terça-feira, dezembro 30, 2008
O engenheiro não me parecia mau tipo e eu começava a lamentar tê-lo conhecido nestas circunstâncias. «Acho que merecemos uma imperial. Que lhe parece?» Já passava da hora de fecho do expediente: anoitecera. Atravessámos a rua, entrámos no Arsénio, sentámo-nos em silêncio. Eu continuava confuso. E foi ele a quebrar o gelo: «Veja isto pelo lado bom: pelo menos o projecto não vai ser reprovado à mor da teimosia do arquitecto Leonardo em manter a empena de cimento.» E acabei por sorrir.
O engenheiro, portanto, gaguejava, abanava os ombros, arrumava e desarrumava os papéis na secretária de mogno. Que nunca lhe ocorrera que a coisa se viesse a precipitar assim de repente. Que havia rumores, claro: mas que já ninguém acreditava na concretização de planos que vinham do tempo da outra senhora. Fosse como fosse: que, enfim, pouco haveria a fazer em face do óbvio interesse público da iniciativa já anunciada pelo Governo. Em resumo: as operações urbanísticas estavam suspensas na zona de influência da albufeira de (ao engenheiro não ocorria assim de repente o nome de código da albufeira) prevista no Programa Nacional das Barragens com Elevado Potencial Eléctrico. Preparavam-se já, de resto, os procedimentos relativos à instauração das respectivas medidas preventivas. «Achei que lhe devia dizer isto em primeira mão.» Agradeci. Ainda confuso. A Casa a Jusante da Ponte de Arame, se bem compreendia, iria ser sacrificada em nome do protocolo de Kioto e do esforço de redução das emissões globais do dióxido de carbono.
A baixa densidade deu os terrenos ao Estado Novo que lhe permitiu, entre outros objectivos edificantes ao serviço do vasto interesse público, «reafirmar [pelo pinheiro bravo e a eliminação dos baldios] a continuidade da alma nacional». É só um exemplo. A baixa densidade sempre se pôs a jeito: tivesse gente, poluísse, produzisse dióxido de carbono, contasse nas estatísticas. Mas não: uma consabida desgraça sem densidade nem peso. Por isso a legislação, sempre muito prevenida, se apraz de costume em defendê-la ou em dar-lhe, para que não fique à margem dos contributos, a possibilidade de concorrer para o interesse público geral e abstracto.
A racionalidade fascina os telejornais menos que os gráficos da predição da catástrofe. E há uma imagem que nos seduz; que o nosso tempo privilegia: a do paraíso perdido e do sentimento de culpa que nos ficará para sempre agarrado à pele. O sentimento de culpa reverte duma ordem moral: regressamos nele, portanto, a uma menoridade de que o exercício da razão supostamente nos libertara há trezentos anos. O prejuízo (e a desonra) de tutelas assim subordinadas foi há muito descrito por Kant. Mas a ordem moral precisa de símbolos: o espectáculo e a catástrofe possibilitam-nos abundantemente: catástrofes naturais, de preferência, em que o homem se constitua como causa e vítima potencial. É por estas e outras que as previsões climáticas de longo prazo ficaram a cargo dos políticos e dos ambientalistas (que o arauto do aquecimento global seja um político, e não um cientista, deveria dar-nos que pensar): os meteorologistas são sisudos e a ponderação de que usam é desconforme à velocidade e à vertigem do nosso tempo.
domingo, dezembro 28, 2008
5.
Temi logo o pior quando o engenheiro da Câmara me telefonou com falinhas mansas. Eu a perguntar «mas então os gajos da Reserva Agrícola Nacional?», e ele que não, que «isso era o menos». Enrolava, exagerava nos advérbios e nos diminutivos, não atava nem desatava. Combinámos uma reunião para essa tarde. Lá fui do Porto numa corrida. O engenheiro não sabia como encetar a conversa. Gaguejava. As faces muito vermelhas, as mãos nos bolsos, encolhido; abanava os ombros, arrumava e desarrumava os papéis na secretária de mogno.
sábado, dezembro 27, 2008
3.
Eu conhecia a devastação dos incêndios. Mas nada podia comparar-se a este cenário depois da desmatação, da desarborização, dos caminhos rasgados a eito pelo meio dos montes e dos vales, descendo às linhas de água, subindo às colinas, das nuvens de poeira levantadas à passagem das máquinas de rastos, dos jipes, dos tractores. Em vão procurei reconhecer os lugares onde passeara por entre um bosque de bétulas, pelo carreiro ladeado de freixos, pela cavada com seus muros derruídos a demarcar o cadastro antigo, pelas ribanceiras de mato rasteiro, pelas margens onde cresciam os fetos e as giestas, pelas clareiras planas dos carvalhais, pela sombra dos pinheiros bravos cobrindo a terra de caruma. As cicatrizes do aterro e da escavação anunciavam o plano onde haveriam de estender-se, de encosta a encosta, contra um paredão imenso de cimento, as águas da albufeira; e delimitavam já, em redor, perdendo-se no curso sinuoso dos talvegues, a linha de nível do regolfo.
2.
Tinha jurado não regressar. Tinha jurado esquecer de vez o sonho da casa na margem do rio. Mas precisava de confrontar-me com a realidade. Por isso regressei nesse fim de manhã de Maio. A Aldeia estava diferente. As obras trouxeram gente e o café transformara-se num restaurante de comida instantânea e pratos económicos. Um terrapleno permitira a instalação de um parque de máquinas no largo da escola, entre a Casa do Morgado e o forno do povo. E um estradão de tout-venant, correndo de nível por entre os campos agrícolas e os montes, largo, deixando taludes instáveis nas bermas cortadas a pique, levava à zona do paredão.
Capítulo XVI
(Onde se procuram reconhecer os limites das cavadas e se reflecte sobre o rifão dos tolos que se enganam com papas e bolos)
1.
«Deixe arder.» Isto dissera Leonardo da primeira vez que me acompanhara à Casa a Jusante da Ponte de Arame quando eu me lamentava da paisagem das encostas devastadas pelo fogo. «Se é duma verdadeira floresta que se trata, os incêndios fazem parte dessa procura constante de equilíbrios; porque a floresta é um organismo vivo que se desenvolve por etapas sucessivas; porque o fogo faz parte desse processo evolutivo natural. Não é o caso, como sabe: estes pinheiros são um arremedo das antigas matas de folhosas; o fogo, neste caso, não representa uma fase nos estádios de sucessão do seu desenvolvimento. Seja como for: o homem parece ter desenhado estas florestas de resina combustível para isso mesmo: para os incêndios como um fim em si mesmo. Deixe arder, portanto, que algo acabará por renascer das cinzas» – dizia Leonardo. E, de facto, pouco tempo depois, os matos pareciam emergir da terra queimada como se apenas esperassem o fogo para afundar as suas raízes e erguer na tarde as flores amarelas e azuis. A verdade é que não passei a olhar os incêndios de um modo diferente. A tristeza de ver a floresta reduzida a cinzas, a galhos retorcidos, a carvão, a troncos queimados, permanecia em mim de cada vez que o fogo deixava nos montes esse rasto de desolação e inquietude; como se o mundo se rendesse assim, e nós com ele, à fuligem e à devastação.
quinta-feira, dezembro 25, 2008
6.
A Aline desta história, confrontada com a possibilidade do regresso, acabou por decidir vender a casa e apagar as memórias antigas. Era uma noite de Inverno. Lá fora, por dentro da noite, os automóveis corriam nas avenidas da cidade a caminho de lugar nenhum. Manuela adormecera no seu colo. E Aline olhava-a sabendo que a vida exige escolhas; e que tudo se decidiria entre o tédio e o sobressalto.
5.
Esta história (este capítulo duma história que não é possível contar) começou pelas contingências da blogosfera: meter um ou outro texto disperso, em prosa, por entre poemas e desenhos. Os textos, no entanto, foram convocando a necessidade da narrativa. Foi pena não ter-se optado por contar a história verdadeira que um dia o narrador se propõe contar. A de uma Aline que não estudou à noite; que não arranjou um emprego de secretariado; que nunca se entendeu com os talheres dos restaurantes e que sempre se sentiu ridícula nos saltos altos dos casamentos e nos vestidos de alças; que nunca se interrogou sobre as diferenças entre o tédio e a melancolia; que sempre se sentiu usada no amor; que, cedo, confundiu o desejo com a ternura e a ternura com o momento em que um homem é capaz de dizer o seu nome a tremer de frio. Esta Aline verdadeira não sentiria nunca o sobressalto do desejo até o desejo reverter da ternura e da protecção do amor. E, no fundo, quase nada as separa. A história de uma é a história de outra. Ambas saíram de casa e ambas sentiram a impossibilidade do regresso. Ambas se perderam em si mesmas. Ambas procuram ainda, sempre, a seu modo, o amor.
4.
Aline dividia-se. Sabia que não era possível regressar à casa da infância (passara o resto da vida a tentar libertar-se da memória desse tempo) e sabia que não era possível fazer de conta que uma história começa quando decidimos que é tempo de começar. A história de uma vida começa sempre muito antes. Uma história, qualquer história, começa sempre muito antes ou muito depois das primeiras frases. Por isso se diz às vezes que não existe senão uma única história no mundo; e que não é possível contar essa história.
3.
Desaprender. Procurar um nome para cada uma das coisas. Esquecer as evidências. Procurar desde o princípio. Desde os alicerces da casa. Procurar desde a raiz e construir as frases de novo. O que liga e separa a ternura e o desejo? Não sabia. Mas Manuela ficava no seu colo, aninhada no seu corpo, como se o desejo começasse num gesto de trazer de longe a memória da chuva, da lareira acesa, do pó levantado nos caminhos de Verão: antes do sexo, antes do lume erguido nos ombros, nas mãos, na pele inteira dum corpo desprotegido no meio da tempestade. Aline tocava a pele adormecida, abandonada às suas mãos vagarosas. Como se a não despertasse o desejo, o amor: mas a memória de um lugar onde o desejo, então, haveria de erguer-se por dentro da noite.
segunda-feira, dezembro 15, 2008
2.
Lembra-se de tocar a pele de Manuela. Era uma noite de Inverno e Manuela adormecera no seu colo. Aline olhava a mulher que tanto continuava a fasciná-la pelos segredos que ocultava (a si mesma?) na suposta transparência do que dizia; como se, despindo-se, ficasse cada vez com mais roupa a tapar-lhe o corpo que desnudava ou procurava despir. Manuela desconhecia o desejo. E Aline não compreendia como era possível alguém não sentir, não ter sentido jamais na sua pele a erupção demorada da água. E foi então que lhe tocou a curva do ombro e olhou esse rosto adormecido: essa estranha sombra num rosto adormecido. Era uma noite de Inverno. E Aline imaginava que o tédio poisara nos pulsos de Manuela a sua teia incombustível.
sábado, dezembro 13, 2008
Capítulo XV
(Onde regressa Aline e se regressa às reflexões sobre o tédio e o mais que se verá)
1.
Aline conhece a diferença entre a melancolia e o tédio. Sabe que do tédio nunca se regressa; que o tédio é o fogo apagado ou a labareda incombustível; a indiferença sem a ostentação que tantas vezes decorre dela. A melancolia, por sua vez, é um fogo ainda por arder; um vagaroso lume a meio de reacender ou apagar-se. E é disso que Aline se sente trespassada: da espada melancólica do tempo.
sexta-feira, dezembro 12, 2008
10.
Sentia-me, de um modo inexplicável, um intruso: a olhar as árvores distantes, o ondulado dos montes reflectido no espelho invertido das águas do rio. O processo de licenciamento já tinha entrado na Câmara. E desci, talvez pela última vez, o carreiro que levava à Casa a Jusante da Ponte de Arame. Era uma tarde de Verão; ouvia o rumor do fio de água a correr nas poldras; e o resto era um silêncio que vinha do fundo do tempo e que parecia afastar-me de cada uma das pedras da casa e de cada uma das folhas da tília do pátio.
9.
Leonardo despediu-se dos técnicos da Câmara com uma daquelas suas frases enigmáticas: «Só gostaria que compreendessem que uma casa é o lugar antes de todas as coisas que haverão de existir; que uma casa é o lugar onde se cruzam as memórias do que haverá de ser.» Saí da reunião antevendo como certa uma proposta técnica de indeferimento à consideração superior. Mas já estava por tudo.
8.
Acordámos em eliminar as intervenções previstas no exterior: o suporte de terras no talude erosionado e a reconstrução de muros além do pequeno troço onde as pedras arrumadas eram ainda visíveis e não se exigiam mais que intervenções de manutenção. Acordámos em eliminar o alpendre; e acordámos, com Leonardo a dizer-me nos olhos a sua objecção, em abdicar, mantendo-se a madeira à vista, da tinta vermelha no portão do pátio. Mas não chegámos a acordo quanto à parede do corpo central. E decidimos que o projecto não abdicaria da empena de cimento.
sábado, dezembro 06, 2008
7.
Leonardo teve que acompanhar-me e defender o projecto que parecia condenado a não passar o primeiro crivo: o da «integração paisagística na envolvente». Aos técnicos do município causava-lhes particular maçada «a empena de cimento à vista», para não falar do portão vermelho do pátio que, «está a ver, não se coaduna». Eu ainda perguntei: «Mas não se coaduna com o quê?» A resposta pareceu-me sábia, defensiva, evasiva: «Bem, desde logo com o espírito do legislador; é ver o RGEU.» Impunha-se um resumo: a casa (eles diziam «a ruína») localizava-se em Reserva Ecológica Nacional e não existiam evidências de que o alpendre fosse uma pré-existência, o que obrigava a uma «consulta interna do ponto de vista jurídico», ponderando-se melhor a letra exacta da mais recente alteração ao diploma – «porque antes, oh, era taxativo: proibição de quaisquer novas áreas impermeabilizadas»; e, por outro lado, prevendo-se a reconstrução de muros no exterior, e sobretudo uma intervenção de suporte de terras no talude erosionado, exigia-se a obtenção de prévio parecer favorável da Comissão Regional da Reserva Agrícola Nacional. Bem. Cada coisa a seu tempo. «Comecemos então pelas questões específicas do projecto.» O chefe de divisão urbanística, numa voz calma, num tom pedagógico, ligeiramente enfadado com a nossa incompreensão das leis, explica: «Está a ver, isto é uma intervenção em meio rural; e lá diz o artigo centésimo vigésimo primeiro do RGEU, na sua actual redacção, que uma nova construção não pode prejudicar a beleza das paisagens; trata-se dum princípio liminar de indeferimento; isto para não invocar a conjugação com as disposições genéricas do PDM sobre as áreas rurais ou com o número dois do artigo vigésimo quarto do sessenta de dois mil e sete no que respeita às condições especiais relativas à estética das edificações. Ora, a ruína [eu, em vão, procurava corrigir: a casa] localiza-se em área de especial relevância paisagística e na proximidade [eu, em vão, procurava corrigir: a mais de cinco quilómetros por um caminho de pé posto] de uma aldeia preservada – para usar, se me permitem, a terminologia legal. Tudo o que seja cimento nas empenas ou pinturas nos vãos em vez de madeira à vista, está a ver, é contrariar o espírito, ou mesmo a letra, do legislador. Veja se me compreende: estas objecções prévias que levantamos é no seu interesse; não vá dar-se o caso de o processo, dando entrada oficial nos serviços com tantas pontas desligadas, levar a um indeferimentozinho que nunca mais, não sei se está a ver.» Leonardo, as faces vermelhas, crispado, movia-se na cadeira da sala de reuniões. Em silêncio, tocando-lhe no braço, olhando-o nos olhos, encareci que se acalmasse. E disse: «pois muito bem: vamos então, ponto por ponto, ver no que concluímos. Se houver alterações a fazer, fazem-se. E não quero ser, acreditem, o responsável pela destruição das paisagens, pelo incumprimento do artigo centésimo vigésimo primeiro do RGEU ou pelo desrespeito ao espírito do legislador.» A coisa corria assim há três meses; esta era já a terceira reunião; eu, confesso, começava a ficar um bocadinho cansado.
quinta-feira, dezembro 04, 2008
6.
Dois dias depois, quando regressávamos, quando chegávamos à linha de festo, parámos e olhámos mais uma vez a curva do rio, a casa encaixada no limite da plataforma que subia a encosta, a tília erguida no pátio, os pinheiros bravos, os salgueiros com o verde ténue das suas folhas, os troncos brancos dos vidoeiros, os musgos dos ramos dos carvalhos, o azul e o amarelo e o vermelho e o castanho e outra vez o verde escuro da serra. E o que víamos era uma construção humana; feita do riso, da tragédia, da tristeza, do sonho. Leonardo olhava o fim de tarde, a luz de Junho a estender as suas sombras nas cumeadas sucessivas, como se a paisagem e os desenhos dos seus blocos de papel cavalinho se misturassem. Eu dividia-me perante a imagem dos milagres. E, de súbito, pela primeira vez, de um modo inexplicável, sentia-me ali um intruso: a olhar as árvores distantes, a olhar o ondulado dos montes reflectido no espelho invertido das águas do rio.
segunda-feira, dezembro 01, 2008
5.
É incrível imaginar que há pouco mais de cem anos não existia aqui um único pinheiro; e que hoje não haveria outra espécie por estes montes e vales se os incêndios não fossem devastando as matas contínuas de resinosas feitas para isso mesmo: para a combustão e o avanço do deserto. Essa foi a maior transformação de todas. O Estado, na sua acção, não visa a felicidade do indivíduo concreto: move-o a ideia abstracta de um interesse «superior». Tão superior e geral e abrangente que, vai-se a ver, acaba por vogar muito acima (e portanto fora) dos interesses específicos das pessoas comuns. O interior sempre foi vítima desta desvelada atenção do Estado. Porque o impulso da acção governativa reverte do princípio de que é preciso acudir ao todo. Ora um Estado centralizador nunca compreendeu que o todo é, ou deveria ser, a soma das partes. E, portanto, em nome do todo abstracto fodeu o todo concreto ao derruir as partes que o constituem. Foi o bem comum que justificou o envio a estas longes terras de topógrafos e engenheiros florestais por finais do século dezanove. As experiências com o pinheiro bravo participavam do desígnio de revitalização económica da Nação «como um todo». O obscuro bem comum, no entanto, como cedo se verificou, começava pela lesão do interesse particular. Ora a densidade populacional sempre foi um conceito a que o Estado não soube nunca ficar imune. Pelas razões óbvias de sobrevivência política, claro. Mas por uma outra decisiva razão: o Estado é uma cortina por detrás da qual há sempre um rosto ou vários rostos e essa necessidade tão humana do reconhecimento e do aplauso. E o interior não dava, nunca deu, notícias, visibilidade, votos, vivas ou sinais de aclamação. Fomos sempre poucos; e esquecidos na exacta proporção desse número. Não contávamos; não contamos. E o bem comum mais vasto que o Estado prossegue não vai agora empancar numa família ou numa comunidade dispersa e sem outra voz que a do silêncio. Por isso a gente da província temia a intervenção do Estado. A ideia era a de que onde metesse a pata ou vinha foda ou canelada. Viu-se com esse exercício experimental de finais do século dezanove a que apenas não se deu seguimento por mor das crises e das trapalhadas políticas que se sucederam até chegar, tantos anos depois, o salvador da Pátria e do interesse público. E o que começou então por fazer-se foi apenas o que os sucessivos distúrbios governativos impediram que mais cedo se fizesse. O Estado (a sua pata) veio de novo às periferias e à baixa densidade. Vários objectivos pretendiam atingir-se com o Plano de Fomento Florestal de mil novecentos e trinta e oito; múltiplos, menos o de salvaguardar os interesses dos que viviam nos lugares onde a floresta haveria de avançar sobre baldios e terrenos comunitários. «Reafirmar a continuidade da alma nacional», «desenvolvimento industrial», «exportação», «reconstruir bosques que os antepassados não separaram nunca da sua aldeia distante quando dela se lembravam em terras de outros continentes» – eis os termos e as considerações preambulares de um Plano em que o Estado garantia o progresso da indústria por via da condenação à fome de quem assistia assim ao avanço do abstracto interesse nacional, do bem comum, a roubar-lhe os pastos concretos e a lenha e os matos e a madeira e o direito a usar o que lhe pertencia. Mas a transformação da paisagem, claro, começou muito antes. E teve sempre a mão do homem. Com a diferença de que, ausente a pata estatal, os equilíbrios se garantiam. Passámos ontem no crasto da Cidadela e você não se teve, olhando os restos das casas circulares e as escadas interiores por onde se acedia às muralhas defensivas, que não dissesse: «até aqui os pinheiros chegaram, os filhos da puta». E olhou o pequeno bosque de carvalhos na vertente cortada quase a pique sobre o ribeiro que desagua no Beça, e as duas ou três linhas de salgueiros e freixos serpenteando na margem, como se essa, multiplicada pelas encostas e pelas cumeadas e pelos terraços das vertentes, fosse a imagem que a sua memória do paraíso lhe devolve. Mas não é assim: nós, há uns cinco milénios, chegámos aqui e cortámos as árvores antigas e queimámos os matos. E se deixámos esses carvalhos e esses vidoeiros foi apenas porque não davam terrenos de pastagem ou o declive não justificava a empreitada. O homem fixava-se ao território e precisava de mel e cereais e lameiros e carqueja e tojo e carvão. O que lhe quero dizer é que a paisagem é uma construção humana. E que esta tília foi plantada por alguém que procurou, contra a inclemência, o prazer de uma sombra no Verão. O que lhe quero dizer é que aquela parede de cimento deveria ser mantida no projecto de reconstrução da casa. Sei que vai contra os seus princípios de manter ou recuperar a memória original do perpianho, das padieiras de pedra, dos tabiques, das empenas sem emparelhamento. Mas há uma história. Há sempre uma história. Que inscrição é aquela na parede de cimento a indicar uma data? O que aconteceu aqui que levou alguém a deixar na parede a inscrição do ano de mil novecentos e sessenta e oito? Seja o que for. É tudo uma construção do homem: a natureza, um bosque, uma casa, uma tília erguida num pátio. Até esta mancha contínua de pinheiros que a pata do Estado trouxe de longe para que hoje possamos sentir, apesar de tudo, o odor da resina a atravessar o rio e a poisar nesta mesa feita com uma tábua das bobines dos cabos eléctricos dos anos cinquenta.