quinta-feira, novembro 30, 2006

Só mais tarde

Só mais tarde, vendo melhor,
compreendemos
que não vemos.

terça-feira, novembro 28, 2006

[Se tu quisesses]



J. C. Barros. «Se tu quisesses ser o meu barco...». Acrílico sobre tela, 80x80 cm.

Apagar

Eu quero apenas ser chamado de novo
ao quadro de ardósia
e ter um apagador
eu quero apenas escrever a giz no meio da tempestade
eu quero apenas rasgar as páginas dos livros
eu quero apenas adormecer
eu quero apenas acordar quando os relâmpagos
trouxerem por um breve instante
o milagre de tudo ficar
iluminado por dentro.

segunda-feira, novembro 27, 2006

Do que é imutável

As folhas persistentes das alfarrobeiras permanecem como um sinal do que é imutável. Como se o Inverno, mudando quase tudo, precisasse dessa fidelidade, desse sacrifício, para que o milagre (por exemplo) das amendoeiras em flor possa vir a acontecer.

Em vez das palavras

jcb



sábado, novembro 25, 2006

Ciência do que é Real e Verdadeiro

Um poema de três versos ou a cal
iluminam a tarde
por igual
O que cintila
nem chega a ser
uma sílaba
Entre uma e outra frase
o que é
o amor?
Numa única palavra
se escondem as sílabas
da água
Escreveres uma frase
e regressarem
as aves
Um corpo ou uma página
que te devolvam
a água
«Dêem-me A Palavra
e moverei
o mundo»

segunda-feira, novembro 20, 2006

Outono

O vento
espalha nas mesas de trabalho
as frases dos livros

Palavras

O mar o amor
o amar
te

Nos teus ombros

Tocar nos teus ombros
as marcas d
água

Tudo

Quero

o teu nome

domingo, novembro 19, 2006

Ciência

Falavas duma espécie de Ciência (ou Lugar)
onde por um instante
se equilibravam as roldanas e as palavras

e as mãos ou a pedra
acolhiam indiferentemente
o desolado rumor das nascentes

quebrando de colina em colina
a memória de tudo
o que não aconteceu ainda.

Não termos aprendido

Revês Auschwitz
e custa-te compreender
não exactamente como foram possíveis os crimes
mas como é possível
tanto tempo depois
não termos aprendido
nada.

Tábua

Aprender a errar
com os erros
sucessivos

[Outra vez Georges de la Tour]

Onde nascem as águas
adormeces
iluminada por dentro

O lume

Conhecer o lume
e querer continuar
a queimar-se nele

[Outra vez a Linguagem]

Dizes a Palavra
e desmoronam-se
as cabeceiras declivosas

Não tens/ outro nome

Não tens
outro nome:
o que te dava

quarta-feira, novembro 15, 2006

Um erro ortográfico

O António, meu particular amigo, da forma civilizada que não conhece quem o não conhece, pergunta-me por mail, relativamente ao poema publicado exactamente antes do presente post, se não queria dizer «sedela» em vez de «sediela». Fui, claro, à minha bíblia, ostensivamente, esclarecer a coisa: mas o Houaiss deixou-me mal, o filho da mãe, e a verdade é que não reconhece a palavra tal qual a aprendi na minha precoce juventude de entusiasmado e militante pescador de trutas Fario fario: lá registando, embora (o Houaiss), o termo em que o António insiste: sedela.

Isto é daquelas coisas decisivas, fundamentais, que não deveriam ficar sem registo e discussão: a língua pertence aos senhores dos acordos ortográficos, pertence a quem a fala, pertence ao irredutível catálogo dos dicionários?

Aqui regressarei, claro, sobre o assunto. Mas gostaria de o deixar assim, desde já, aberto a comentários de quem se atreva (ou «astreva»?) a perorar. E depois falamos.

[Pelo sim pelo não, deixo no poema - só por causa das três sílabas, que me davam mais jeito... - o termo errado.]

domingo, novembro 12, 2006

A linguagem

A linguagem
sucessivos fios de sediela
apertando a malha

Os sentidos

Os sentidos diversos
da frase que se escreve
da frase que se lê

sábado, novembro 11, 2006

Jardim, 2

O jardim vai impondo a sua ordem feita de um apaziguado caos de ramos, folhas e tempo.








jcb

Ilex aquifolium

As primeiras, tão aguardadas, minúsculas bagas do azevinho.





jcb

Jardim

jcb

quinta-feira, novembro 09, 2006

A praia em Novembro

Nem rostos nem palavras: só o vento
na praia já deserta. E as marés
ainda próximas do equinócio a
erguerem-se na primeira duna. Em
vez do azul, em vez do amarelo dos
toldos, em vez das esplanadas, só a
praia: quase as primeiras águas, quase
os primeiros, inumeráveis nomes
do mundo.

Depois das chuvas

Depois das chuvas, depois do sobressaltado rumor do levante, a noite parece ter-se recolhido, quase doméstica, nos ramos das figueiras jovens. Nenhuma folha, claro, nenhum silêncio acolhe as suas tão breves frases: mas a lua quase cheia, as águas subterrâneas, a sombra do pomar – instituem uma nova ordem: e é então que a luz, a luz da noite, adormece enfim, vagarosa, nos primeiros dias de novembro.

segunda-feira, novembro 06, 2006

Conquistar o mundo

Lembro-me de quando
acertámos conquistar o mundo: haveríamos
de começar, porque não poderíamos
ser surpreendidos pelo avanço da neve
à medida que nós mesmos
fôssemos avançando as tropas,
de norte para sul; e
de poente para nascente,
de modo a que o sol não
nos ficasse de frente
nas batalhas decisivas
dos finais de tarde. Tínhamos

problemas logísticos, claro: carros
de combate com rolamentos
e eixo de varetas, espingardas
de madeira da serração;
e no chão
de caruma dos pinhais bravos
é que procurávamos, de entre as pinhas que
se recusavam a abrir por inteiro,
as granadas defensivas. Mas

o problema verdadeiro,
a derradeira desgraça, é
que as aulas iam começar
e nenhum de nós, voluntariosos
soldados da milícia
destinados a salvar
o mundo, teve autorização
dos pais para faltar
à escola por um semestre, pondo
em risco as orais do exame
da quarta classe.

Ainda a chuva

jcb





domingo, novembro 05, 2006

As perguntas

jcb [Óleo sobre porta de armário]





Há perguntas que permanecem sem resposta. Sem a necessidade de justificação ou desagravo. Ficam assim, ténues, frágeis, sem defesa nem protecção. E erguem as suas bandeiras como se apenas o silêncio pudesse tocá-las por dentro.

Nem a cal

jcb





Nada de que não pudéssemos esconder o rosto. Nada de que não pudéssemos, nas suas imensas vozes, adormecer de frio ou de esquivança. Às vezes é tarde: nem a cal nos ilumina os caminhos por entre as árvores de sombra.

Veio a chuva

jcb





Veio a chuva. E as rãs, que chegam em Março e depois desaparecem quando os ameaços de frio avançam por sobre os planos de água, deixaram por instantes, antecipadamente, o seu refúgio. Não é ainda o tempo. É apenas um nome. É apenas um pretexto para que as folhas das figueiras anunciem, de um modo obscuro, os primeiros meses de Novembro. Sim, é tarde. Mas, mais uma vez, corro à pedra da entrada e olho as águas, por dentro da noite, à procura da sua inúmera, imprevista luminosidade.

sábado, novembro 04, 2006

Ver, 2

Sair da caixa para ver o que está lá dentro.

quinta-feira, novembro 02, 2006

Não necessariamente

Depois do fogo e das cinzas, a água: a água não necessariamente regeneradora.


«Waters»
Imagem: Daniela Sousa.
Órgão: Arménio Mota; Piano e Percussão: Manuel Guimarães.

quarta-feira, novembro 01, 2006

Los barcos de las perlas

Los barcos de las perlas navegan en el nácar
de las aguas reconvertidas en íntimo silencio:
vueltos del revés, vueltos hacia adentro
como si sólo los guiase la geometría y el álgebra.

Los barcos de las perlas no despliegan las velas:
navegan en el nácar cortando en tajadas
la oscura materia de las más viejas aguas
que vuelven desde las mínimas fracciones del éter.

No van marineros en los barcos de las perlas:
sólo tú vas al timón, sólo tú los llevas:
y la noche es una sombra transformada en fuego
del amor que ni siquiera une las más efímeras cosas.


Poema de José Carlos Barros.
Tradução para castelhano: Manuel Moya.