segunda-feira, fevereiro 27, 2006
A Lenda
Era uma vez
Era uma vez uma princesa
com poucas noções de geografia
que sorriu depois de muitos anos
ao abrir a janela
e ver
finalmente
a neve
A princesa nórdica
A princesa nórdica
nunca chegou a estranhar
que a neve
caísse dos ramos das amendoeiras
sob a forma de cinco pétalas
duma flor
precoce
A princesa
A princesa
perguntou à aia
se era normal
não haver frio
e ter nevado
tanto
A aia explicava
A aia explicava à princesa
o poder da literatura:
que uma metáfora
podia
subverter
a ordem natural das coisas
sábado, fevereiro 25, 2006
Carnaval, 2
Num tempo em que somos sobretudo o que escondemos, com uma máscara voltamos a ser nós mesmos.
quinta-feira, fevereiro 23, 2006
Fronteira
Uma criança afasta-se dos pais numa corrida e fica parada, imóvel, a olhar o Guadiana. É um dia de Inverno, cinzento, frio. As águas, no entanto, parecem ficar estranhamente azuis, erguendo na manhã uma fronteira de memórias leves de Verão a unir as duas margens subitamente próximas. É como se assistíssemos a um milagre. Porque temos a certeza de que o rio, olhado assim, é como se estivesse a ser visto pela primeira vez. Ou seja: que só a partir desse preciso momento é que passou a existir à face do mundo.
segunda-feira, fevereiro 20, 2006
sábado, fevereiro 18, 2006
Ainda outra canção
A noite demora
quando temos pressa
do lado da sombra
só a luz tropeça
Do lado de dentro
de todos os astros
nada mais que o vento
desata os seus laços
Nada mais que o vento
nada mais que a chuva
nada mais que o cerco
de todas as dúvidas
Nada mais que as lágrimas
em a noite sendo
erguendo nas pálpebras
o mês de novembro
Em vez das palavras
em vez das promessas
irrompem as águas
o lume regressa
Mas agora é tarde
já nem temos pressa
quando temos pressa
do lado da sombra
só a luz tropeça
Do lado de dentro
de todos os astros
nada mais que o vento
desata os seus laços
Nada mais que o vento
nada mais que a chuva
nada mais que o cerco
de todas as dúvidas
Nada mais que as lágrimas
em a noite sendo
erguendo nas pálpebras
o mês de novembro
Em vez das palavras
em vez das promessas
irrompem as águas
o lume regressa
Mas agora é tarde
já nem temos pressa
quinta-feira, fevereiro 16, 2006
O mundo lá fora
O Penafiel vai em último lugar no campeonato. Roberto, avançado do Penafiel, não pode com um gato pelo rabo – arrasta-se, ui, penosamente, nos relvados do Euro. A sua veia goleadora expressou-a com clareza recentemente no jogo contra o Benfica: marcou um belíssimo golo – na própria baliza. É este o último caso de doping no futebol português. Parece que mamou salbutamol – uma substância utilizada «lá fora» para, em regra, supõe-se, melhorar os índices físicos dos prevaricadores e afinar-lhes a pontaria. A vida, «por aqui», é isto que se vê.
terça-feira, fevereiro 14, 2006
segunda-feira, fevereiro 13, 2006
A língua e a pátria
Os súbditos de sua majestade
ficam fodidos ao pedir cerveja
no pub inglês de Toulouse
e os empregados só falarem
francês. Dois
minhotos, ao balcão, indiferentes
à escaramuça, discutem
as aquisições do Sporting
de Braga e os destinos da pátria
como se tudo se resumisse
a um lugar na tabela
classificativa.
ficam fodidos ao pedir cerveja
no pub inglês de Toulouse
e os empregados só falarem
francês. Dois
minhotos, ao balcão, indiferentes
à escaramuça, discutem
as aquisições do Sporting
de Braga e os destinos da pátria
como se tudo se resumisse
a um lugar na tabela
classificativa.
sábado, fevereiro 11, 2006
Dessa mesma matéria
A noite começava nos lugares que conhecíamos melhor
para que nos pudéssemos perder
sem arrependimento. Uma estranha
cumplicidade nos ligava e nos afastava do mundo
como se fôssemos feitos dessa mesma matéria volátil
tão próxima da exaltação e dos milagres.
para que nos pudéssemos perder
sem arrependimento. Uma estranha
cumplicidade nos ligava e nos afastava do mundo
como se fôssemos feitos dessa mesma matéria volátil
tão próxima da exaltação e dos milagres.
Um dia
Um dia descobres com surpresa
que há nas coisas muito mais
que a abstracção dos seus nomes.
A própria cidade te parece,
de súbito, reverter
de cada uma das casas e de cada um dos rostos
e de cada uma das ruas.
Um dia descobres com surpresa
que o tronco dos plátanos ou os guindastes
da zona portuária
te podem comover
e levar às lágrimas mais concretas.
que há nas coisas muito mais
que a abstracção dos seus nomes.
A própria cidade te parece,
de súbito, reverter
de cada uma das casas e de cada um dos rostos
e de cada uma das ruas.
Um dia descobres com surpresa
que o tronco dos plátanos ou os guindastes
da zona portuária
te podem comover
e levar às lágrimas mais concretas.
sexta-feira, fevereiro 10, 2006
[4 poemas antigos]
Não acreditou
Não acreditou nunca nas medidas da água,
nos vasos pintados onde excessivamente cresciam
algumas das plantas desse tempo. Mas o exíguo
território da casa lhe bastava, dos degraus
da entrada à pedra da varanda fechada se
movia repetindo gestos, e palavras,
e imagens. A música mudou, os tempos
e as vontades agora disfarçados pela
regeneradora sombra das crianças foram
ocupando espaços mais amplos, paredes mais
altas. Nunca partiu. Sem acreditar
nas medidas de água dos vasos, nas plantas de
interior que por esse tempo excessivamente
cresciam à luz artificial das lâmpadas.
Não ter amigos
Não ter amigos nem água por onde regressar
às manhãs claras da infância. O engodo
do excesso o procurava para o logro
da partilha, para o movimento inútil
duma casa com degraus e corredores. Não
deixar sinais de passagem, nem sob os dedos
na madeira o nome que divide os
dias em anos de sombra. Talvez
a paz difícil (mas é já tanto) do
sono. As mulheres jovens e cansadas
adormecem assim, lendo romances na pedra
junto à falésia da gravura da parede.
Não perguntas
Não perguntas nem respondes. Tinham saído
todos, levavam para sempre os livros
e os discos como quem partilha o espólio dum
naufrágio, garrafas vazias, cartas de
jogar. Um deles olhou ainda por instantes o que
ficava no espelho de sombra da parede. É
tão difícil a renúncia, o logro, o exílio.
Lá fora a noite convidava ao delírio, não custa
inventar motivos que justifiquem a traição.
Nas casas da encosta
Nas casas da encosta findavam pelo fim da tarde
os trabalhos domésticos. O calor poisava
nos armários e nas mesas como se tudo
fosse arder por dentro à visita inesperada
e pendular dum corpo que regressa
para impor no estio a ordem da paixão.
Recordas o rumor no degrau de cima
da escaleira do relógio velho, o esvoaçar
das moscas contra os vidros, um grito
pretérito que descia do cume dos incêndios
a pedir a deus um copo de água
ou uma lâmina nos pulsos. Como tudo
passa e tudo esquece à aproximação da primeira
sombra do freixo na margem do rio, recordas
ainda. Um freixo ou um corpo que retomem
a respiração dos primeiros dias do mundo,
os trabalhos domésticos contra o calor
da tarde, as mãos das mulheres a mexer
indiferentes na água fresca dos púcaros.
Não acreditou nunca nas medidas da água,
nos vasos pintados onde excessivamente cresciam
algumas das plantas desse tempo. Mas o exíguo
território da casa lhe bastava, dos degraus
da entrada à pedra da varanda fechada se
movia repetindo gestos, e palavras,
e imagens. A música mudou, os tempos
e as vontades agora disfarçados pela
regeneradora sombra das crianças foram
ocupando espaços mais amplos, paredes mais
altas. Nunca partiu. Sem acreditar
nas medidas de água dos vasos, nas plantas de
interior que por esse tempo excessivamente
cresciam à luz artificial das lâmpadas.
Não ter amigos
Não ter amigos nem água por onde regressar
às manhãs claras da infância. O engodo
do excesso o procurava para o logro
da partilha, para o movimento inútil
duma casa com degraus e corredores. Não
deixar sinais de passagem, nem sob os dedos
na madeira o nome que divide os
dias em anos de sombra. Talvez
a paz difícil (mas é já tanto) do
sono. As mulheres jovens e cansadas
adormecem assim, lendo romances na pedra
junto à falésia da gravura da parede.
Não perguntas
Não perguntas nem respondes. Tinham saído
todos, levavam para sempre os livros
e os discos como quem partilha o espólio dum
naufrágio, garrafas vazias, cartas de
jogar. Um deles olhou ainda por instantes o que
ficava no espelho de sombra da parede. É
tão difícil a renúncia, o logro, o exílio.
Lá fora a noite convidava ao delírio, não custa
inventar motivos que justifiquem a traição.
Nas casas da encosta
Nas casas da encosta findavam pelo fim da tarde
os trabalhos domésticos. O calor poisava
nos armários e nas mesas como se tudo
fosse arder por dentro à visita inesperada
e pendular dum corpo que regressa
para impor no estio a ordem da paixão.
Recordas o rumor no degrau de cima
da escaleira do relógio velho, o esvoaçar
das moscas contra os vidros, um grito
pretérito que descia do cume dos incêndios
a pedir a deus um copo de água
ou uma lâmina nos pulsos. Como tudo
passa e tudo esquece à aproximação da primeira
sombra do freixo na margem do rio, recordas
ainda. Um freixo ou um corpo que retomem
a respiração dos primeiros dias do mundo,
os trabalhos domésticos contra o calor
da tarde, as mãos das mulheres a mexer
indiferentes na água fresca dos púcaros.
As caricaturas
Vitalino Canas comparou, esta tarde, no Parlamento, os caricaturistas aos fundamentalistas:
«As agressões simbólicas e materiais a Estados e cidadãos europeus merecem certamente a nossa repulsa, nada legitima esses actos hediondos, estão bem uns para os outros, os caricaturistas irresponsáveis e os fundamentalistas violentos, ambos só podem ser alvo da nossa condenação».
[Via A Origem das Espécies.]
«As agressões simbólicas e materiais a Estados e cidadãos europeus merecem certamente a nossa repulsa, nada legitima esses actos hediondos, estão bem uns para os outros, os caricaturistas irresponsáveis e os fundamentalistas violentos, ambos só podem ser alvo da nossa condenação».
[Via A Origem das Espécies.]
terça-feira, fevereiro 07, 2006
Da literatura
As palavras de Fevereiro movem as mesas e as máscaras
mudam de lugar as pedras da escaleira
deixam na madeira do soalho as marcas antigas do abandono
ninguém regressa desses lugares onde um veneno subtil
mistura na água das fontes
o poder quase obsessivo da literatura
mudam de lugar as pedras da escaleira
deixam na madeira do soalho as marcas antigas do abandono
ninguém regressa desses lugares onde um veneno subtil
mistura na água das fontes
o poder quase obsessivo da literatura
domingo, fevereiro 05, 2006
Um corpo adormecido
Tudo se mistura quando o esquecimento
esse ferro em brasa
começa a perfurar as hélices da distância
juntando as folhas e as árvores
a poeira e os blocos imensos das pedreiras de calcário
a água de nascente e as vasilhas de zinco
o riso das crianças e um rumor de roldanas mecânicas
a puxar de dentro dos poços
um corpo adormecido no Inverno
esse ferro em brasa
começa a perfurar as hélices da distância
juntando as folhas e as árvores
a poeira e os blocos imensos das pedreiras de calcário
a água de nascente e as vasilhas de zinco
o riso das crianças e um rumor de roldanas mecânicas
a puxar de dentro dos poços
um corpo adormecido no Inverno
quinta-feira, fevereiro 02, 2006
Quase tudo
O rumor do levante, o vento
nas folhas perenes das alfarrobeiras,
um azul que parece teimar
em erguer-se durante a noite sobre as cumeadas,
a ursa menor,
as luzes, ao longe, das casas dispersas,
é assim a noite, vagarosa, dividida
entre palavras e silêncios,
entre sonhos de glória e a adversidade,
entre a memória do Verão e a matéria volátil,
e esta sensação estranha de que nada nos pertence,
de que tudo é transitório,
de que estas sombras serão outras
quando a manhã inclinar os troncos das amendoeiras
iluminadas ainda pelo vento
contra os sulcos quase concêntricos
da terra lavrada de Fevereiro.
nas folhas perenes das alfarrobeiras,
um azul que parece teimar
em erguer-se durante a noite sobre as cumeadas,
a ursa menor,
as luzes, ao longe, das casas dispersas,
é assim a noite, vagarosa, dividida
entre palavras e silêncios,
entre sonhos de glória e a adversidade,
entre a memória do Verão e a matéria volátil,
e esta sensação estranha de que nada nos pertence,
de que tudo é transitório,
de que estas sombras serão outras
quando a manhã inclinar os troncos das amendoeiras
iluminadas ainda pelo vento
contra os sulcos quase concêntricos
da terra lavrada de Fevereiro.
Entretanto, na Capital, é isto que actualmente preocupa os melhores espíritos do nosso tempo [Actualizado]
[Pena que a verdadeira questão, no meio de tanto ruído e tão emotiva polémica, não tenha nunca chegado a ser colocada: «é legítimo escrevermos sobre os livros dos nossos inimigos?».]
Adenda - Ou, colocando a questão de outro modo: «é legítimo escrevermos sobre os livros de adeptos do nosso clube de futebol?» Ou ainda: «é legítimo escrevermos sobre os livros dos nossos amigos que não nos atendem o telemóvel?»
Adenda - Ou, colocando a questão de outro modo: «é legítimo escrevermos sobre os livros de adeptos do nosso clube de futebol?» Ou ainda: «é legítimo escrevermos sobre os livros dos nossos amigos que não nos atendem o telemóvel?»
quarta-feira, fevereiro 01, 2006
Alguns dos milagres
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