sábado, dezembro 27, 2014

ainda O Uso dos Venenos

O meu livro de poesia "O Uso dos Venenos", edições Língua Morta, foi referenciado, nas habituais escolhas dos melhores livros publicados em Portugal durante o ano, por dois críticos literários do jornal Público (José Riço Direitinho e Luís Miguel Queirós) e por dois do Expresso (Pedro Mexia e José Mário Silva). O livro, que se vende ao preço de 13 euros e que saiu numa tiragem de duzentos exemplares, deve estar longe de se encontrar esgotado. Além dessas referências na imprensa, que valem o que valem, acrescente-se a opinião do meu tio Alberto e da minha prima Esmeralda, que consideram "O Uso dos Venenos", respectivamente, "um livro que tem ali umas coisas que dá que pensar" e "uma obra que, não fosse a gente não entender metade do que lá se diz, tinha que se lhe dissesse".

O livro pode ser adquirido, por exemplo, na Livraria Letra Livre (www.letralivre.com), ou pedido directamente à editora através do mail edlinguamorta@gmail.com.

domingo, novembro 02, 2014

um disco dos doors

Coisas que chegámos a pensar
que guardaríamos para sempre. Um disco
dos Doors. Umas calças de ganga. Um seixo
rolado da Presa das Tílias. Um livro

de Teixeira de Pascoaes. Uma
carta de amor com a letra ainda trémula
de os sentimentos de quem escrevia
se sobreporem aos cuidados

da caligrafia. Um mapa das estradas.
Coisas assim. A vereda a caminho do rio
onde pela primeira vez as nossas mãos

por um momento tão breve
chegaram a tocar-se. Uma dança
num baile de aldeia. Uma viagem de automóvel

sem gps. O odor húmido
dos pinheiros bravos depois dos incêndios.
Coisas assim

que um dia julgámos
que havíamos de guardar como tesouros
inconsumíveis. E no entanto

fomos perdendo tudo
até os bolsos ficarem vazios
e o coração apagado como num incidente
de inverno. E nem a memória

de tudo isso pode agora valer-nos.
Porque a memória
recupera sempre o que não temos
ou já não podemos ter.

domingo, outubro 26, 2014

notas do caderno de apontamentos do meu avô francisco

Os
que entram no mundo
pelo silêncio das florestas.
Os que vêem apenas
quando a luz
os cega.
Os que repetem
em voz alta
os nomes dos frutos.
Os que procuram até ao fim
a árvore
dos significados.
Os
que não
acreditam.
Os que não temem
o frio
do inverno.
Os
que não têm
contas a prazo.
Os que chegam sempre
tarde
às paragens dos autocarros.
Os que se esquecem
de riscar os dias
nos calendários.
Os que se recusam
a serem jovens
para sempre.
Os que guardam
as sementes
nas gavetas das cómodas.
Os
que não têm
pátria.
Os que deixam
entre as folhas dos livros
os retratos antigos.
Os
que enlouquecem
devagar.
Os
que têm
a obsessão dos mapas.
Os
que se rendem
à linguagem.
Os que crêem
no poder obscuro
dos acasos.
Os
que olham
as estrelas.
Os
que se
perdem.
Os
que não esperam nada
do mundo.
Os
que não têm nada
a perder.

quarta-feira, outubro 15, 2014

(poema antigo)

FADO

Gostava de escrever letras de fado.
Falar de um coração que não existe
se a dor o não tocar ou não for triste,
se o mundo não ruir, desmoronado

de tanta vil angústia e desalento.
Gostava desses temas nos meus versos:
de ter todos os dias mil pretextos
pra invocar um crime ou um lamento,

a insídia, um aneurisma, um anexim
antigo, um nó fatal na coronária,
traições, o luto, as penas do inferno.

Gostava tanto de escrever assim.
Detesto a minha obra literária.
Detesto ser poeta e ser moderno.

quinta-feira, outubro 09, 2014

os teus poemas

Tu dizes que é já tarde - e anoitece.
Tu falas em marés - e o mar pressente.
E o sol é nos teus braços que se aquece
em busca de outro núcleo iridescente.

Mas é no dia-a-dia, meu amor,
no pão, numa panela, num cabide,
na cama por fazer, no esquentador,
que tudo se confronta e se decide.

Por isso escrevo em prosa os teus poemas
e mais que a lua, a orbe, a imprecisa
Andrómeda, uma estrela, os grandes temas,
eu escolho o chão que pisas por divisa.

E temo, por incrível que pareça,
que a poesia mate ou enlouqueça.

quarta-feira, outubro 08, 2014

é pouco o que te der

É pouco o que te der. É sempre pouco.
Há sempre uma palavra, há sempre um gesto,
há sempre um nome em falta. Há sempre o resto.
Por isso o que te der é sempre pouco.

Às vezes imagino que o teu nome
é feito dos silêncios da floresta.
Às vezes adormeço: é o que me resta
nos dias em que o mar traz o teu nome.

Assim pudesse dar-te o que é do mundo:
navios, uma estrela, nebulosas
planetárias. Ou transformar em rosas
a luz das supernovas que há no mundo.

Assim pudesse dar-te a vida toda
e mais ainda. O resto que se foda.

terça-feira, outubro 07, 2014

em todas as mentiras

Em todas as mentiras que te disse
havia qualquer coisa de sublime:
eu queria ser melhor; e fui; e se
te menti até isso me redime.

Eu via-te chegar fechada em leque,
às vezes tão cansada e indiferente
ao lume e aos seus rumores; mas eu é que
limpava o pus e a ferida persistente

de ser o mundo assim tão arbitrário,
infame, vil, gravado em desencanto.
É certo que tirei do dicionário

(eram mentira) os versos que te fiz
e os nomes que te dava. E no entanto
só queria que pudesses ser feliz.

domingo, outubro 05, 2014

lamento do autor antigo

A métrica é um chão que já deu uvas.
A rima é outro chão. E agora é in
diferente o decassílabo ter vinte
ou doze ou quatro sílabas. Oh musas

de versos tão antigos: vade retro!
Eu quero é ser moderno em estilo livre
e ter a liberdade que não tive
ao respeitar a norma, a rima, o metro.

Calhava-me ter outras companhias.
Talvez frequentar mais livrarias
e ter noção dos crimes que cometo.

O certo é que merecia outro destaque:
autor que até se vende na FNAC,
só falta que me livre do soneto.

sábado, outubro 04, 2014

a poesia em 2014: uma antologia

Com o John Wayne
estávamos sempre à vontade.
Estávamos com o John Wayne
e atirámos a matar.

Os dois ladrões de cavalos
ficaram no chão
de terra batida
em frente ao saloon

com o sangue a escorrer-lhes
da boca. Tínhamos
oito anos

e no dia seguinte
não se falava de outra coisa
no recreio da escola.

sexta-feira, outubro 03, 2014

isto é apenas/ um filme

Ele dizia: isto é apenas
um filme; não tem o ruído de fundo
e esse grão minúsculo
e quase imperceptível

do cinema; uma espécie de sujidade
leve. E é isso também
que separa as cidades
e as aldeias: eu não era capaz

de respirar o ar
lavado dos campos; preciso
dos prédios altos

e desse ruído de fundo levemente sujo
das ruas das cidades
em hora de ponta.

o crítico literário vai de férias à província

Da varanda do quarto
viam-se
em vez das aliterações
o vale

e os pinheiros bravos
a subir
o monte. Acordava-se assim
a ver as coisas

concretas. Como se
afinal
além da literatura houvesse

mundo: casas;
pessoas; pássaros que
voavam mesmo.

quinta-feira, outubro 02, 2014

os do Eiró nos anos setenta

Os do Eiró
uma vez puxaram de navalhas
no recreio da escola
a meio de uma discussão

sobre a caderneta
dos cromos. E de repente
éramos todos grandes. Já ninguém
queria saber dos triângulos escalenos

ou dos complementos
directos. Tínhamos crescido tanto
nesses quinze minutos de recreio

que mal
começávamos
a caber em nós. Bem

podia a professora
falar-nos das províncias ultramarinas
ou apontar-nos no mapa
dos caminhos-de-ferro

a linha
do Corgo. Só pensávamos
no recreio
e em termos um dia

uma navalha de ponta-e-mola
com a lâmina
do comprimento

de uma mão de travessa
como as dos rapazes
do Eiró.

quarta-feira, outubro 01, 2014

nota a despropósito sobre um livro que ganhou um prémio

Não tinha caído a noite.
A noite não cai.
Isso é um modo de dizer.
Nós é que tínhamos caído

com estrondo. A noite apenas subiu
em direcção ao céu
a partir de nós.
O fenómeno está explicado

num livro de poemas
cujo título assim de repente
não recordo. O certo é
que ninguém se aleijou.

terça-feira, setembro 30, 2014

assinar decretos ou cagar d' alto

há os que adoram atirar pedras
ao espelho imóvel das represas
e depois se mijam todos ao confrontarem-se
com a ondulação ligeira das águas.

é o que dá não levarem a sério os ditados antigos
da infância: quem durante o dia brinca com a água
acaba por molhar as cuecas na cama
durante a noite.

e brincar com o fogo é pior: mas esses que
atiram pedras às represas com a suposta legitimidade
de um poder arbitrado
nem coragem costumam ter para acender um petromax

com um fósforo aceso. quanto mais. por isso
geralmente
mijam-se em maior frequência pelas pernas abaixo
do que queimam os dedos.

domingo, setembro 21, 2014

[não é por lermos mais]

Foi uma desilusão quando compreendi
que a regra não era sermos melhores pessoas
por lermos mais ou termos uma educação
esmerada. O meu amigo Adolfo levava-nos

a palma a todos e nunca leu um livro
pela razão simples de que não sabia sequer
juntar as letras do seu nome
próprio. Ripada tenho eu levado ao longo da vida

essencialmente de gente respeitável
de berço. De gente que leu o Quixote
na versão do Aquilino para as criancinhas

e os filósofos gregos e que adormecia a ouvir Bach
e que depois se doutorou no estrangeiro.
Claro que nenhum deles me roubou

a carteira como aquele energúmeno da Campanhã
que tinha ar de não conhecer uma letra
do tamanho de um malho rodeiro mas
apenas umas unhas com tanta merda que só visto.

São mais subtis e limpos. E os advogados deles
pagam-nos ao minuto de modo a que a falta de tempo
não seja desculpa para não levarem o código
tão a pente fino como se estivessem a catar

lêndeas. Mas a questão é que o termos lido muito
ou pouco e termos tido ou não educação de berço
não é critério para que sejamos melhores ou

piores pessoas. E isso é uma coisa que
quando um dia descobrimos nos deixa,
digamos assim, melancólicos.

quinta-feira, maio 22, 2014

[Vilarinho Seco]

Inverno após inverno o coração a
preto e branco tece a monotonia desce
em fios oblíquos poisa enfim abandonado nestas
margens onde o próprio fulgor da idade

parou a descansar os ombros os braços a
voz inúmera e arável uma alegria que
o tempo foi esculpindo nos rostos e nas casas
uma serenidade tantas vezes próxima do

inquietamento e do milagre. Inverno após
inverno a preto e branco a inocência cresce
sobe às paredes mais altas desenha nas saias
e nos lenços o que só com o desejo

pode partilhar: o silêncio grande do largo
a casa fechada a monotonia dividindo com o corpo
os mapas e as razões para uma
última viagem sem pecado nem memória.

[Tílias]

[para o Pedro]



Não saberemos nunca de que lado
o seu olhar partiu em direcção ao rio
à curva do muro à sombra
também dos lódãos em setembro a caminho do azul

e outras águas. Raras vezes a manhã
terá morado assim as suas vozes no crepúsculo
devagar abrindo junto à casa
aos poucos degraus por onde cresce

o morangueiro o alecrim o pequeno sol da infância
a crueldade ainda do inverno
repetindo modos de perder as coisas.
Hoje as abelhas talvez apenas demorem mais

tempo na corola de fogo do seu nome
no telhado novo na laja da mesa
onde o esquecimento adormece com as mãos
dobradas em quatro sobre o pano da memória.

sexta-feira, maio 16, 2014

[A Redundância]

A máquina hidráulica repõe
nos canais de rega
a água e a luz remanescentes do inverno
um veio de silício que mistura a
obscura matéria dos astros e
a poeira incombustível das
folhas das árvores depois dos meses breves
de junho
a cal incinerada nos fornos de calcário
as mãos abertas em vez da intempérie
a página dos romances e

se respiras impões uma gramática
a Lentidão
a Redundância.

terça-feira, maio 06, 2014

[Não havia fronteiras]

Podias então dizer
tudo me pertence:
a luz de junho poisada
nos taludes ou nas folhas
minúsculas das cerejeiras
bravas, o mapa
das efémeras migrações
dos nomes, os territórios desenhados
nos cadernos de duas linhas
logo depois sujeitos
à voragem dos incêndios.
Não havia fronteiras:
em vez das bandeiras
espetavas na terra lavrada

uma vara de lódão.

quinta-feira, maio 01, 2014

[Os objectos comuns]

Eram objectos comuns
e no entanto os
seus nomes estabeleciam categorias
além dos nomes

que os designavam: vasos,
cântaros, vasilhas
de alumínio, púcaros
de água.

Só não regressas
a esses nomes
porque nunca te desligaste
deles. É

uma fidelidade
que a filosofia da contemporaneidade
não aprendeu ainda a inscrever
nos seus pressupostos

e que um dia emergirá
naturalmente
por entre diagramas e os gráficos
da crise.

quarta-feira, abril 30, 2014

[Os almoços]

Os almoços depois
das inaugurações: essa espécie
de coisa deslocada
entre regozijo

e a ideia
de que é preciso
começar
tudo de novo.

terça-feira, abril 29, 2014

[O relâmpago]

Já se correu o eito. Já se carregaram os colmos
e na madrugada de junho
se recolheu a marcela.
Já se pisaram as uvas.
Já nas vertentes da umbria a
giesta negral deixou a sombra dos seus nomes.
Não tarda a água talhada
no tanque, o relâmpago
no pátio.

segunda-feira, abril 28, 2014

[Turismo cultural]

Por detrás de tudo isso que procuramos
num fim de semana de férias
como se tivéssemos vencido
e nos pudéssemos dar ao luxo de perder: a merda

nos currais, a neve a que a lama se mistura
nos caminhos, um médico
que já não chega ao posto de saúde improvisado
às segundas feiras de manhã. E

o silêncio. O silêncio nos telhados
das casas vazias. Quase
não há mais nada: o lume que levamos
nem chega para acender a lareira.

domingo, abril 27, 2014

[Jovens de fato/ e gravata]

O velho quase nunca tinha
visto a televisão: a perplexidade
dele a olhar o telejornal:
jovens de fato

e gravata como se estivessem num casamento
fino: a discutirem os investimentos
do Estado, prioridades,
as idades da reforma.

quinta-feira, abril 24, 2014

[Um lugar]

Um lugar onde nos reconhecêssemos
como se chegássemos tarde a
um país estrangeiro
e não precisássemos de perguntar
onde se acendem as luzes
ou se vendem os
cigarros
e a cerveja.

quarta-feira, abril 23, 2014

[Da série «O Fado do desgraçadinho e da desgraçadinha»]

Não me deixes acordada
qualquer dia nem me deito
já chegou a madrugada
e eu hora a hora acordada
até ser de madrugada
com esta ferida no peito

Não me digas que é já tarde
que o tempo nos amolece
não digas que me resguarde
da paixão só porque é tarde
não digas que já não arde
não digas que tudo esquece

Não insistas no argumento
de que o que passou passou
e que é só dar tempo ao tempo
que o amor é como o vento
não é mais do que um momento
que tudo o vento levou

Eu cheguei a achar que o mundo
era mais do que perfeito
o céu alto o mar profundo
ninguém ficar em segundo
e não sentir lá no fundo
esta dor dentro do peito

Mas esta ferida não passa
transformou-se em cicatriz
não diminui não deslaça
e por mais coisas que eu faça
ai esta ferida não passa
transformou-se em cicatriz

Não me deixes acordada
bate à porta sou sincera
esquece que estou magoada
que me senti ultrajada
bate à porta sobe a escada
estive sempre à tua espera

quarta-feira, abril 16, 2014

[A juventude]

Às drogas, aos estaleiros das obras,
ao vento do árctico nos ramos finos dos vidoeiros,
às navalhas e às lâminas, aos automóveis
a cortar a noite sem faróis nos caminhos
de terra, aos metais incandescentes,
às fasquias, à música, à electricidade
estática, aos ferros amarelos dos guindastes,
às páginas dobradas dos livros de geologia,
aos incêndios, ao rumor dos caules da insónia,
às fendas das águas subterrâneas
dos relâmpagos, ao amor sem o cálculo, ao álcool,
às bombas de combustível, aos declives,

a tudo isso e mais a juventude deve
a eternidade do seu tempo imenso e breve.

quinta-feira, abril 10, 2014

[As cobras]

As cobras nunca regressam
aos lugares onde deixaram a pele.

quarta-feira, abril 09, 2014

[O caminho de casa]

A minha avó trazia o cântaro
e enchia vagarosamente
os púcaros com água.
Eu ficava a olhar e
por um instante acreditava
que não havia mundo
fora dos muros do pátio
e que o estrangeiro era uma invenção
dos que perdem as chaves
ou o caminho de casa.

quarta-feira, abril 02, 2014

As Coisas que é preciso dizer. 19: a nostalgia

um tempo houve
em que estendíamos os frutos na esteira das açoteias
como se fosse ainda possível acrescentar à tarde uma outra luz que a
tarde exasperadamente procurava nas
suas frases de verão
as crianças corriam nos lancis dos canais de rega
mergulhavam no tanque ou
levantavam-se em equilíbrio nas cumeadas distantes
as árvores cresciam devagar como se apenas esperassem a noite
o correr das águas ficava suspenso de um gesto
e então as mulheres erguiam-se das cadeiras de esparto e
vinham também elas ao pátio
deslumbradas
a olhar as labaredas imensas
e a esconder com o lenço na cara
as lágrimas
de uma nostalgia
sem nome

terça-feira, abril 01, 2014

As Coisas que é preciso dizer. 18: vai ser difícil

vai ser difícil regressar à simplicidade dos gestos iniciais
porque primeiro é preciso retirar o entulho dos armazéns dos desperdícios
e já nem sabemos por onde espalhámos os objectos excessivos
vai ser difícil
os holofotes iluminam as árvores erradas
nos caminhos cresceram as ervas azuis do esquecimento
e é preciso fazer tudo ao contrário
recomeçar a partir dos campos lavrados
da luz adormecida no cimento das açoteias
da água a correr nos canais de rega
vai ser difícil
porque primeiro é preciso desligar a máquina oscilatória dos interesses
e já nem sabemos
no emaranhado de fios
quais são os fios
por onde devemos puxar

sexta-feira, março 28, 2014

As Coisas que é preciso dizer. 17: antes do acordo ortográfico

não queres nada
o ramo de ser o melhor no dia das colheitas da
flor-de-púrpura-das-sete-pétalas-desencontradas
o prémio de atirar mais longe no malhão a pedra-do-prémio
não queres nada
não queres vencer no terreiro do largo do meio-da-aldeia
não queres a
memória gloriosa das mulheres que traziam cântaros castanhos à
cabeça com os seus contornos irregulares contra
a luz excessiva
não queres sucumbir ao poder da aliteração
não queres o disfarce das máscaras dos domingos depois dos
horários litúrgicos
não queres as flores dos panos de linho em cima da cómoda
não queres a página do jornal com o círculo desenhado a tinta-da-china
não queres os líquidos aquecidos nos jarros de cerâmica
não queres a ardósia ilusória dos alicerces das casas
não queres nada
queres o vaso minúsculo da água-das-fontes
queres a flor desarmada da urze-branca dos primeiros meses
queres a toalha estendida na mesa-dos-encontros
queres a luz de ser ainda o outono e de caírem as folhas das
árvores vagarosamente nos limites mais próximos dos meses de novembro
não queres nada
vem de tão longe o desejo de erguer nas varandas o
nome dos primeiros meses
o incombustível desígnio das nascentes iluminadas pelo lado de dentro
a leveza das coisas
o incêndio dos telhados vagarosos
não queres nada
não queres a vantagem dos nomes acabados de dizer em voz alta
não queres o álbum das fotografias dos casamentos e
dos baptizados antes do acordo ortográfico
não queres abdicar da etimologia
não queres abdicar do pão a levedar no forno das pedras incandescentes
não queres abdicar da água-dos-herdeiros
não queres nada
queres que se percam no interior de si mesmos
queres que um dia os senhores dos impostos nem saibam fazer as contas
quando for o tempo da contabilidade
dos desastres inumeráveis

terça-feira, março 11, 2014

As Coisas que é preciso dizer. 16: a hélice invisível

o mecanismo é o mesmo
nas golas dos açudes
à superfície
é quase invisível o círculo a transformar-se em elipse
mas depois a força helicoidal da massa de
água puxa os corpos para o buraco da descarga de fundo
como a acção de um íman sobre objectos metálicos minúsculos
o mecanismo é o mesmo
pensamos sempre que vemos o que não vemos
é uma tarde vagarosa com
a luz a atravessar os objectos
mas o buraco está debaixo de água e
é imune aos discursos das boas intenções
é refractário à sintaxe
é assim nas golas dos açudes
a hélice invisível puxa-te até ao fundo
primeiro parece apenas uma ligeira rarefacção do ar
depois sentes que a respiração é cada vez mais difícil
no último instante compreendes que
o buraco tem espaço suficiente para passar a cabeça
mas que é impossível
passar o resto
do corpo

terça-feira, fevereiro 25, 2014

As Coisas que é preciso dizer. 15: no sul

outra vez a terra
o imperscrutável som do puro veio da água
isso que parece afluir aos dedos como cinza ou obscura semente
isso que mistura o antes e o depois da música
uma criança corria nos muros estreitos das propriedades
delimitava o mundo em linhas a direito nos campos lavrados
ficava a olhar a luz misturada aos ramos das árvores
ao vermelho e ao castanho da terra
a luz a poisar exausta nas açoteias das casas
a subir os degraus como se finalmente os
dias e as noites pudessem equivaler-se
no sul a
arquitectura é a
luz desatada a meio da tarde nos troncos das amendoeiras jovens
a sombra que reflecte o espelho das
imagens verdadeiras numa parede de cal
a água das cisternas
o azul que ficava do lado do mar quando a
criança desenhava uma linha no chão
e descia dos muros das propriedades
para que
pudesse
começar
a anoitecer

quarta-feira, fevereiro 19, 2014

As Coisas que é preciso dizer. 14: uma vez

uma vez uma senhora
exigiu a factura dos dois quilos de carne de porco
que estava em promoção no pingo doce
e saiu-lhe um automóvel de luxo no sorteio da administração tributária
não havia mais nada no mundo que
a senhora desejasse
nada que pudesse fazê-la sentir-se mais útil ou solidária
nada que pudesse fazê-la mais feliz
nada que lhe fizesse mais falta
um automóvel topo de gama
um automóvel de alta cilindrada para no fim de
semana
correr as grandes superfícies
em busca das melhores promoções de costeleta de borrego
ou de massinha de cotovelo
sem estar sujeita às filas intermináveis
e aos horários cada vez mais imprevisíveis e espaçados
dos transportes
públicos

terça-feira, fevereiro 11, 2014

As Coisas que é preciso dizer. 13: um rosto estrangeiro

não chegavam a olhá-los de frente
olhos nos olhos
com receio de que uma qualquer forma de afecto acabasse por aproximá-los
limitavam-se a dar-lhes água e a inventar uma desculpa
para se fecharem de novo e
ficarem a olhá-los por detrás dos vidros das
janelas das casas enquanto eles vagarosamente se afastavam
era assim que estava escrito
nenhum sentimento nos deve ligar aos que estão de passagem
nenhum sentimento nos deve ligar aos que desconhecemos
por isso não os olhavam de frente e não faziam perguntas
até a esse dia em que alguém decidiu ficar por mais tempo na rua
e olhou de frente um rosto estrangeiro
até ao sobressalto de compreender que
havia alguma coisa nesse rosto que pertencia ao seu próprio rosto
que havia alguma coisa nos seus gestos que
era já parte dos seus próprios gestos
e fumaram juntos e falaram de lugares diferentes do mundo
como se ambos fossem estrangeiros e
assim começassem aos poucos a deixar de sê-lo
ou pelo menos a deixarem de
ser estrangeiros um do outro
como se ambos andassem há muito tempo perdidos
e agora se encontrassem para a possibilidade fabulosa de
caminharem juntos
e se perderem juntos
nos caminhos do mundo

sexta-feira, fevereiro 07, 2014

As Coisas que é preciso dizer. 12: os processos de deriva

já nem procuras a luz dos faróis que separam as enseadas e
as escarpas íngremes
como se aceitasses o princípio de que o
futuro depende dos processos de deriva litoral
como se nada valesse a pena
como se tudo fosse o resultado da vontade dos outros
até que alguém te dirá «talvez não seja tarde»
mas já não sabes os segredos de puxar as
estrelas cadentes com fios de ráfia
mas já não sabes respirar debaixo de água nos
açudes das penínsulas
mas já não sabes tirar o pão do forno enquanto as
pedras estão incandescentes
mas já não sabes em outubro adormecer nas avenidas à
espera da primeira e única folha dilacerada do ácer
mas já não olhas os desenhos das encostas de caducifólias a
procurar estabelecer o roteiro das perguntas difíceis
preferes desistir
secaram nos jardins os caules dos gerânios
desapareceram no horizonte o anil e a púrpura da luz tão
vagarosamente a evaporar-se
as crianças correm em desequilíbrio nos muros estreitos dos loteamentos
os velhos sobem às açoteias e olham para o lado de
dentro da idade à procura de respostas
e é tarde
já nem procuras
o passado não existe

sexta-feira, janeiro 31, 2014

As Coisas que é preciso dizer. 11: era uma civilização antiga

aguenta-se até ao gume mais afiado da faca do silêncio
aguenta-se sempre
aguenta-se até ao coração de pedra a
bater por dentro dos pássaros das migrações
aguenta-se até à ignomínia de compreender que
sucessivamente se alteram as regras a meio do jogo e
se esconde o mapa dos labirintos
aguenta-se sempre
de longe vem a narrativa dos sonhos desenhados em papel de cenário
de longe vem a narrativa da abundância
as crianças corriam nos panfletos de papiro com sorrisos de água
os homens dos senados moviam as pás dos moinhos com a máquina vibratória da
ocultação dos interesses
a retórica era uma das disciplinas mais avançadas dessa civilização antiga
mas a verdade é que se aguentava sempre
e aguentou-se até à memória de uma geração perdida nos
bosques indefinidos dos desencontros
até que o império começou a ruir a partir dos seus alicerces frágeis
altas colunas de mármore a desmoronarem-se nas arenas do circo
até as caravanas levarem os últimos grupos
e nos caminhos do império ficar apenas silêncio
e nuvens de poeira
que não assentaram ainda
que vão demorar séculos a assentar

segunda-feira, janeiro 27, 2014

As Coisas que é preciso dizer. 10: o afastamento

há quanto tempo não regressavas aos campos alagados onde cresce a
flor das sete pétalas
e a luz exígua do inverno fica poisada nos muros de
pedra arrumada como se pudesse tocar-se
às vezes é indispensável o afastamento do mundo
às vezes é preciso um lugar onde seja possível regressar à voz inicial
às nascentes da água
ao lento tear dos fios deslaçados no ramo escuro das enxertias
às vezes é indispensável o afastamento do
ruído e dos resíduos de uma civilização que faz do luxo a
mais alta torre dos sonhos
que sustenta um sistema moral no
princípio da acumulação de materiais
um regresso ao que ainda podia ser
para que por um instante se juntassem o lume e a nuvem
e as palavras começassem a arder na
vagarosa oscilação dos símbolos
como se fosse ainda possível esse espaço de claridade a
partir do silêncio antigo das florestas
e as agências de agiotagem tivessem que fechar as portas
por falta de adesão
à realidade

quarta-feira, janeiro 22, 2014

As Coisas que é preciso dizer. 9: a assimetria

no silêncio esconde-se às vezes o
barulho insuportável das sirenes das ambulâncias
um tremor de terra com epicentro nas condutas de água das
casas das famílias que rezam as orações da paciência
as pedras dos açudes a
ruírem pelo lado das reformas da idade
um céu difuso a reflectir o mapa da constelação dos interesses
a assimetria é sempre insuportável
é pior que o medo
é pior que um muro de escalada
é pior que ter frio
a assimetria faz erguer as palavras à altura dos símbolos
e isso é
como ter perdido tudo e
acreditar que é possível regressar a casa
às varandas da infância
ao que não tem ainda uma forma concreta
e no entanto permite dizer uma a uma as
sílabas dos
primeiros nomes do
mundo

quinta-feira, janeiro 16, 2014

As Coisas que é preciso dizer. 8: castelos de areia

magnífica e terrível metáfora
a dos castelos de areia
erguê-los e saber que o vento ou a maré a subir
não deixarão torres nem ameias
não deixarão intacto nenhum dos panos das muralhas
e no entanto alguém ergueu um castelo
alguém desenhou numa tarde de verão a mais improvável das metáforas
a de um reino condenado à efemeridade e ao sonho de
ser erguido de cada vez que ruir
até a ruína e o poder se confundirem
como se uma realidade fizesse parte da outra
e fosse indispensável erguer sucessivos castelos de areia
até alguém olhar da praça e ver o seu retrato por detrás dos
vidros das janelas dos palácios
a sua imagem reunida nos pedaços dispersos das
torres levadas pelo vento ou pela água das marés do equinócio
até coincidirem as palavras e os gestos
até nada haver que separe a água e a nuvem
o pensamento e a consequência
até um castelo de areia ficar como a representação perfeita
do que não pode ruir
por se saber que alguém o há-de reerguer
de cada vez que ruir

As Coisas que é preciso dizer. 7: o natal

acreditemos por uns dias que é possível regressar ao coração desabitado dos bosques
à página em branco onde podemos escrever as
primeiras frases como se inventássemos uma gramática a
partir da desmaterialização dos conflitos
acreditemos por uns dias que é possível erguer nas praças a árvore dos significados
em vez do relógio difuso dos interesses
acreditemos por uns dias que é possível desviar as águas dos costumes
e acender o pequeno lume dos encontros
nasceu uma criança e é como se nos nascesse uma ferida no corpo
porque custa olhar o espelho que nos devolve o rosto sem as máscaras
porque custa olhar a
evidência da possibilidade da redenção quando já não acreditamos em nada
a não ser nas taxas de juro e
nas agências de rating
a verdade é que nasceu uma criança
e por alguns dias podíamos acreditar que é possível regressar às
nascentes da água
à página em branco dos livros da infância
ao coração desabitado dos bosques dos milagres

sexta-feira, janeiro 10, 2014

As Coisas que é preciso dizer. 6: os sonhos

andamos tão perdidos no tempo
que nem os sonhos parecem resistir à terraplenagem devastadora das identidades
à arrematação de selos e telégrafos
ao mísero cálculo de probabilidade dos anos de júbilo
um sonho
a caligrafia trémula de uma carta entregue em mão nos
pátios das afastadas casas da província
as velas erguidas dos barcos dos desenhos das crianças
as ruas de kiev invadidas por jovens que
recusam a contabilidade sob condição das promessas de um império
coisas simples como a folha de um álamo branco
coisas simples como rasurar o ódio e decretar o privilégio das diferenças
de longe vem a metáfora dos nossos tempos tão errados
na época das anémonas de néon
e das lâmpadas acesas nos caminhos de serrim dos presépios
jang song thaek foi expulso de uma reunião do politburo
e depois executado
por ter ousado «sonhar sonhos diferentes»