sexta-feira, novembro 30, 2012

[letra para uma canção]

Num tempo antigo tu disseste que o amor
não era mais que a nossa pedra no sapato
óculos escuros desses de tirar e por
o nosso amor fazia-se em sentido lato

Num tempo antigo tu disseste «é o que faltava
o amor que mata é só o amor que sobrevive»
estarmos tão livres era um nó que nos atava
estarmos tão presos era a forma de ser livre

Depois um dia sucedeu-se a outro dia
custava tanto no silêncio respirar
e um labirinto em vez do xis era o que havia
no nosso mapa de tesouros de brincar

Que coisa é essa que persiste e sobressalta
será verdade que sempre sobressaltou
como é possível sentir tanto a sua falta
como é possível um amor se não se amou

Óculos escuros desses de tirar e por
só isso resta do amor neste retrato
e no entanto hoje sabemos que o amor
foi muito mais que a nossa pedra no sapato 

sexta-feira, novembro 09, 2012

[não sonhavam com outro desenho]

remendavam a roupa
consertavam os utensílios do uso corrente
partiam do princípio de
que cada objecto não podia ser
substituído por outro
amavam o que lhes pertencia como se nenhuma
outra coisa pudesse vir a pertencer-lhes

depois
olhavam da varanda o
perímetro dos muros do cadastro
podia ser de manhã
podia ser ao fim da tarde
não sonhavam com outro desenho
com nenhuma regra que previsse
o alargamento
de fronteiras

quinta-feira, novembro 08, 2012

[outra fonte em klee]

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jcb. acrílico sobre papel.
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sexta-feira, novembro 02, 2012

[não conhecíamos os restaurantes bons]

Que saudades tenho desse tempo
em que não conhecíamos os restaurantes bons
não havia telemóveis
encontrávamos sempre os amigos
a horas desencontradas

subíamos uma rua
descíamos do outro lado do passeio
olhávamos as ementas a adivinhar as meias
doses por detrás dos preços
espreitávamos por um vidro
da janela a
sala das refeições

A comida
o serviço
o ambiente
o bom-gosto o
mau-gosto que procurávamos adivinhar
olhando as gravuras das paredes
tudo era sempre um milagre
pelas melhores
ou pelas piores
razões

Não facilitávamos no vinho
lembro-me
pedíamos a carta
fazíamos de conta
que conhecíamos as marcas todas
éramos uma espécie de príncipes
à procura de um trono

É verdade que não tínhamos
dinheiro para
mandar cantar um cego
ou pôr um manco a correr
é verdade que nesse tempo
não temíamos a censura das frases
politicamente incorrectas

Apenas subíamos a rua
descíamos a rua
à procura de um restaurante
que não tinha outro nome
que o de estarmos
juntos

[estas vilas e estas cidades]

Estas vilas e estas cidades que conhecemos só de passagem
estas vilas e estas cidades que as
auto-estradas deixaram fora das rotas da infância
estas vilas e estas cidades com prédios de seis andares e
marquises e persianas de plástico
com bairros de vivendas de desenhador e
pequenos jardins com anjinhos a mijar nas
fontes pré-fabricadas de cimento
com loteamentos cheios de impasses nas periferias
e passeios com ervas e candeeiros que ninguém
ligou ainda à electricidade
estas vilas e estas cidades com os nomes dos
restaurantes desenhados em velhos toldos azuis
com arquitectura moderna e casas em ruína
com alamedas de lódãos
com um coreto nos largos de canteiros ridículos de
relva em forma de biscoito
estas vilas e estas cidades sem alma
estas vilas e estas cidades a quem cometemos a
injustiça de acharmos que não têm alma
porque se calhar somos nós que já não temos alma

são as vilas e as cidades que eu amo
como se desde sempre me pertencessem

[comovo-me sempre]

Vejo os filmes sobre a história de jesus
e comovo-me sempre com o anjo
da caverna da anunciação
comovo-me sempre que vejo
a d. dolores aveiro no camarote de honra
do santiago barnabéu
comovo-me quando vejo a mara
da casa dos segredos a dizer «os portugueses»
ou a alexandra a explicar as razões de
um triângulo equilátero
ter seis lados iguais
comovo-me quando vejo o
director geral dos impostos a
brincar com os filhos numa tarde de domingo
comovo-me sempre que alguém chora
ou alguém ri
como se fosse eu que estivesse
a rir
ou a chorar