse entranhado nas juntas e nos prumos metálicos da protecção do motor, nos aros, nos globos dos faróis; e como se o pó, já a seguir, não voltasse a recobrir tudo. Adriano, ainda assim, sorria. «Que belo passeio, ah?» João olhou a casa do padrinho, a cancela do pátio, a escaleira que dá ao terraço, os vidros da janela onde bateu com o nó dos dedos na madrugada longínqua de Julho de mil novecentos e dezanove. Um momento breve; porque de imediato entrou no carro. Sem uma palavra. E, como Luísa haveria de dizer mais tarde, «não olhou para trás uma única vez.»
quinta-feira, outubro 09, 2008
Talvez tivesse sido plantada em mil oitocentos e sessenta e cinco. Porque foi nessa altura que Américo Fontes deixou a Aldeia e começou a limpar o terreno da Mina e, aos poucos, a erguer muros e paredes. As casas têm um cheiro que não se repete. Esta casa está impregnada do aroma da tília de folhas pequenas em forma de coração. João vagueia pelo perímetro dessa parte do mundo; sobe a escaleira exterior e, da pedra da varanda, olha o pátio onde a árvore continua a erguer-se como se o seu papel fosse o de testemunhar a ruína e guardar os segredos. Por entre caliça e poeira, por entre pedra miúda e restos dos travejamentos, João vê uma lata de conservas enferrujada, a moldura de um retrato, cacos de loiça e de vidros de espelho, um pente, um bacio de esmalte, uma boneca de plástico sem pernas nem braços, os sinais de fogo onde foi a lareira, cinza calcinada no chão do forno, ferros da cabeceira das camas, um garfo, uma trempe retorcida, um alguidar partido. João vagueia pela casa como se o odor da tília trouxesse o passado e o misturasse ao tempo presente. Mas tudo são restos, pedaços, resíduos. Luísa repete: «vai sendo tarde, João». E enfim regressam. Caminham em silêncio. Até que João pára por um instante como se fizesse um resumo: «Vou reconstruir a casa. Ainda haveremos de viver aqui. Amanhã mesmo começo a tratar das coisas.» A copa da árvore desenhava-se ainda sobre a ruína quando retomaram o caminho de regresso à Aldeia; as águas do rio, ao fundo, desciam o muro da presa, corriam por entre as poldras do gralheiro da curva do Lameiro Grande; o rumor da corrente ouvia-se como o eco de coisas distantes no tempo; e depois o silêncio caiu de novo sobre a montanha.
25.
O mundo, em grande parte, era o rio: as casas da encosta descendo na direcção do rio; a pesca às trutas; o pequeno vale da Casa a Jusante da Ponte de Arame subindo-se das margens do Beça; os montes e as suas veredas e os seus bosques em declive reflectidos na água das presas; os freixos e os salgueiros das margens; as ervas secas do Verão e os paus arrastados pela enxurrada deixando nos ramos dos amieiros as marcas dos anéis da enchente. Mas a casa, agora [e o rio, e a árvore], não era apenas uma ruína: mas a ruína sem o mundo desse tempo. E João recorda a copa imensa da tília silvestre quase arredondada e a surpresa do avermelhado na parte superior dos raminhos jovens; e as folhas em forma de coração; e as suas flores aromáticas e quase transparentes no mês de Junho. A tília, portanto, era a mesma de sempre; metáfora do mundo; árvore dos segredos. O mais certo é que tivesse sido plantada no ano de mil oitocentos e sessenta e cinco. Porque foi em mil oitocentos e sessenta e cinco que Américo Fontes decidiu deixar a Aldeia. Nessa manhã de Março, depois da missa de sétimo dia em memória de Irene Custódio, Américo viu Joaquim Gomes sentado na pedra do adro; as golas da samarra puxadas; um cigarro vagaroso; um sorriso irónico de quem é credor das coisas do mundo. Américo sentiu o sangue a correr-lhe nas veias; lesto. E foi então que
quarta-feira, outubro 08, 2008
24.
João olhou os alpendres derruídos e as paredes quase tapadas pela hera e a vinha-virgem. Mas, antes, descendo o talude coberto de avoadinha e trevo, a memória do lugar foi-lhe devolvida pelo odor da tília do pátio erguendo-se na manhã clara de Abril. As jornadas de pesca quase sempre (João teria dezasseis, dezassete, dezoito anos) terminavam à sombra daquela árvore; estendendo-se a merenda na tábua de carvalho assente sobre duas pedras fincadas. João, por essa altura, desconhecia [e sabia] que tinha nascido ali. E também o mundo, então, era ainda jovem. Como se as coisas fossem nascendo à medida que se lhes dava um nome; como se fossem sendo desenhadas, uma a uma, para que o futuro as guardasse, intactas, na voragem do tempo.
terça-feira, outubro 07, 2008
São cinco quilómetros desde o Meio da Aldeia à casa a Jusante da Ponte de Arame por um carreiro de terra que os matos foram cobrindo. João e Luísa caminhavam em silêncio. Ambos sabiam que João procurava mais que o lugar onde nascera. Porque na história da sua vida tudo era nebuloso. Segredo e tragédia misturavam-se para desenhar um novelo de fios dispersos. João não desconhecia que a mãe morrera durante o parto na casa a Jusante da Ponte de Arame e que Manuel Pequeno não era senão o seu pai adoptivo; não lhe era desconhecida a história dos amores clandestinos de Leonor Fontes e do engenheiro das florestas. Mas tudo isso lhe fora aparecendo desligado ao longo dos anos; em rumores e em peças separadas que lentamente foi recolhendo sem nunca conseguir juntá-las nos seus entalhes. Até desistir. Até apagar o passado. E tudo já ser (como se pudesse ser) indiferente.
domingo, outubro 05, 2008
João Pequeno não queria acreditar quando olhou o carro parado no Largo: o tejadilho bege, plano; os seis vidros rectangulares; a oval do motor com a protecção da grelha formada por elementos metálicos verticais; os guarda-lamas castanhos e a sua curvatura em onda a realçar a elegância da carroçaria desenhada em linhas quase rectas; a barra finíssima do pára-choques com uma ligeira curvatura nas extremidades; os dois faróis redondos incrustados na moldura inoxidável; o pneu sobressalente pendurado por correias de cabedal adiante da porta do lado direito; os aros reluzentes das rodas. O motorista sorria; adivinhava o deslumbramento que o carro causava a João Pequeno. «Vê-se que é entendido», disse; antes mesmo que a João se lhe ouvisse uma palavra. «Bem, só pode ser um Fiat Balilla. Mas confesso que desconhecia este modelo.» João Pequeno regressava de novo aos lugares onde nascera. E olhava as amoreiras do Noro, o pó levantado no caminho que subia quase a pique até ao Padrão e seguia depois a encosta do lado poente da serra da Seixa. «Já ouvi falar de si. Mas é claro que não nos conhecemos: estabeleci-me na Vila há pouco mais de dois anos; faz amanhã dois anos e dois meses.» E, lá ao fundo, a espaços, o rio desenhava-se iluminado pela claridade da manhã de Abril; serpenteando por entre a montanha; desaparecendo de novo. O Fiat Balilla avançava na manhã clara e azul. Os pinheiros dominavam a paisagem; de um e outro lado do estradão; elevando-se nas colinas; a perder-se nas sucessivas cumeadas. «Outro destes não encontrará você no país; é este, e dois em Itália; à experiência; veio-me, como imagina, directamente de Turim.» O passado regressava numa luz baça. E João recordou um dia antigo e o rumor da água das ribeiras a descer os alcantilados da serra; o odor das flores da urze pisadas pelas patas dos cavalos; uma casa em Lamego; um outro rosto. «Eu contava-lhe, mas você não ia acreditar.» E então, numa curva súbita, o casario de granito; compacto; os telhados e as pedras inteiras dos vãos; a calçada do caminho que haveria de levar ao Meio da Aldeia. «Contingências da vida. O meu pai era o maior amigo do sócio de Giovanni Agnelli. Um senhor. Um aristocrata, como deve saber. Ele devia-lhe favores de honra. Ou não devia. Outros tempos. A amizade, sabe como é.» O largo do Meio da Aldeia; o novo tanque construído pela ditadura nacional; a mão que Luísa lhe estendia no temor de que tudo o que começava a erguer-se pudesse desmoronar como as paredes das casas onde o silêncio se misturava às raízes das árvores. «Este motor, já viu? Parece um relógio suíço. Isto, quando começar a comercializar-se, é um ver-se-te-avias.» O largo do Meio da Aldeia; os bois barrosos, lentos, a meio da manhã, a regressar dos lameiros das águas de lima; as histórias inverosímeis de Adriano Marques; um tempo antigo; o eco de um tiro a repercutir na memória. Como se tudo se misturasse até à impossibilidade da narrativa; como se os factos e a memória dos factos não coincidissem nem pudessem coincidir. Uma tontura. E a voz de Luísa, distante na manhã clara de Abril de mil novecentos e trinta e um: «O senhor Adriano já sabe: espera-nos aqui por volta das quatro da tarde.» O tempo dividido; a incoerência cronológica; um vórtice; como se nada fizesse sentido.
sábado, outubro 04, 2008
E, portanto, rumaram enfim à casa a Jusante da Ponte de Arame. Luísa temia que João Pequeno não estivesse preparado para o confronto com a ruína e a desolação; que a memória lhe devolvesse um lugar que não existiu nunca ou que não poderia já existir depois de tantos anos de silêncio e ausência. Ainda o tentou demover. Mas havia uma alegria infantil no seu rosto, nos seus gestos, nas suas palavras; um entusiasmo inamovível. E falava já da reconstrução da casa e dos muros. E via-se a acordar cedo, a descer ao rio, a pescar nas presas, ao saltão, nos dias quentes, ou a fazer vagarosos lançamentos à pluma até as trutas saltarem fora da água como se saíssem da treva e riscassem, no fundo do vale encaixado, a placidez das manhãs resguardadas pela quietação da montanha. Era um sábado. E ouvia-se o ruído do motor do carro de praça, lá fora, no largo do Toural, quando desciam a escaleira da Pensão que levava à sala da entrada.
Acordaram agarrados um ao outro. Já era tarde da manhã. A luz entrava pela janela do quarto e a neve do dia anterior quase desaparecera da copa das árvores e das ruas. Talvez a Primavera pudesse começar; talvez o Abril, depois da neve que amaciara o tempo, e já que o Março correra sem uma ponta de vento, não trouxesse as costumadas águas mil.
quinta-feira, outubro 02, 2008
A geada desses dias de Março só não queimou as ervas ruins e um estranho silêncio poisava em tudo; nem se deu por que a perdiz arrulhasse. Até que a manhã de seis de Abril trouxe a neve das cumeadas distantes e espalhou-a a toda a largura do vale; sobre as ruas e as casas e as árvores. E o sol, a meio da tarde, começou o degelo. E foi então, doze dias depois, que João acordou de novo e saiu da cama. Luísa deixara o quarto por breves instantes e quando regressou viu-o à janela a olhar os campos da veiga como se também ele se preparasse para sair de um antigo estado de repouso vegetativo; e olharam-se e sorriram para que o mundo pudesse começar de novo depois do gelo e da neve. João sentia uma absurda felicidade. Desceu para jantar na sala de entrada da Pensão Americana; riu; contou histórias em voz alta e um ligeiro sotaque do Brasil; bebeu vinho de Anelhe; conversou até tarde com Fernando Lalice. Lá fora ouvia-se o vento a bater no latão dos anexos; depois de tanto tempo sem uma aragem, sem que se escutasse o seu rumorejar nos ramos mais finos do espinheiro-da-virgínia do Toural ou dos vidoeiros do Noro. E quando Luísa subia finalmente a caminho do quarto, viu uma luz trémula a espalhar-se no patamar da escaleira. João Pequeno estava no corredor, de pé, parado, em silêncio, à sua espera; o rosto iluminado pela oval escarlate de uma vela acesa que tinha nas mãos.
quarta-feira, outubro 01, 2008
18.
João acordou; olhou Luísa nos seus olhos claros; sorriu; e adormeceu de novo. E depois dormiu durante doze dias seguidos, acordando apenas a breves espaços em que dizia coisas aparentemente sem sentido. E Luísa pensou que talvez houvesse uma diferença fundamental entre o que foi e o que sentimos que foi; e que talvez, a ser assim, João tivesse apenas memórias do que sentiu (não do que viveu) durante o curso dos anos vividos. Porque falava de coisas misturadas, sem cronologia, sem arrumação dos factos. O seu rosto (dela, Luísa), por exemplo (e a sua pele, e os seus olhos «iluminados por dentro», e as suas mãos), ganhavam nas palavras de João Pequeno (na memória que retinha do tempo antigo) um espaço que o tempo real e verdadeiro não lhe concedera (a ela) nunca. João Pequeno, durante esse estado febril, falava do mundo como se o mundo não pudesse deixar de ser o que sentimos que deveria ter sido.
16.
O mundo é um novelo de fios que desenham a trama; que se unem e desprendem; que se ligam e desligam; que se perdem e encontram. É assim o mundo: quase um rumor: a descer as encostas e os caminhos de terra e o espírito dos declives; a ficar suspenso nas árvores dos bosques; a entrar nas casas; a misturar-se na luz da manhã; a atravessar o mar oceano; a regressar sobre as águas; a ficar para sempre entre os dedos como a memória de tudo. É assim o mundo: um espelho a reflectir o que não existe.
quinta-feira, setembro 25, 2008
Para onde vão os dias que passam? Que lugar os acolhe ou suspende nos seus múltiplos fios? O que nos pertence ou se perde irremediavelmente no tempo que já não é? Onde ficam as nuvens pretéritas e o vento e a chuva e as corridas das crianças a descer e a subir os atalhos das florestas? O que une ou separa os acontecimentos do passado e a memória que guardamos deles? E se não houvesse mais que o tempo presente? E se não houvesse passado nem futuro? E se a vida toda não fosse senão este momento irrepetível de nos sentirmos vivos em melancolia, intemporalidade e tumulto?
14.
Luísa ficou durante o fim de tarde e toda a noite à cabeceira da cama; a olhar o rosto adormecido de João Pequeno. Chamado a correr quando o seu corpo tombou na terra batida do Largo, a dois metros da porta de entrada da Pensão Americana, o doutor Nogueira recomendou «sopas e descanso». Que ele o que estaria era «terrivelmente cansado». E, filósofo, enigmático, teatral, como se recitasse o excerto de um poema ou de um romance, acrescentou: «cansado, talvez, de não se dissolver continuamente em cada instante da vida, ou das pessoas, ou de si mesmo, ou de tudo». Sopas e descanso, portanto. Por isso o levaram a um quarto e ela ficou assim, durante toda a noite, à cabeceira da cama; a olhar o seu rosto adormecido e a ver reflectir-se nele uma inusitada melancolia da passagem do tempo. Até que, de súbito, algo em Luísa vibrou como uma revelação: a revelação do medo e da ausência; da impossibilidade dos regressos; da inevitabilidade do adeus. A manhã entrava devagar na janela do quarto quando João Pequeno acordou. E era sobretudo melancolia o que o olhar de um parecia espelhar no olhar do outro.
quinta-feira, setembro 18, 2008
13.
Luísa sabe como os dias e os anos correm devagar por entre os montes; subindo encostas a pique, descendo as vertentes da umbria, atravessando as poldras das enchentes, correndo em caminhos de lama ou na poeira muito fina do saibro dos meses de Julho. Como se tudo fosse tão antigo que parecesse recente; como se a cronologia não fizesse sentido; como se não houvesse tempo na passagem do tempo; como se cada aniversário ou evocação não devolvessem senão o eco do que um dia já foram na memória dos seus risos e das suas lágrimas. Até ao momento em que pressentimos ou compreendemos que tudo já foi. E a lentidão se desenha de novo nos relógios e nas ruas e nos largos e nos pátios e nos corredores das casas.
São poucas as coisas que regressam do passado quando sentimos que tudo seria pouco para que nos pudéssemos de novo erguer e olhar em frente: a memória de alguém que nos abraçasse ou nos tocasse no ombro e nos falasse com uma voz que saberíamos vir necessariamente do fundo do tempo; a memória de um lugar, de um objecto, de uma noite em que os amigos juraram que haveria sempre uma noite assim. E o desejo: isso que, livrando-nos do amor, nos reconduz ao amor.
sábado, setembro 13, 2008
«Sei muito bem o que quero e para onde vou.» Uma tontura, uma vertigem. Um exemplar do Diário de Notícias aberto nas páginas centrais. O Rapto de Europa. A sublevação pela arte. «A incorrecção que o faz mover.» O mundo. Um mundo novo, um homem novo. Na tarde fria de Março. Lá fora não havia uma aragem, não se ouvia o rumor das folhas das árvores ou dos seus ramos suspensos e recortados contra a encosta. «No mais, que o País estude, represente, reclame, discuta, mas que obedeça quando chegar à altura de mandar.» Uma tontura. Uma forte dor de cabeça. A náusea. «Não acha você, João, que este Professor Salazar?» O passado e o presente. Uma voz e outra, partidas, regressos, viagens, a vertigem do tempo. Sentado na mesa da Pensão Americana. Quem fala? Fernando Lalice? Di Cavalcanti? A sublevação. O respeitinho. Obedecer. Subverter. Regressado de longe a um lugar que não existe. Na tarde fria de Março de mil novecentos e trinta e um. «Sente-se bem?» Uma ligeira tontura. Os quatro companheiros de mesa mergulhados em irrealidade e abstracção. Pede desculpa. Olha mais uma vez a reprodução do Rapto de Europa. Pensa em Luísa. Mas Luísa não aparece na sala. João levanta-se. Sai. É já noite cerrada quando chega à rua. Uma tontura. O Professor de Finanças parece que vai salvar a Pátria.
10.
João Pequeno tinha conhecido Mário de Andrade em Novembro de mil novecentos e vinte e um: pouco mais de dois anos depois de deixar a Vila, de atravessar o imenso mar oceano, de chegar ao porto de Santos, de passar enfim a viver em S. Paulo. João ficou fascinado com o poeta e com o grupo de amigos; e rendido a essa ideia de provocação permanente, de subversão cultural como princípio de insubordinação ao mundo. Não mais deixou de acompanhá-los sempre que o tempo lhe permitia o abandono das contas e das estratégias de expansão do negócio. E foi assim, tantos anos depois de ver pela primeira vez a gravura pendurada na parede do fundo da Pensão Americana, que João Pequeno se confrontou de novo com uma reprodução do Rapto de Europa. Um jovem pintor falava com entusiasmo do verdadeiro precursor do modernismo e de toda a arte moderna e espalhava estampas numa mesa. «Atenção: estamos em meados do século XVI; e no entanto veja-se como Ticiano se libertou da tirania da linha, da precisa delimitação das formas; reparem nas pinceladas largas e livres; imaginem as marcas dos seus dedos espalhando a tinta, pressionando a tela; e compreendam como a verdadeira arte não imita a perfeição do mundo mas lhe acrescenta a incorrecção que o faz mover na direcção do futuro.» O espaço e o tempo misturam-se. Uma tontura. O eco das palavras antigas de Di Cavalcanti. O cérebro a estalar. Um regresso. João Pequeno recorda: por várias vezes dona Fernanda fizera tenção de retirar a gravura da parede. As manas Custódias, por exemplo, não se coibiam de falar em escândalo. E o padre Pedro chegou a pedir-lhe («não por ele, que sabia o que era a arte») que substituísse o painel por uma paisagem marinha ou uma natureza morta. João Pequeno recorda: os rapazes procuravam uma distracção para atravessar a porta e ficar assim, extasiados, a olhar o seio e as pernas opulentas da mulher deitada no dorso de um touro branco que parecia caminhar à flor das águas; e os comentários sobre o «pedaço de mulher» eram recorrentes. O quadro, nesse tempo, era isso: anjinhos a abençoar com setas de Cupido a mulher quase nua que lhes acenava com um lenço vermelho enquanto fugia no dorso de um touro.
9.
João sentou-se. O mais jovem do grupo falava sobre as drásticas alterações climáticas dos últimos anos e para o efeito «que só poderá ser nefasto» do fumo das fábricas das cidades sobre a meteorologia: «antigamente havia o Verão e o Inverno; agora anda tudo misturado e já ninguém percebe a ponta dum corno». Mas a sua atenção, aos poucos, desviava-se da mesa. A velha reprodução do Rapto de Europa continuava no mesmo lugar de sempre; pendurada na parede do fundo. E João sentia-se amarrado às figuras do quadro. A estremecer por dentro. Porque a gravura era a mesma e era agora completamente diferente. E nessa diferença se marcava também, decisiva, imperativa, a distância de si às coisas a que julgava regressar.
quinta-feira, setembro 11, 2008
Luísa entrou pela porta do balcão e saiu de novo, apressada, ausente, num mesmo e quase imperceptível movimento. João ficou a olhá-la, e depois a olhar o espaço vazio como se a presença de Luísa ainda o enchesse de tudo o que a sua memória recordava desse corpo. E assim ficou ainda durante algum tempo; até regressar ao silêncio a que os quatro homens sentados na mesa do canto se haviam remetido. E então virou-se desajeitadamente, disse «boa tarde», esboçou um sorriso que percebeu ter-lhe saído frio e dissimulado. Uma luz baça entrava pelo vidro da janela rasgada ao nascente. Lá fora não havia uma aragem, não se ouvia o rumor das folhas das árvores ou dos seus ramos suspensos e recortados contra a encosta; um estranho remanso invadia as ruas, o largo, poisava nos telhados das casas. Como se o mundo estivesse a começar; ou como se começasse a fechar-se, vagarosamente, sobre si mesmo. João Pequeno continuava de pé e sentia-se estrangeiro do mundo que lhe era devolvido em irrealidade e abstracção. E então, sem que a memória de um tempo antigo vibrasse em si verdadeiramente, reconheceu Fernando Lalice. E também o velho amigo o olhou e o reconheceu sem surpresa nem sobressalto; e apenas se ergueu em cortesia e o convidou a sentar-se. «Ora então de regresso, João?». Que sim. Mas João Pequeno pressentia já que o mundo se começava a fechar sobre si mesmo, descendo as suas sombras sobre as ruas e as casas, sobre as árvores e o largo, sobre os rostos irreais dos companheiros de mesa.
domingo, setembro 07, 2008
7.
Na sala da Pensão Americana tinha mudado tudo e ficado tudo na mesma. Fernanda, dona Fernanda, casara com o professor com ar de maricas que chegou à Vila na camioneta da carreira numa manhã de Setembro de mil novecentos e vinte e um e geria o negócio à distância por cartas remetidas do Porto e cada vez mais intervaladas visitas à Vila. Uma reprodução do Rapto de Europa pendurada na parede do fundo, o aparador em madeira de carvalho correndo sob a janela larga do nascente, o louceiro com vidrinhos biselados, as mesas com toalhas de quadrados vermelhos e azuis: João Pequeno entrou e ficou assim rendido à imagem dum tempo devolvido no absurdo da sua impossibilidade. E, de súbito, Luísa. Luísa entrando pela porta do balcão sem tocar o chão da sala da Pensão Americana e a breve luz de Março a atravessar a janela e a poisar nos seus cabelos soltos sobre os ombros.
terça-feira, setembro 02, 2008
6.
Carlos, o Alferes, mandou dizer que estava cansado, indisposto; que pedia desculpa; que João voltasse mais tarde; que teria todo o gosto em recebê-lo, em abraçá-lo, em recordar com ele as memórias comuns dos velhos tempos de rambóia. Carlos Magalhães, tantos anos depois, continuava fechado no quarto da Casa do Largo; deitado na cama de ferro a olhar pela janela a Encosta dos Matos, os pinheiros erguendo-se numa paisagem nova, os milhafres no seu voo circular planando contra o céu cinzento, contra o céu azul, contra o céu de chumbo, contra o céu distante dos caminhos de terra batida que subiam a Presa das Tílias, Onde Se Juntam Os Rios, o Noro, o Moinho do Cubo. Carlos, o Alferes, não se livraria nunca do pesadelo desses dias antigos de Abril de mil novecentos e dezoito. Ninguém vence uma guerra; ninguém a perde. Uma guerra não se extingue com o fim dos combates, com a rendição ou o erguer das bandeiras vitoriosas, com as negociações, os acordos de paz, os relatórios dos conflitos. Carlos, o Alferes, não se livraria nunca da memória desses dias entre a lama e a névoa, o frio e a humidade, as ratazanas e a sarna, os piolhos e o gás mostarda, as lágrimas e o riso de quem perdera já os seus nomes verdadeiros; o fosgénio a lembrar, na irrealidade do mundo, nas margens de um rio perdido no fim do mundo, o odor do feno cortado nos campos da infância; a roupa, dia após dia, colada ao corpo, entranhada no corpo, misturada no corpo. Há muito que o poder político abandonara os soldados ao acaso e à ruína; deposto Afonso Costa, Sidónio Pais tinha mais que fazer. Mas no dia oito de Abril, finalmente, chegavam as ordens de retirada; os soldados baixavam defesas; deixavam a linha da frente; comemoravam. E foi precisamente nessa noite, de oito para nove de Abril, que começou por se ouvir um ou outro disparo disperso; cortando a sombra devagar. Até que, de súbito, o céu ficou claro, iluminado, fosforescente. As barragens de artilharia alemã, primeiro; madrugada dentro; até que o princípio da manhã começou a deixar a descoberto os corpos amontoados, os restos, os rostos fechados em si mesmos como se nunca uma única luz os tivesse tocado ou adormecido devagar. Entre a deserção e a resistência, no flanco esquerdo das tropas, onde as forças portuguesas e britânicas partilhavam linhas dianteiras, Carlos Magalhães manteve-se no seu posto, com os seus homens, enquanto a artilharia alemã parecia varrer por inteiro as trincheiras e os campos abertos e um silêncio inverosímil presidia a tudo. Era já manhã; a névoa poisada no imenso vale; e as metralhadoras MG-08 corriam ainda as linhas de avanço; e os soldados começavam a disparar às cegas, em desespero, as suas espingardas Lee-Enfield; e Carlos, o Alferes, continuava de roda dos seus poucos homens, gritando, ouvindo o eco da sua voz devolvido pela distância e por esse silêncio que presidia a tudo. Ninguém vence uma guerra; ninguém perde uma guerra. Carlos, o Alferes, não se livraria nunca dessa irrealidade, dessa sombra espessa, desse silêncio feito de lágrimas e alarido, de ausência e deserção de tudo. Uma guerra continua depois da crónica dos conflitos. Carlos, talvez por isso mesmo, mandou dizer que estava cansado, indisposto; e que João Pequeno regressasse mais tarde, que gostaria imenso de recebê-lo, abraçá-lo, recordar as memórias comuns dos tempos de rambóia.
domingo, agosto 31, 2008
5.
Desceu do Alto da Ribeira, passou o largo do Toural, subiu a rua Direita, bateu à porta de casa do velho amigo Serapião Afonso. A mãe de Serapião olhou João Pequeno sem disfarçar a mágoa e a censura. Que o filho tinha saído da cadeia no dia vinte e nove de Julho de mil novecentos e vinte e três; que chegou a casa só para juntar a roupa numa mala e sair de novo, sem quase despedir-se, e entrar na camioneta da carreira das três e um quarto e deixar a Vila sem uma lágrima; que nos últimos tempos têm recebido notícias do filho em cartas enviadas de Moçambique com selos de girafas nos sobrescritos; e que tudo estaria certo com a ordem das coisas se não fosse meterem-se (eles) onde não eram chamados e quererem mudar o que está certo por ser assim que o mundo desde sempre naturalmente roda; e que tivesse um bom dia e que agradecia que nunca mais lhe batesse à porta de casa.
4.
João subia ao Alto da Ribeira e viu as aves a deixar a lagoa e a rumar à Veiga, aos leitos de cheia, procurando a precária luz da manhã de Março. E chegou a sorrir. Um sorriso breve: a casa, de telhados derruídos, de paredes escalavradas, devolveu-lhe o pesadelo recente, recorrente, num espelho em que o seu rosto se confundia e misturava no rosto do pai adoptivo e num outro rosto indefinido que parecia reverter dos demónios das ausências.
3.
Uma vizinha, por caridade, socorria Manuel Pequeno; e foi-o mantendo vivo: chegando-lhe uma sopa, lavando-o, mudando-lhe a roupa da cama. Vivo é como quem diz: deitado, imóvel, como se não respirasse; na casa em ruínas; sozinho; sem que um ciciar se desprendesse dos seus lábios secos, crestados, em ferida; os olhos parados num tempo antigo com a sombra a fazer de venda e a descer e a poisar-lhe na íris.
sexta-feira, agosto 29, 2008
2.
Há uma diferença entre regressar ao passado e ficar preso nos fios do seu intangível labirinto, ou regressar para vivermos nele o futuro. João Pequeno, em fins de Fevereiro de mil novecentos e trinta e um, nesse preciso instante em que a noite caía no porto de Santos, fugia mais de si e do seu tempo do que procurava um tempo novo. As imagens antigas, esses retratos devolvidos de modo imprevisto, o caminho de terra batida ou um rosto, a luz excessiva ou a varanda sobre o pátio onde crescia uma figueira, não haveriam de servir-lhe para fundar um novo tempo e encontrar-se ou procurar um novo caminho que a memória dos caminhos antigos ajudam apenas a definir melhor nos traçados novos. João Pequeno fugia de si e regressava ao que não existe; fugia de si mesmo mais ainda do que, nesse preciso instante em que caía a noite e o navio saía do porto de Santos a caminho do largo mar oceano, lhe era possível adivinhar. E foi assim que chegou à Casa do Meio da Aldeia que o padrinho lhe deixara em herança; e foi assim que chegou à Vila, numa manhã muito fria de Março, e achou, quase doze anos depois de ter fugido do posto da Guarda por entre dois tiros indecisos, que tudo estava igual e tudo era diferente.
1.
Atravessar o mar, regressar, subir e descer os caminhos em sentido inverso. A fugir de novo. A fugir sempre. Naquela noite, em Julho de mil novecentos e dezanove, João fugia dos outros; agora, quase doze anos depois, fugia sobretudo de si mesmo.
sexta-feira, agosto 22, 2008
De Catarina, portanto, se um dia decidir dar a público esta história, conte o pouco que se sabe de ciência certa e deixe que sejam os leitores, com base nas suas experiências e vivências próprias, a preencher os intervalos do que foi público ou se depreende. Muito já se disse. Acrescente apenas que uma criada de branco avental vigiava todos os seus movimentos de criança; e que, se adormecesse à lareira, a recolheria, a ergueria nos seus braços redondos e a deitaria no quarto «da menina», garantindo que a botija de água aqueceu os lençóis no ponto e que a bambinela corrida não deixará a luz da manhã perturbar o seu sono. Explique como a ausência do pai, cortada por breves regressos à Casa do Corgo, e logo depois (tinha Catarina dez anos) ao palacete de Lamego, necessariamente a deixou com esse sentimento de orfandade que a levou a mais refugiar-se e guardar-se em si mesma. Conte que não frequentou os bailes das romarias e o quanto desejou, em determinadas alturas, sair de casa durante a noite e misturar-se no alvoroço da Senhora dos Remédios e ter um homem que a apertasse contra si e sentisse as suas mãos nas suas e o seu corpo agarrado ao seu enquanto as girândolas iluminavam as encostas em redor. Conte, se quiser, o episódio do primo seminarista e da tragédia de Catarina não sentir o desejo e se ver grávida e fazer um desmancho no Porto, refugiando-se da boca do povo e do escândalo em casa da tia Custódia na Avenida dos Aliados. E passe daí para uma mulher de trinta anos a quem a família propõe um casamento no Brasil com o filho mais velho dos Piscicelli. E conte como João Pequeno, na ausência breve de Paolo Piscicelli, à mor de negócios, a levou a passear pelas ruas do Ipiranga e a ver uma fita no Cine Theatro Brazil; e de como a convidou para uma limonada em sua casa e de como ela, de súbito recordada do sobressalto dessa noite de Lamego, muitos anos antes, em que um moço desajeitado a olhou como se o mundo estivesse a começar, tocou um corpo pela primeira vez em toda a sua vida como se esse corpo estivesse dentro de si desde sempre à sua espera. O resto é consigo. Já se sabe que Catarina ficou grávida de João Pequeno. Relate como entender o escândalo e a tragédia desses dias; o casamento que não chegou a consumar-se; o seu regresso a Lamego; o nascimento do filho (neto, pela banda do pai, de Leonor e do engenheiro das florestas, bisneto de Américo Fontes) na Casa do Corgo, num segredo que se foi aos poucos transformando em alarido e vozear; a morte de Catarina, dois anos depois, deitando-se de braços abertos, num voo de anjo trágico, do varandim do primeiro andar para o lajedo de granito do pátio. Já sabe que esta criança haverá de ser levada à Aldeia logo após a morte da mãe. Mas o resto é consigo. Você (diz Maria Teresa) é que saberá se é já o tempo de se dizer que o filho dos amores clandestinos de João Pequeno e Catarina Ribeiro da Conceição, em Janeiro de mil novecentos e trinta e um, viria a ser nem mais nem menos que o avô de Aline.
O que sabemos de uma vida (continua Maria Teresa) é sempre tão pouco: o que publicamente se expôs; o que nos contam; o que acabamos por intuir do que não nos contaram. Bem vê a precariedade de tudo isto. Porque só expomos publicamente o que decidimos, de um complexo novelo de coisas, que se soubesse; ou o que não nos foi possível ocultar. O que decidimos dar assim aos outros é, as mais das vezes, o que menos interessa de tudo quanto nos fez estremecer ou se nos gravou na pele, nos músculos, no imperscrutável coração. E mesmo que soubéssemos tudo; mesmo que nos não fosse estranho o mínimo segredo da vida de alguém; mesmo que nos fosse dado conhecer todos os seus pensamentos e sentimentos, todos os seus movimentos, todos os seus desejos, todas as suas ambições; mesmo que soubéssemos dessa pessoa as mais íntimas coisas; mesmo que conhecêssemos tudo da sua vida. Mesmo assim: mal sabemos nós do que vivemos nós e do que significou isso que vivemos. Mas, desculpe insistir, mesmo que soubéssemos tudo: há sempre uma membrana que separa o que foi e o que sabemos ou supomos ter sido; há sempre uma fronteira entre o que sentimos e o que julgamos ter sentido ou conseguimos contar do que sentimos ou fomos verdadeiramente no mais profundo de nós. Nunca sabemos nada da vida de ninguém (nem de nós mesmos) mesmo quando supomos saber tudo.
terça-feira, agosto 12, 2008
Catarina nasceu num mundo marcado pelo sexo (quase sempre presente de tão reprimido), pelo sobrenatural e a reserva. A mãe, no entanto, entrava pouco nos códigos comuns do lugar. Nunca o gado da Casa do Corgo deu três voltas à capela, recebida a bênção do padre, no quinto domingo da Quaresma; nunca as mulheres da família correram as voltas da peregrinação à Senhora da Esperança rumando de seguida, devotas, compadecidas, lentas, à capela de São Lázaro; nunca se rezou ao Espírito Santo, juntando-se todos em romaria, no domingo de Pentecostes; e não se dançava, nunca se dançou nos seus pátios, ao som de bombos e concertinas. Também nunca se cortou o coxo ou se meteu chumbo derretido em alguidares, nem se correram as contas do terço em redor da lareira cobrindo, em final de fogo, as brasas com pratas de chocolate; nem se tratou da espinhela caída, da névoa, da incebela, do cobrão ou do cobranto; nem, noite adentro, houve nunca ladainhas; nem se tirou, em segredo, o mau-olhado ou o sarnão, o fanico ou as eripselas, o tricicol, a gota ou o treçolho. Catarina era «a Moura» (continua Maria Teresa). Bem vê: não lhe bastava a desdita de ser mulher, de crescer numa redoma (nunca jogou à cocha ou à pedrinha, ao bom-barqueiro, à peçonha ou à corda podre) – haveria ainda de ser diferente das outras. Ou assim (vai dar ao mesmo) as outras, e os outros, a viam.
segunda-feira, agosto 04, 2008
Já conhece a história de José Ribeiro da Conceição; já sabe que o filho mais velho de Francisco abandonou o sonho de produzir o melhor vinho do mundo e rumou ao Brasil; já sabe que a casa se recompôs e que os negócios de importação e a entrada no universo da navegação de longo curso trouxeram à família não apenas a antiga prosperidade como uma riqueza que se confundiu no entendimento do povo com a árvore mítica das patacas; já sabe que José obteve de um amigo de seu pai o necessário financiamento e a abertura de caminhos que lhe permitiram a aventura do desconhecido; já sabe que Catarina, nascida muito depois da morte do avô, não ficou com a memória do pai senão a de surtidas breves à terra pátria misturadas no fausto de jantares onde o padrinho de João Pequeno chegou a estar presente e a que jurou não mais regressar incomodado com a afectação e a vanglória do mundo; já sabe que Catarina nasceu num universo onde se sentia confundida entre a proximidade das coisas quotidianas e a distância que pareciam reservar-lhe como se houvesse uma diferença no seu rosto ou na sua ascendência que obrigasse os outros a uma atitude de permanente e (para ela sempre incompreensível) reserva; já sabe o quanto ela, Catarina, se sentiu crescer numa redoma, afastada de todos e, portanto, sobretudo, de si mesma; já sabe que a fortuna e a ostentação acabariam por levar à construção de uma residência mais adequada aos novos estatutos da família, em Lamego, junto ao Seminário e ao Paço Episcopal. Mas ninguém lhe falou, nem eu, da viúva de Francisco, da mãe de José Ribeiro da Conceição, da avó de Catarina: Madalena. Porque só os homens ficam nas crónicas (continua Maria Teresa); porque as mulheres não contam. E no entanto são as mulheres que carregam os pesos das casas; são elas que abrem as portadas das janelas quando a sombra começa a coagular e a fazer vibrar a água dos cântaros. E no entanto, quando Francisco morreu, quando a crise chegou à Casa do Corgo, depois de espalhar-se por uma e outra e todas as quintas do Vale do Douro, foi Madalena quem primeiro deixou de lado as lágrimas; a definir estratégias; a avançar contra o remanso. Havia nela uma nobreza sem ostentação que você nunca compreenderá; uma distante humildade; e uma força e uma perseverança características destas mulheres altivas e simultaneamente ausentes, imperativas, que, passada a tempestade, se acolhem de novo à candura e à obscuridade. Como sei eu estas coisas? Isto, se o não soubesse de outro modo, sabê-lo-ia de ciência certa por saber que é sempre assim que o mundo roda.
quarta-feira, julho 30, 2008
Uma maldição parecia ter sido lançada sobre o Douro. O oídio, primeiro; a filoxera, depois; e agora uma ameaça maior e definitiva (a burla, a fraude) que não iria lá com enxofre, sulfuretos de carbono, porta-enxertos americanos a substituir o plantio em pé-franco ou alargamentos da área do benefício. Já se viu (continua Maria Teresa) que Francisco soube tirar proveitos da crise de meados de sessenta. Mas em mil oitocentos e oitenta e sete o negócio de exportação atingia limiares de insustentabilidade. Francisco, doente, quase falido, morria no Brasil, em Santos, no mês de Outubro; o filho mais velho acabava de produzir um dos melhores vinhos do século, nesse Verão de dias quentes e noites frescas que suspendia nas encostas uma luminosidade e uma fina leveza do ar que pareciam já embriagar antes da fermentação do mosto; e, de súbito, num tempo em que a fraude e as imitações do vinho do Porto se generalizam nos principais mercados internacionais e espalham a miséria em todo o perímetro do Vale, as responsabilidades do futuro da família ficam sobre os ombros de José Ribeiro da Conceição. Descapitalizada a empresa, sem recursos financeiros, não seria ainda o tempo de saborear o Queen Victoria’s Jubilee, um vintage como há mais de cinquenta anos não havia memória no Douro.
domingo, julho 27, 2008
Não sei se lhe devia dizer isto (diz Maria Teresa). Você nasceu e viveu sempre na cidade de que o vinho do Douro tomou o nome. Mas eu não posso falar-lhe do Douro sem ligar as coisas. Você ficou fascinado com a Casa a Jusante da Ponte de Arame; com a memória das pedras arrumadas do alicerce à cumeeira; com as árvores dispersas em redor do pátio; com o rumor das águas do rio descendo os gralheiros; com as bétulas da vertente e com o bosque de carvalhos que o avanço dos pinhais não afastou de todo; com a sedução evocadora dos caminhos de terra que levam à Aldeia e correm junto à margem e depois sobem à colina antes de descer de novo ao terraço breve da encosta onde meia dúzia de casas e um tanque se erguem em redor do largo e da igreja. Você, e queira desculpar-me, traz agarrado à pele o sonho dos pequenos burgueses do nosso tempo. Não há mal nenhum em que seja assim. As coisas são o que são. Mas os pequenos burgueses do nosso tempo não desejam mais que reunir bens materiais, enriquecer, para depois se darem ao luxo de viver como pobres: andando a pé por caminhos de terra ou de bicicleta pelo meio dos montes; sem rede de telemóvel; com painéis solares ou outro qualquer sistema ecológico que venha nos manuais da Quercus e substitua a energia convencional; comendo sopas de feijão ou açordas de coentros ou grelhando peças da vazia (certificação D.O.C.) em carvão vegetal; num lugar afastado da auto-estrada onde os automóveis não cheguem sem foder as jantes. Você quer comprar a Casa, em Terras do Barroso, a Jusante da Ponte de Arame. Conheceu Aline. Fez-lhe uma proposta irrecusável. E não compreendeu a sua (dela) estranheza; o seu sobressalto. Mas há bens que não vêm nos inventários; isso você demorará a compreender; ou não compreenderá nunca. É muito fácil para si descrever a chegada de Catarina a São Paulo falando da pelerine desajustada ou da boina com pormenores de flores e pétalas onde poisavam aves em ramos finos; e do modo como o lapardeiro do João Pequeno a enganou e a deixou prenha recitando-lhe uns versos e gabando-lhe a beleza do olhar. Mas que sabe você da história que precede e explica a sua vida? É sempre tudo tão complexo. Habituámo-nos a olhar as coisas a preto e branco: é assim ou não é. E no entanto há sempre uma história por detrás que baralha e confunde e só depois, finalmente, aclara se tivermos a disponibilidade de ver. Francisco, o avô de Catarina, comprou terras no Douro Superior onde a filoxera quase não atacava; meteu-se no negócio da exportação; ergueu uma casa com porta carral e até se deu ao luxo de produzir um azeite fino com medalhas em Bordéus; enriqueceu. Mas Francisco Ribeiro da Conceição tinha consciência do que está por detrás do vinho engarrafado. Sabia que era preciso, primeiro, rasgar o calhau dos vinhedos com picaretas e alavancas; e depois abrir as valas e firmar os calços; e depois, nessa espécie de tabuleiros de nível, alinhar os geios; e depois, muito mais tarde, desmadeirar e cavar em redor das videiras para guardar a água do Inverno e não deixar os fertilizantes serem arrastados na encosta; e, mais tarde ainda, podar; e depois cavar de novo para que a luz entre por igual nos torrões assim revolvidos da camada estreita acima da pedra; e depois arrimar a vide e redrar e enxofrar e sulfatar; e, então, avançar para a vindima; e escolher e eleger e separar a uva; e pisar com os pés, em lagares de pedra, os cachos ainda iluminados pelo Verão; e depurar e trasfegar; e depois, finalmente, apurar o bouquet e envelhecer e só depois, mais tarde, muito depois, olhar o vinho e bebê-lo de um copo alto. Não sei se isto acrescenta ou atrasa ao que me pediu. Porque você me pediu apenas que lhe falasse da Brasileira de Lamego. Sei lá; peço desculpa. O certo é que as palavras são como as cerejas, e uma coisa leva sempre a outra.
sexta-feira, julho 25, 2008
Um insecto minúsculo atravessou o mar oceano e desenhou na Europa uma nebulosa cartografia. A existência de vinhedos e a direcção dos ventos dominantes pareciam determinar a sua progressão: Gard e Floirac, Orléans e Côte-d’Or, Cognac, La Crau de Châteaurenard, Cadarache, Castries e Tain-l’Hermitage, Valmadrera, Imperia e Caltanissetta, Málaga, Gerona, Vale do Douro. Um insecto minúsculo que parecia mudar a sua forma a cada instante e não ter um padrão de comportamento: amarelo, ocre, castanho claro, muito escuro, dourado, sem asas, com asas transparentes, maior que formigas, menor que um grão de areia, semelhando pequenas moscas domésticas; escalavrando as páginas inferiores das folhas ou permanecendo escondido a atacar as raízes sem vir à superfície; emergindo à luz clara, já com as asas que o subsolo não lhe pedia, a depositar os ovos nas galhas previamente cortadas; ninfas a esfacelar de novo as folhas, em Abril, depois da eclosão e depois duma espécie de hibernação nas células mortas da casca; criando nódulos nas raízes até ao advento dos fungos e à impossibilidade de circulação dos nutrientes; infestando as folhas até ao ocre, reduzindo a área foliar, agredindo os elos e os caules jovens; migrando; formando novas colónias; resistindo ao transporte do plantio; levando, enfim, à morte das videiras, da vinha, do vinhedo. Depois do oídio, uma década antes, um pequeno insecto, minúsculo, insignificante, atravessava agora o mar oceano, chegava às encostas declivosas do rio Douro e arruinava a produção de vinho fino na mais antiga região do mundo demarcada. Num jantar reservado em Britiande, na Quinta de Santa Cruz, com um regenerador que pouco tempo depois soçobraria pastas no Governo da Fusão chefiado por António Augusto de Aguiar, o avô de Catarina ficou a saber da iminente saída de um decreto de liberdade comercial que estenderia os marcos do vinho do Porto na direcção do Douro Superior. A ruína ameaçava; o tempo era de crise. Mas Francisco Ribeiro da Conceição, entretanto, comprava terras a eito onde a filoxera quase não atacava e o benefício se alargaria por diploma legislativo. Em mil oitocentos e sessenta e sete, numa pequena aldeia distante não mais que meia légua de Lamego, começava a erguer-se uma casa de porta carral e paredes de perpianho de tal modo aparelhado que nem uma agulha entrava nas juntas da pedra. Um olival, nas imediações da casa, estendia-se a perder de vista em linhas direitas. Mas a riqueza, entretanto, vinha do Douro Superior; das terras por onde os marcos da delimitação tinham avançado e o minúsculo insecto americano quase não atacava os plantios.
quarta-feira, julho 23, 2008
Catarina nasceu numa aldeia distante de Lamego não mais que uma légua: casa de porta carral, pátio ladeado no segundo piso por uma varanda corrida em três lanços e paredes de perpianho aparelhado de modo a que um alfinete não entrasse nas juntas da pedra. Um baixo-relevo talhado no granito, a encimar a porta, ostentava a data de construção: 1867. Na envolvente da casa e da pequena horta, depois do nabal, a juzante da cortinha do Corgo, estendia-se um olival de árvores alinhadas a perder de vista. Mas a riqueza que permitira construir a casa não vinha da azeitona nem do repolho temporão.
terça-feira, julho 22, 2008
Não deixará nunca de nos surpreender o carácter único de cada ser humano. Não deixará nunca, no ser humano, de nos surpreender a diferença, a dissemelhança, a diversidade: nenhum gesto se repete; nenhum rosto se repete. Talvez seja isso, o reconhecimento dessa diversidade, que nos faz mais iguais. Digo eu. Mas Catarina Ribeiro da Conceição nasceu numa pequena aldeia de não mais que sessenta casas; no ano de mil oitocentos e noventa e nove. E nesse lugar, e nesse tempo, a diferença era um agravo, um ultraje. A Moura, eis como Catarina era conhecida antes de ser a Brasileira de Lamego; desde a infância. A sua tez era demasiado escura para os padrões do sítio; o seu nariz demasiado arqueado e erguido; as suas sobrancelhas demasiado altivas; a linha horizontal dos seus lábios demasiado longa e demasiado bem desenhada; e o seu olhar ficava marcado pela imposição do imenso e intimidatório branco em redor da íris. A Moura, assim lhe chamavam. Também, provavelmente, por isso mesmo: por essa divergência fisionómica. Mas havia raízes onde fundar o preconceito: a mãe de Catarina usava uns vestidos de pano de Granada que insistia em designar por alfoleimes; e nos serões em sua casa, nas noites de vindima, nas desfolhadas, nas espadeladas, em vez da concertina e do bombo ouviam-se gaitas, adufes e arabis. Onde quero chegar? A isto: a vida toda de Catarina haveria de ficar condicionada pelas diferenças do seu rosto e pelas histórias (num universo dominado por superstições e fantasias) que essa diferença (essa distância) convocava. Quando chegou ao Brasil, muitos anos depois, João Pequeno gabou-lhe o moreno da tez e os «olhos imensos como se uma estrela os protegesse» (assim escreveu o mariola, a tinta permanente, num bilhetinho que ficou no espólio breve, atado num laço, de meia dúzia de papéis guardados no fundo duma gaveta da casa junto ao Seminário e ao Paço Episcopal); talvez Catarina permanecesse indiferente ao elogio, e de pé atrás, se não tivesse conhecido sempre, primeiro na aldeia, depois em Lamego, o peso insustentável da distância e dessa espécie de proscrição. Mas isto (diz Maria Teresa) já sou eu a inventar.
quarta-feira, julho 16, 2008
terça-feira, julho 15, 2008
E então, quase doze anos depois de chegar ao porto de Santos, algumas imagens antigas foram-lhe devolvidas no alarme da sua irremediável ausência: os muros do cadastro, a escaleira de pedra e a varanda sobre o pátio onde crescia uma figueira, a névoa erguendo-se por entre os salgueiros do rio, o telheiro onde se guardava a lenha do Inverno, a lareira acesa, a luz excessiva dos meses de Julho derramada na água dos açudes. João Pequeno julgava ter apagado, uma a uma, todas as imagens desse tempo antigo. A própria ideia de tempo presente começou, quase imediatamente após a sua chegada ao Brasil, a não fazer sentido. O presente era já o futuro que a cada instante o tocava e o invocava Os negócios, o amor, as viagens de barco cruzando os mares do continente, as noites de Buenos Aires, o movimento das ruas, o teatro, a velocidade dos automóveis de corrida a deslizar e a desaparecer por entre o pavimento e uma nuvem: tudo o afastava da noção de tempo e permanência. A invocação duma suposta memória devolvida sem aviso (as folhas dos negrilhos, o arame das vinhas, os pátios, o caminho de terra subindo às colinas por entre bosques de bétulas) não era mais que um pé, um pretexto, um subterfúgio, uma tentativa de justificar a desistência. A verdade é que os negócios corriam mal, as paixões corriam desastrosas e as relações de confiança se deterioravam a olhos vistos numa meada sem fio. Resolveu, portanto, regressar a Portugal. Caía a noite quando o navio saiu do porto de Santos. João Pequeno fugia de si mesmo mais ainda do que, nesse preciso momento, lhe era possível adivinhar.