quarta-feira, setembro 28, 2005

Esses rostos

Foram lugares de refúgio. Quase todos, lembrados, esses rostos se acolhem ainda no mês de novembro ao que ficou da dádiva, da hospitalidade que vive próxima do sangue e de um passado feito disso mesmo, de fugas tão incertas. Poucos velhos ficaram que os não levasse o esquecimento. Eles que estendiam lenços ou cigarros à passagem de rostos sem pátria, tão estrangeiros, esses rostos, até no modo de esconder a sede em terra de tanta água.

terça-feira, setembro 27, 2005

Antes de perder o caminho de casa

Antes de perder o caminho, para sempre, de casa, o caminho do largo, a luz dos degraus em pedra, o muro do pátio, o cântaro, mais uma vez levanto e rodo a cabeça sobre os ombros, o último cigarro nos dedos, um lenço, o bordado epigrama antecipado ao labirinto do futuro, a linha vermelha que parece atravessar a direito o espaço de sombra que leva hoje ao mais difícil coração.

Muito antes

Já nos conhecíamos muito antes desse fim
de tarde em que nos encontrámos
pela primeira vez num restaurante a caminho do Príncipe Real
ao pé da casa onde acabaríamos
a noite a falar do Al Berto e do vale da Campeã e
do Santa Cruz e do Inverno
e das margens dos rios vindos de Espanha

sendo certo que era já tarde e em boa verdade os poemas autógrafos
do António Maria Lisboa e o quadro do Cesariny (os poemas na parede o
quadro guardado atrás do guarda-vestidos)
anunciavam já

as despedidas

inverosímeis sim mas
tão certas
tão definitivas como nunca mais nos podermos encontrar em casa do René
ou na Manta Rota
ou a discutir os desenhos da primeira edição do Herbário do
Jorge de
Sousa Braga e eu

agora lembrar-me de tudo isso
porque tu dizias então até logo

e era já tarde

domingo, setembro 25, 2005

Da série: «Ficções»

J.C.Barros: «o fantasma de Giorgio de Chirico regressa a Santa Croce, 1979». Técnica mista sobre tela, 2002.


sábado, setembro 24, 2005

A poesia

Chamava vento da jugoslávia a essa cor
vinda do mar da infância para as
suas mãos tranquilas. Fora do mundo
trabalhava em silêncio com o brilho das estrelas

e a memória de viagens impossíveis.
A poesia habita assim estas salas
iluminadas por janelas altas e estreitas,
o laranja do lume na boca dos fornos, o sopro leve,

os dedos em redor do vidro frágil e quente.
A eternidade cabe muitas vezes nestes gestos
simples, no cuidado com que as peças giram no ar
e se aproximam do fogo no instante certo,

no modo como a água as arrefece ou a tarde cai
abandonada à transparência do cristal. Cada
um dos objectos acabados tem um nome e nasceu
dum sonho de que não é possível regressar.

quinta-feira, setembro 22, 2005

De umas coisas a outras

O que és e o que pensas ser. O que dizes e o que pensas ter dito. O que fazes e o que pensas ter feito. O modo como vês o mundo e o que, facto, o mundo é. O que vês numa árvore e o que os outros vêem na mesma árvore. Quem, senão Deus, mede as distâncias que vão de umas coisas a outras?

Outro poema antigo

O silêncio quase doméstico da
manhã roubou o lume ao caule
onde as abelhas poisam a
insónia, repet indo a fértil
elu viação do ar à roda dos teus
passos: é a memória, talvez, que po
voa novamente o sonho de
pequenas ironias e se esquec
eu na sua impaciência de perguntar
lá fora o endereço do amor.

quarta-feira, setembro 21, 2005

De antologia, 1

De heróis e vilões

«Lá por volta de 1982, 83, eu trabalhava parte da semana em São Paulo, parte no Rio de Janeiro. No Rio, por trabalhar no Flamengo, costumava ir jantar no Lamas, restaurante tradicional, mais de um século de existência, ponto de encontro de artistas, políticos, celebridades em geral.Vai daí, numa noite em que saboreava um filé-já-não-me-lembro-como, notei, em mesa próxima, um casal de meia idade, com a filha adolescente, a trocar cochichos e alternar espiadelas em minha direção.Achei aquilo curioso mas não dei maior importância à coisa.Neste ponto, preciso explicar: naquela época, estava para ser julgado um caso famoso. Um conhecido cantor brega (Lindomar Castilho) assassinara a ex-mulher, também cantora (Eliane de Grammont). As feministas elegeram Eliane, e sua morte, como símbolo de sua luta. A história toda era realmente chocante: ela já estava separada do cantor. Fazia apresentações em uma casa noturna em São Paulo. Um dia, Lindomar entrou no bar, durante a apresentação de Eliane e atirou nela, inconformado com a separação.Por que lembrar tudo isso? Simples. Eu era, nessa época, bastante parecido com Lindomar. Já havia sido confundido com ele por vários motoristas de táxis.Voltemos ao Lamas. Depois de ser olhado várias vezes pelo casal da mesa próxima e por sua filha adolescente, me dei conta do que acontecia: estava sendo confundido – mais uma vez – com Lindomar Castilho. Paciência. Não sendo apedrejado, tudo bem.Para minha total estupefação, quando o trio terminou a refeição e preparava-se para abandonar o restaurante, o homem, ao invés de dirigir-se para a saída, veio na direção contrária, em minha direção. Chegou junto à minha mesa. Não disse uma palavra, não emitiu nenhum som. Simplesmente curvou-se, respeitosamente, numa tosca atitude de reverência. Depois virou as costas lentamente e foi embora, com a família.»

[in Meu Bazar de Ideias. Copiado daqui]

terça-feira, setembro 20, 2005

As palavras do silêncio

As palavras do silêncio permanecem
no lume evaporado das presas,
no material aluvionar
dos depósitos de vertente,

nos terraços das encostas declivosas
quando o inverno mistura
nas argilas vagarosas dos talvegues
a primeira e última nuvem de novembro.

As palavras do silêncio permanecem
nas estalactites de gelo dos pátios
enquanto as crianças cortam os troncos das bétulas

à entrada do inverno
e uma sombra de granizo
repete nas cumeadas

o voo pretérito dos milhafres.
As palavras do silêncio ficam guardadas
na primitiva onda do levante,
na linha de preia mar

das águas vivas equinociais,
nas gavetas fechadas das cómodas
a apodrecer nas casas em ruína.
E então compreendes que as palavras do silêncio

são feitas de pó e do escombro das obras,
de distância e esquecimento,
do labirinto de devastação

das sebes de negrilho,
do desamparo, da quietação,
do entulho de sucessivos abandonos.


[Em resposta a um repto do JPN]

sexta-feira, setembro 16, 2005

Os subsídios

jcb

O nosso tempo: metáfora

jcb

quinta-feira, setembro 15, 2005

Limpezas

Um muito leve aguaceiro deixou nos vidros e nas superfícies lisas a sujidade da terra, a sujidade da poeira em suspensão. Como se a primeira coisa que se pedisse à chuva (que teima em não chegar) é que começasse por limpar o ar que respiramos.

quarta-feira, setembro 14, 2005

Nos tempos que correm

Nisso acredito ainda. Sempre. Nas terras de aluvião, nas sementes, nos frutos, nas folhas das árvores. Não é coisa pouca nos tempos que correm.

O erro

Insistimos no erro. Não tememos o erro. Isso nos vai aproximando da verdade, da justiça.

terça-feira, setembro 13, 2005

Em viagem, 4

jcb



eu é ao contrário
preciso de crer
para ver

domingo, setembro 11, 2005

Em viagem, 3

jcb



















Alguém acrescenta, a meio da conversa,
que «esse foi o Inverno mais chuvoso de que há memória».
E que no ano anterior quase não tinha chovido
e que «não havia memória de um Inverno tão seco».

Já se vê por que caminhos anda hoje a memória.

As casas parecem não pertencer a um tempo antigo
e parecem não fazer sentido nestes primeiros
anos do século vinte e um. O musgo cresceu
desmesuradamente nas pedras dos muros.

Um jornalista chega ao largo do meio da aldeia
acompanhado por um técnico superior
da câmara municipal. Ainda nesse dia hão levá-lo
a ver o forno comunitário, um moinho de rodízio,
um convento derruído, o polidesportivo,
os freixos do fundo do vale, os aceiros da caça furtiva,
os pinheiros, os vidoeiros erguidos quase
na linha de separação das águas:
pelo fim da tarde, exausto, bebe
Ricard com seven-up na mesa de plástico
duma adega típica recuperada à corte dos recos.

E há qualquer coisa de provisório em tudo isto.
Como se o mundo pudesse não resistir a um fósforo
ou à velocidade no asfalto, a um mail
enviado do outro lado do Atlântico,
a um alvará de loteamento, à etnografia,
às socas com tachas amarelas da menina do rancho,
aos documentos técnicos discutidos em Assembleia
a propósito das prioridades do PIDDAC.

sexta-feira, setembro 09, 2005

O Número de Ouro

jcb

















O Número de Ouro, os ramos da figueira e a flor do damasco são provas suficientes da existência de Deus.

Manhã

jcb

















Era muito cedo de manhã. Permitiu a aproximação vagarosa. Deixou-se ficar para a fotografia durante algum tempo. Parado, talvez assustado, talvez indeciso. Finalmente levantou-se num voo ondulante a caminho de uma das tamargueiras da sebe do fundo do jardim. Agosto quase no fim: a princípio estranhei ver um juvenil com Agosto quase no fim. Mas parece-me um verdelhão (Carduelis chloris) - e nesta espécie não são anormais três posturas num único ano. Seja como for: agora recordo sobretudo esse seu olhar entre assustado e desejoso de ficar ali, assim, parado, a deixar-se fotografar. Antes de desaparecer no seu voo trapalhão, juvenil, ainda indeciso.

Correcção (ver caixa de comentários): Afinal não é um verdelhão (ou verdilhão...), mas uma felosa (Phylloscopus trochillus). É o que dá termos leitores assim...

quinta-feira, setembro 08, 2005

Nenhuma nuvem

jcb
















As crianças regressam da praia como se a alegria e o Verão se misturassem até uma coisa não existir sem a outra. Nenhuma delas vê a nuvem que desde o princípio da manhã permanece, quase parada, sobre as cumeadas da serra.

segunda-feira, setembro 05, 2005

O teu nome

Quero apenas os teus ombros.
Não quero mais nada.
Quero apenas a linha ténue que separa o mar e o céu
quando o levante regressa com o seu
sobressaltado rumor.
Quero apenas o teu nome nas manhãs de Novembro
e o voo das aves de Limfjorden
a caminho do esteiro da Lezíria.
Quero apenas a incerteza dos teus passos
na varanda.
Quero apenas os teus ombros.
Não quero mais nada.

sábado, setembro 03, 2005

New Orleans

Este post é abaixo de cão.

sexta-feira, setembro 02, 2005

Nenhuma outra promessa

Nenhuma outra promessa: dávamos
as mãos
e olhávamos
a nuvem de palavras
que descia das encostas
da urze.

Quase nem respirávamos
com medo que a levíssima nuvem
desabasse
com o voo das aves
a caminho dos açudes.

quinta-feira, setembro 01, 2005

Antes da casa

O fascínio das serras metálicas
a cortar a madeira
deixando no chão
montinhos
de serrim.
E o ruído constante dos motores.
E as pranchas arrumadas a sentirem-se, percorrendo-as
com a ponta dos dedos, os nós
como cicatrizes da idade.
E as esquadrias.
Chegávamos

à serração em calções e víamos à distância
a casa
que haveria
de pertencer-nos
erguida devagar:
a varanda, o soalho, o escano da lareira,
a trave mestra
da sala de estar.
E o Inverno nunca

seria mais que a memória desse rumor incessante
das serras
a cortar a madeira.

A alfarroba

jcb

















































































Colhida e ensacada, a alfarroba deixa ainda na tarde o seu odor exuberante.

As ameaças

Iluminávamos a noite
com os faróis acesos no asfalto.
O perigo protegia-nos do mundo.
Mesmo quando saímos da estrada
numa curva
a cento e vinte
a olhar as constelações que vinham desenhadas
nos livros do décimo primeiro ano
ou cortámos os pulsos

com a navalha de cabo de marfim

a discutir a largura das linhas brancas
no vidro da cómoda.

Depois temíamos
a manhã
como se as pessoas a caminho do emprego
pudessem reverter em ignomínia
a ordem
que sobre todas as coisas
nos ameaçava.