sábado, janeiro 24, 2015

Não davam cabo de tudo

A minha avó explicava no seu jeito
simples: "é que assim ao menos não davam cabo
de tudo ao mesmo tempo". Por isso as raparigas
diziam antigamente ao deitar as flores sobre

os recém-casados (e mais tarde o arroz, escolhido
por ao cozer aumentar tanto a porção inicial
que sobre quase todas as
restantes coisas podia simbolizar

a abastança): "eu deito flores para vos abençoar
[ou arroz, na versão tardia],
e deito e torno a deitar,

e que seja a mulher em casa
sempre a governar". Que eles era mais boa-vai-ela
e lances arrojados: matarem um javali

com zagalotes ou desaparecerem para os brasis
ou as franças a ganharem o sustento
da família e já-gora a verem o mundo. Ou passarem
manhãs e tardes de domingo inteiras

na bêbeda com o pretexto do malhão
ou do jogo do fito. E eram elas sempre
que tratavam da casa.
Aí, em o marido não metendo

excessivamente a colher, sempre era certo
haver uma toalha de linho em cima da mesa
ou na corte um animal que se vendesse

gordo em véspera de dias diferenciados.
E tratavam da horta com aquele modo
prosaico de desejarem apenas

que os frutos ou os legumes crescessem
enquanto eles nas feiras faziam
mirabolantes negócios que se não metessem gajedo
metiam vacas e espingardas ou uma 6.35

de defesa pessoal antes de rumarem
a uma taberna a encharcarem-se
com o pretexto de selarem negócios. Que ao menos lhes
fosse dado a elas tratarem da casa: que assim

ficava garantido esse governo
enquanto os homens faziam apostas de vararem
a tiro as tábuas de madeira ou os sinais de trânsito

ou subiam em padiola a escada
de pedra que levava da adega
aos aposentos de dormir

às quatro da manhã. Eles
mandavam nas mulheres e no mundo
e as mulheres deixavam que eles
mandassem nelas e no mundo

desde que na casa não tomassem conta de nada
para não darem cabo de tudo
ao mesmo tempo. Por isso as amigas
não desejavam mais à noiva

no dia do casamento
do que Deus permitir que em casa
fosse a mulher a governar

enquanto os homens andassem no destino deles
de serem felizes e conquistarem o universo
e foderem tudo.

A girafa

A girafa olha o relvado
com uma sensação filha da puta de que
vai ter que vergar a mola.

quarta-feira, janeiro 21, 2015

Mateus 4:18

Elas vinham contra a mim. Andava
com o arrasto metia-lhes à frente e
as suspindia. Em junho vêm para terra
à desova. O pessoal as pisa
e leva um esticai. Investem contra a gente
maganas. Vão-se ao cimo da água a
invistirem. Apanhava-as com o arrasto
mas não podia tocar no ferro do arrasto
impenas na parte do pau. Mesmo só dos pés
no chão sentia o estremução delas.
Depois chegava à praia e as
descarregava. As punha na areia
pareciam mortas as putas
e ainda a darem-nos choque.
Por aí se vê a admiração de na Galileia
aos que lançavam as redes dizer-se que dizia
Jesus que o seguissem
que fazia deles pescadores
de homens. Pois me admirava eu mó
era se dissesse aos discípulos
que pescassem tremelgas.

segunda-feira, janeiro 12, 2015

sábado, janeiro 10, 2015

Secret Story

É duvidoso que, atendendo aos termos
contratuais, possa revelar o
segredo. O meu advogado diz-me que
tal-e-não sei quê. Arrisco
e digo a verdade: não entrei no Desafio
Final 3 porque tinha pêlos no corpo
e nenhumas tatuagens nos braços. Nem
no pescoço. Nem nas pernas.
Mostrei, em último recurso, erguendo
a meia manga da t-shirt, uma
mancha escura no ombro
de nascença que quase parece
uma tatuagem. Nada. Não era suficiente.
Ainda chamaram lá um assessor a decidir --
mas nada. E assim se vê como
é tão ténue a fronteira entre
o anonimato e a
glória. Continuarei a escrever
poemas que ninguém lê
até me depilar e,
não obstante o exposto no
Levítico 19:28, tatuar-me.

sexta-feira, janeiro 09, 2015

outra vez

UM ROSTO ESTRANGEIRO

não chegavam a olhá-los de frente
olhos nos olhos
com receio de que uma qualquer forma de afecto acabasse por aproximá-los
limitavam-se a dar-lhes água e a inventar uma desculpa
para se fecharem de novo e
ficarem a olhá-los por detrás dos vidros das
janelas das casas enquanto eles vagarosamente se afastavam
era assim que estava escrito
nenhum sentimento nos deve ligar aos que estão de passagem
nenhum sentimento nos deve ligar aos que desconhecemos
por isso não os olhavam de frente e não faziam perguntas
até a esse dia em que alguém decidiu ficar por mais tempo na rua
e olhou de frente um rosto estrangeiro
até ao sobressalto de compreender que
havia alguma coisa nesse rosto que pertencia ao seu próprio rosto
que havia alguma coisa nos seus gestos que
era já parte dos seus próprios gestos
e fumaram juntos e falaram de lugares diferentes do mundo
como se ambos fossem estrangeiros e
assim começassem aos poucos a deixar de sê-lo
ou pelo menos a deixarem de
ser estrangeiros um do outro
como se ambos andassem há muito tempo perdidos
e agora se encontrassem para a possibilidade fabulosa de
caminharem juntos
e se perderem juntos
nos caminhos do mundo

ISTO SÓ EM VILARINHO

Foi há seis anos que dona Marquinhas anunciou o propósito de recuperar a tradição do presépio de Vilarinho que antigamente se montava no Largo da Escola. Fez as contas à reforma e às poupanças e começou por adquirir a imagem do Menino Jesus em tamanho natural. E, passados quatro meses, a Nossa Senhora. E depois, espaçadamente, o São José, o burro, os Reis Magos, o pastor, as ovelhas. Seis anos nisto até que a 12 de Dezembro último, enfim, se começou a montagem. Todos muito rendidos à emoção, quase a epifania, quando se dá um revés. Diz a Lena: «Ó Marquinhas, carai, então os teus Reis Magos, os três, são brancos co-má-gente? Não saberás que um era preto retinto?»

Lá teve, pois, que se encomendar a Braga, com pedido de urgência, um preto. A temer-se, tão em cima da hora, que já nem chegasse a tempo. Quis Deus que chegasse: a 23. E logo nessa tarde, sem demoras, se recomeçaram os trabalhos de colocação das figuras: já o serrim nos caminhos, já o papel azul de lustro nas ribeiras, já o musgo no resto.

Até que a Lena se apercebeu da falta da vaca: «Olha-me um presépio só com o burro.»

Outro revés. Este pior: anunciada a inauguração, o padre Martins convidado à bênção, as rabanadas e as filhoses de jerimum à espera.

Mas foi então que o Tó Maluco, o único declarado no nome de entre os doze que existem na terra, se fez ouvir: «Descansem. Eu é falar com o doutor e resolve-se tudo.»

Diz-se que em todas as terras há um maluco. Em Vilarinho são doze. Quem o afirma é o doutor Augusto, que parece que se inclui nas contas. A Marquinhas também ninguém a tira do rol. Isto, somado ao Tó, é ver-se a quem a coisa começava a ficar entregue.

O certo é que a 24, ao anoitecer, o Artur Vicente estacionou a camioneta no Largo da Escola e viu-se a descarregar e a fazer deslizar sobre o musgo, ajudado pelo doutor Augusto e o Tó Maluco, um vulto de pescoço alto.

E hoje, 25 de Dezembro, não sendo ainda meio-dia, já o povo das aldeias à volta, e mesmo de Chaves, pois tão longe e rapidamente andou a notícia, se acotovela em redor do presépio.

É quando alguém diz: «Isto só os malucos de Vilarinho.»

Inveja. Porque o certo é haver acima de duzentas pessoas a olhar, deslumbradas, o único presépio do mundo com quatro Reis Magos e uma girafa, desaparafusada na noite anterior do carrossel que o Artur Vicente estaciona durante o Inverno no jardim do doutor Augusto, a fazer de vaca.


[Texto publicado originalmente na revista SÁBADO, nº 556, edição de 23 a 29 de Dezembro de 2014]

sábado, janeiro 03, 2015

[O amor]

Se não lhe faltasse
o sentido de orientação
era uma ave
o amor.

sexta-feira, janeiro 02, 2015

dos poemas

Eu dava tudo por escrever alexandrinos.

quinta-feira, janeiro 01, 2015

a literatura é sobretudo o enredo, a mensagem

- E não tens vergonha, pá? Então bateste na tua mãe?
- Não, levava-as eu.

ainda sobre a literatura 2

A minha tia Almerinda mandou-me uma SMS a desejar um foliz ano nobo. Não se pode dizer que a minha tia Almerinda seja particularmente devotada às letras. Mas eu emocionei-me e quase me vieram as lágrimas aos olhos. É que sou dos que acham que o importante é a história, o enredo, a mensagem que se quer transmitir. A linguagem é o menos.

ainda o caso espírito santo

O meu tio António ficou de pé-atrás. E disse-lhe:
- Ó Estriga, mas assim perdes dinheiro. Se compras a cinquenta e vendes a quarenta e sete e quinhentos...
E ele:
- Mas perco pouco.

ainda sobre a literatura

Brilhem mais, brilhem menos, há estrelas que pernanecem o ano todo acima do horizonte. Não é como aquelas totós, cheias de brilhozinho e aparente grandeza, que, vai-se a ver, deixam de ver-se quando menos-se-espera. O Sporting, com estrelas das que brilham pouco, mas que são circumpolares, foi a Guimarães e deu-lhes duas batatas. Isto podia ser uma metáfora. Mas não é: é só porque alguém tem que dizer estas coisas.

é páprenderes

Eu:
- E o tipo isto e aquilo, e ó carai, que já nem o posso ver.
Ele:
- Mas tens assim tanta admiração pelo gajo?
E eu:
- O quê, mó? Mau que não-te-percebo. E à-mor-de-quê é que dizes isso?
E ele:
- É que eu só falo mal de quem admiro.