segunda-feira, outubro 26, 2015

[um outro lugar]

Nasci em 1963 e saí de casa dezasseis anos depois. Na minha família quase não existiam lágrimas nem risos. Desconhecíamos o sobressalto. O mundo corria tão devagar que nos era possível surpreender o momento exacto em que as flores brancas das acácias-bastardas, erguidas do outro lado da rua, numa plataforma mais elevada, irrompiam para anunciar o fim do Inverno. Os meus pais quase nunca falavam; e quando falavam, entre eles e connosco, era em voz baixa, num tom que parecia misturar o apaziguamento e a melancolia. O silêncio de dentro era o mesmo silêncio de fora. Vivíamos numa rua larga de terra batida que não levava a lado nenhum, como se a Vila terminasse ali. Enxertada em ângulo recto na estrada nacional, em frente ao edifício do Grémio da Lavoura, a rua subia por entre propriedades agrícolas até a uma curva a partir da qual se bifurcavam dois caminhos: um seguia para a banda do nascente e o outro para noroeste, que era de onde, quase sempre, soprava o vento e chegavam as chuvas. Mas nunca ultrapassávamos esse ponto e nunca nos interrogámos sobre as razões que levavam a isso. Nas nossas brincadeiras de infância, quando passávamos tardes inteiras a brincar aos cobóis, ou ao guarda e ao pilha, era como se houvesse um acordo tácito de demarcação de fronteiras que nos impedia de passar além desse lugar. O mesmo havia de acontecer mais tarde, já adolescentes: não recordo ninguém, de carro ou a pé, de motorizada ou de bicicleta, que, subindo a rua, não tivesse dado meia volta ao chegar à Curva da Mina.
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A biblioteca do meu pai ia crescendo ao ritmo de um ou dois livros por ano. Em 1979, quando saí de casa, constava de cinquenta e sete títulos. Nas duas prateleiras de baixo, por autores, quarenta e nove livros alinhavam-se numa rigorosa ordem alfabética, de Manuel Asturias a Jonathan Wilde. Na prateleira de cima, onde havia apenas oito volumes, dir-se-ia, não se dando o caso de ocuparem sempre a mesma posição ao longo do tempo, que a ordenação era arbitrária. O primeiro, a contar da esquerda para a direita, era o tomo VIII de uma edição em castelhano dos Sermões do Padre Luys Burdalue (en el que se contienen los SERMONES para los Domingos, Lunes, Miercoles, Jueves, y Viernes, desde el Jueves de la Segunda Semana de Quaresma, asta à el Viernes de la Quarta Semana, inclusivamente). Publicado em Amberes, em 1740, a custas de Marcos-Miguel Bousquet, devia ser uma relíquia de família trazida pela minha bisavó, uma espanhola muito católica, que já não cheguei a conhecer, nascida num pueblo dos arredores de Valladolid e que, conta-se, passava o tempo a chorar e a rezar. Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, vinha logo a seguir. Cervantes, nesta prateleira, era o único autor com direito a dois volumes: do Quixote constava uma edição portuguesa, com tradução dos Viscondes de Castilho e de Azevedo e as conhecidas ilustrações de Gustavo Doré gravadas por H. Pisan, e outra, em castelhano, publicada em Buenos Aires no ano de 1943 pela Editoral Sopena Argentina. Seguiam-se-lhe Ficções, de Jorge Luis Borges (na aclamada tradução de Carlos Nejas), Anna Karenina, de Tolstoi, O Vermelho e o Negro, de Stendhal, e Alegria Breve, de Vergílio Ferreira. Foi nesta estante de três prateleiras que aprendi a ler e era nesta estante que estavam todos os livros, cinquenta e sete, que li até fazer dezasseis anos e sair de casa.
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Eu estava sentado numa manta, a jogar ao monopólio com o Ramiro e o Sérgio, quando vi o meu irmão pela última vez. Era uma tarde muito quente de fins de Junho de 1977 e nós estávamos assim, a aproveitar a sombra das acácias-bastardas, quando o meu irmão, de quem raramente se ouvia uma palavra, passou por nós, parou por instantes e, olhando por cima do ombro, disse: "O futuro já existe." Achei, sem nenhuma razão plausível, que era imprescindível fixar os olhos do meu irmão nesse brevíssimo instante em que nos olhou por cima do ombro. Olhei: e vi que os seus olhos estavam vazados. Quando ele se virou e recomeçou a caminhar pela rua acima, eu continuava a ver esses olhos vazados e continuava a ouvir essa frase como se alguém tivesse falado do fundo de um poço. Hoje penso que o meu irmão se havia fechado irreversivelmente às coisas exteriores por impossibilidade de acertar o seu tempo com o tempo dos outros. Porque talvez o meu irmão já estivesse num outro lugar: "O futuro já existe." O certo é que foi a última vez que o vi, ainda que a memória dos seus olhos vazados, tantos anos depois, continue presente como nessa tarde muito quente de Junho de 1977. E neste momento, tantos anos depois, quero acreditar que o meu irmão já não levava consigo memórias nenhumas, e que, de olhos vazados, subindo a rua a caminho da Curva da Mina, o havia tocado a graça do esquecimento. Porque o meu irmão ia a caminho de um outro lugar e a memória do passado é a que deve causar a primeira pena das almas condenadas.
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Não me lembro de se ter falado do desaparecimento do meu irmão. Em casa continuou o mesmo silêncio de sempre: um silêncio espesso, uma vibração imperceptível do ar. O meu pai passava o tempo a ler, embora nunca tirasse um livro das duas prateleiras de baixo: os livros que escolhia, invariavelmente, eram os da prateleira da estante onde não se alinhavam mais do que oito volumes. Às vezes penso que lia o mesmo livro várias vezes seguidas, reiniciando a leitura logo que chegava à última página, ou então que retrocedia e avançava à procura de uma passagem precisa, por não me parecer provável que o processo fosse aleatório. A minha mãe, por outro lado, estava quase sempre sentada ao pé da janela da sala, puxando a cadeira mais para trás ou para diante, mais para a esquerda ou para a direita, conforme as estações do ano e as horas do dia derramavam a luz quase a pique ou a estendiam, oblíqua, leve, difusa, quase a misturar-se à obscuridade da casa. Mas a maior parte das vezes era como se não existisse. Eu entrava na sala à procura da minha mãe, e a minha mãe não estava: sobre a mesinha ao lado da cadeira de verga viam-se apenas dois novelos de lã, um azul, outro cinzento, as agulhas longas e uma espécie de tapete bicolor cada vez mais pequeno, como se o tricot devesse sobretudo ao laborioso, lento, trabalho de destrançar as malhas; eu entrava na cozinha à procura da minha mãe, e a minha mãe não estava: sobre o fogão via-se uma chaleira com água quase a ferver, e eu ficava muito tempo à espera e a minha mãe não chegava, e a água da chaleira continuava assim, quase a ferver, como se fosse possível continuar a ser aquecida sem nunca atingir o ponto de ebulição. Certa vez, num dia radioso de Verão em que a minha mãe estava no fundo da sala, junto à janela, vi com espanto que a luz a atravessava como se ela fosse transparente. Como se, aos poucos, estivesse a ficar invisível. Apeteceu-me gritar. Apeteceu-me chamá-la. Mas era como se o tempo tivesse parado e as coisas acontecessem apenas fora de nós.
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Não posso dizer que tenha lido todos os livros da biblioteca do meu pai. Porque deixei alguns a meio; porque, achando outros mais monótonos ou repetitivos, mas ainda assim fascinantes, saltava algumas páginas ou, mesmo, um ou outro capítulo, depois de lhe passar os olhos de viés. Fosse como fosse, nessa altura eu não podia saber que os livros das duas prateleiras de baixo faziam parte de uma biblioteca impossível. A verdade é que, desde que saí de casa, em 1979, nunca mais encontrei nenhum desses quarenta e nove livros nem vi referência a um único desses onze autores. Tudo começou quando, certa vez, já muito tempo depois de ter saído de casa, me apeteceu reler alguns dos meus livros preferidos: "Tratado Sobre a Impossibilidade das Graças", por exemplo, de Jorge Castilho Azevedo Ferreira, edições A Curva da Estrada; ou "Os Lugares que Mudam de Sítio", de Vergílio Leão Rosa, edições Pretérita. Pesquisei, interroguei, corri tudo e não encontrei uma única referência aos títulos, aos autores, às editoras. E, no entanto, ambos os livros estavam na biblioteca do meu pai: li-os, mais do que uma vez, de uma ponta a outra. Por isso passei alguns anos sem conseguir compreender: não era fácil compreender que o espólio da biblioteca do meu pai não pudesse ter mais do que oito volumes e sete autores, e que, simultaneamente, constasse de cinquenta e sete volumes e dezoito autores.
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No princípio, quando tinha onze anos, doze, as coincidências entre a vida e a literatura pareciam-me normais. Os livros, para mim, limitavam-se a descrever as coisas que já tinham acontecido e as coisas que haviam de acontecer. Como se tudo já estivesse escrito nas páginas dos livros. Por isso não comecei por estranhar quando, no "Discurso Sobre a Razão", de Luís Guimarães Borges (edições Esporão, 1964), os pormenores de um acidente de bicicleta do protagonista pareciam descrever o meu próprio acidente de bicicleta, ocorrido mais de dez anos depois da publicação do volume. Por isso não estranhei quando, imediatamente após o desaparecimento do meu irmão, recordei um trecho de "A Avenida Imensa" em que, no final do sexto capítulo, podia ler-se: "E foi então que ele subiu a rua como se deixasse o mundo atrás de si: os olhos vazados, a passada lenta, a expiar as culpas dos outros. Era uma tarde muito quente de fins de Junho: três rapazes estavam sentados numa manta e olhavam-no sem compreenderem que o futuro e o passado se misturavam nesse momento até à impossibilidade da reconciliação." E quando a minha mãe desapareceu, em 1978, não achei estranho que, algum tempo depois, ao ler "A Aurora Última" (edições Valdarada, 1965), se falasse de uma mulher "de longos cabelos" que deixava o mundo, e as palavras do mundo, numa manhã em que "a neve cobria os telhados das casas e os caminhos que não levavam a lado nenhum".
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Lembro-me do momento exacto em que vi a minha mãe pela última vez. Foi em Dezembro de 1978. A neve caía desde a noite anterior até cobrir de branco as coisas todas: os telhados, as árvores, os caminhos. Eu acordara tarde, era um sábado, e abrira ligeiramente a janela do quarto para sentir o frio a entranhar-se-me vagarosamente no corpo. E foi então que a vi: a minha mãe subia a rua a caminho da Curva da Mina e a imagem dela ia-se diluindo na quase cerração do ar. E não deixava pegadas na neve: era como se já tivesse caminhado nessa rua há muito tempo, como se o tempo tivesse coberto de neve as passadas que dava. Penso ter gritado: "Mãe." Mas talvez apenas tenha permanecido em silêncio, a replicar o silêncio de fora, a replicar o silêncio da casa. Eu olhava e o corpo da minha mãe, mais do que a diluir-se na poalha fina, parecia começar a ficar transparente, invisível. Como se estivesse a desaparecer de si mesma. Não sei. O que sei é que em casa não se falou do assunto. O que sei é que o meu pai continuava a passar os dias a ler, um livro, depois outro, retirando-os da prateleira de cima, onde não havia mais do que oito volumes e sete autores declarados. O que é certo é que, na mesinha ao lado da janela da sala, havia duas agulhas e dois novelos de lã, um azul, outro cinzento, como se o destino, que é o futuro, esperasse que alguém se sentasse na cadeirinha de verga e começasse a tricotar um tapete bicolor.
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Foi uma vizinha que me telefonou, no ano em que estamos, 2014, a dar notícia da morte do meu pai. Tinham passado mais de trinta e quatro anos desde que saíra de casa. Vivo na Bélgica, em Antuérpia, e os negócios quase me impediram de chegar a tempo do funeral. Um avião para o Porto, depois um carro alugado. Entrei na igreja e estranhei, contra a tradição, a meio do elogio fúnebre, ver o caixão fechado: a tampa fechada sobre o corpo do meu pai. A missa já decorria. Não perguntei a ninguém por que razão o rosto do meu pai estava escondido sob uma tábua. Não perguntei, e recordei um texto antigo segundo o qual um féretro era o andor em que, nos triunfos, se levavam os despojos dos vencidos. E não tive coragem de pedir que abrissem o caixão: tinha a certeza de que, abrindo-o, se veria que não havia ninguém lá dentro. Como se o meu pai nunca tivesse existido ou não pudesse existir.
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A vizinha Ermelinda, condoída em lágrimas, lamentando-se de a vida ser assim como é, entregou-me a chave da casa dos meus pais. Regressado do cemitério, ouvidas as condolências todas, entrei na casa de que saíra no afastado ano de 1979. Era como se entrasse num templo. A salinha de baixo, a escadaria em madeira a ranger sob os meus passos, o corredor, a sala, a cadeira, a mesinha onde permaneciam as agulhas e os dois novelos de lã, a cozinha, o meu quarto, o quarto do meu irmão mais velho, o quarto dos meus pais. E a estante dos livros. Havia jurado nunca mais olhar essa estante, essas três prateleiras, as lombadas desses livros. Mas não resisti, aproximei-me, olhei a prateleira de cima, com oito volumes, e as duas prateleiras de baixo. E foi então que descobri, além dos cinquenta e sete títulos, um outro: "O Futuro já Aconteceu", de Henri-Marie Nikolayevich. Puxei da cadeirinha de verga da minha mãe, que continuava ao pé da janela da sala, e abri o livro. Começava assim: "Uma vizinha deu-lhe notícia da morte do pai. Nessa altura, em 2014, trabalhava em Amberes -- a que outros chamam Antuérpia. Quase não chegou a tempo das cerimónias fúnebres. Entrou na igreja já com a missa adiantada e estranhou que o caixão, contra a tradição, estivesse fechado." Parei a leitura. Não queria acreditar. Mas, por outro lado, as peças encaixavam-se: os livros das duas prateleiras de baixo contavam a história da minha família, ou talvez a história do mundo: o que já tinha acontecido; o que, um dia, mais tarde, mais cedo, havia de acontecer.
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Fui à procura de uma mala grande. Enchi a mala imensa, de couro, do meu pai, com os cinquenta e oito livros da biblioteca. Arrastei-a a custo, guardei-a na bagageira do carro alugado. Tinha um voo marcado, no Porto, para as dez da manhã do dia seguinte. Eram duas da tarde. E não resisti: talvez nunca mais tivesse uma oportunidade assim. Fui à loja do chinês, junto ao mercado, e comprei três rolos, quinhentos metros cada, de fio de nylon. E subi a rua da infância, da adolescência, até à Curva da Mina. Não havia ninguém em redor, não se ouvia um ruído. Espetei no chão um prego caibral e, no prego, dei um nó ao fio do primeiro novelo. Havia dois caminhos. Segui pelo que levava ao nascente, deixando, atrás de mim, o fio estendido. Não havia árvores, não havia matos, não havia ervas: a paisagem nua, sem nada, sem o ondulado dos montes, sem o vinco das ribeiras ou dos rios. A própria terra parecia esboroada, peneirada até ao pó de giz, até à limalha mais fina. Até ser tudo branco, tudo liso, tudo irreconhecível. E eu deixava o fio atrás de mim e continuava. Sempre a direito. E depois o novelo terminava e eu espetava no chão um outro prego e continuava a caminhar, sempre a direito, deixando o fio de um outro novelo atrás de mim. E já o fio do terceiro novelo estava a terminar quando cheguei à Curva da Mina: ao ponto de partida. Procurei o prego espetado no chão, mas o prego tinha desaparecido. Talvez o meu irmão se tivesse perdido nesse caminho e regressado ao ponto de partida. Talvez a minha mãe se tivesse perdido nesse caminho e regressado ao ponto de partida. Talvez tivessem regressado. Talvez se tivessem perdido para sempre. O certo é que o caminho não levava a lado nenhum.
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Olhei então o caminho que seguia na direcção do noroeste. Apeteceu-me avançar, deixar-me perder nele ou encontrar-me, descobrir finalmente aonde levava, compreender os segredos que guardava. Decidi-me. Hesitei. Desisti. Porque, levasse aonde levasse, terminasse ou não no ponto de partida, tivesse ou não um princípio e um fim, pareceu-me então evidente que esse era o caminho que levava a mundo do esquecimento e das ausências.
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Nessa noite, no Porto, no hotel, preparei-me para passar a noite inteira a ler o último volume da biblioteca do meu pai: "O Futuro já Aconteceu", de Henri-Marie Nikolayevich. Peguei na mala e achei-a estranhamente leve. Abri-a. E descobri com espanto que estava quase vazia. Lá dentro, em vez dos cinquenta e oito livros que tinha arrumado, havia apenas oito: os oito volumes da prateleira de cima da biblioteca do meu pai.