quarta-feira, dezembro 29, 2010
[consoada]
Somos tão poucos que nem sabemos
se a esta mesa em que estamos todos
não faltam todos os que já perdemos.
Somos tão poucos que nem contamos
olhando o lume da lareira acesa
quantos é que estamos, quantos faltamos
quando estamos todos sentados à mesa.
Somos tão poucos que já nem importa
se somos muitos, se somos poucos:
quando o silêncio nos bater à porta
já estamos todos e somos tão poucos.
quinta-feira, dezembro 23, 2010
quarta-feira, dezembro 22, 2010
terça-feira, dezembro 21, 2010
segunda-feira, dezembro 20, 2010
sábado, dezembro 18, 2010
quarta-feira, dezembro 15, 2010
segunda-feira, dezembro 13, 2010
sexta-feira, dezembro 10, 2010
[a neve nas Alturas]
senão no modo como a olhamos. A água benta
é apenas um bom exemplo:
o Homem é o único animal que a distingue
da água da torneira. Assim
a neve nas suas múltiplas representações:
a neve prosaica
que significa desconforto
e se mistura com a lama e desliza, entre espessa
e deslaçada, nas ruas e nos pátios;
a neve muito branca elevada à categoria simbólica
da purificação; a neve e o seu carácter
lúdico, jogo e divertimento,
riso e corrida nas descidas das veredas lisas.
A neve caiu mais uma vez (e deu-lhe forte)
sobre as aldeias e as vilas, das cumeadas
às encostas da urze, das colinas aos vales da aluvião,
dos largos aos terraços, dos telhados das casas
aos adros das igrejas. E novamente
o múltiplo olhar do mundo
a desenhou em cartas de rumo inúmeras, derivações,
diferenças: da exaltação à palavra avisada
do velho das Alturas do Barroso
que não se teve que não dissesse à algarvia jovem
que saltava na neve e deslizava como se estivesse por dentro
da nuvem dos sonhos dos livros: «pois se gosta
tanto dela
leve-a toda que não nos faz falta nenhuma.»
terça-feira, novembro 30, 2010
[num tempo virado ao contrário]
os alvos fáceis e em si mesmo
guardava a lança
das cinco pontas envenenadas
dos desastres
como se existisse uma ética
num tempo virado ao contrário
em ser derrotado
no alto das colinas
defensivas.
segunda-feira, novembro 29, 2010
domingo, novembro 28, 2010
terça-feira, novembro 23, 2010
[Olhar por cima do ombro]
ou um outro feito de ferros enferrujados dos andaimes das obras das periferias como se mais nada valesse a pena depois das palavras que nem chegámos a dizer. Isso é tão pouco/
e é quase tudo: podermos olhar por cima do ombro e a memória devolver um dia de treva ou um dia da mais iluminada sombra. E ambos terem deixado no corpo as mesmas marcas imperecíveis.
segunda-feira, novembro 22, 2010
terça-feira, novembro 16, 2010
[as paisagens de Georges]
sábado, novembro 13, 2010
[degraus, patamar & queda]
«degraus, patamar & queda». 50x50 cm, técnica mista sobre tela. Set 2010.
[os pagadores de promessas]
«os pagadores de promessas». 70x50 cm, acrílico sobre tela. Nov 2010.
domingo, novembro 07, 2010
[a tríade e o agente secreto]
«a tríade e o agente secreto». Marcador sobre toalha de papel. Nov 2010.
sábado, novembro 06, 2010
[Kirchner em 1910]
«Kirchner em 1910: Franzie e Marcella», 80x60 cm. Acrílico sobre madeira de guarda-vestidos. Nov 2010.
[os limites da literatura]
com a desilusão imensa de quem
suspeita ter perdido um rumo
ou o reconhecimento dos que nos lêem
que nenhum dos meus poemas sobre a crise e o orçamento
e muito menos os líricos publicados na revista criatura
deve ter influenciado assim de
modo particularmente decisivo
os relatórios
das agências de rating
sexta-feira, novembro 05, 2010
segunda-feira, outubro 18, 2010
[a luz reflectida]
no meio do deserto
apareciam casas
como se
houvesse casas
no meio do deserto.
sexta-feira, outubro 15, 2010
[regressar às mesmas coisas de sempre]
como se não existissem outras
como se pela exaustão nos fosse dado o obscuro
poder de queimar as palavras nos incêndios das florestas
e apenas um ou outro nome sobreviesse
um ou outro utensílio feito de matéria incombustível
para cozinhar os alimentos
ou recolher a água dos tanques.
sábado, outubro 09, 2010
[Um poema traduzido por Sun Iou Miou]
¿de qué otro modo escribir informes
en un país de poetas?
cuando digo piedra todos comprenden nube
cuando digo nube todos comprenden piedra.
me rindo en fin a la subjectividad:
escribo nube porque quiero decir piedra
sabiendo que todos leen piedra
cuando escribo nube.
Tradução de Sun Iou Miou.
quarta-feira, outubro 06, 2010
[tão pequena forja]
de aquecer os metais
para dobrá-los.
num canto da garagem
entre parafusos a
que os óxidos retiraram as estrias
entre baldes de plástico
e restos de fasquias das obras
entre um amontoado de objectos sem uso
eu ficava a olhar o fogo
azul
às vezes cor de laranja
à espera da revelação dos astros.
domingo, outubro 03, 2010
[objectos antigos]
da mão a estes objectos antigos
-- vê-se no modo como queremos proteger
o que já não usamos.
vê-se a distância a que ficou
de nós o que deixou de pertencer-nos
-- utensílios que a má-consciência de perdê-los
nos faz agora defendê-los por decreto.
sexta-feira, outubro 01, 2010
quinta-feira, setembro 30, 2010
[a claridade é obscura]
a objectividade é obscura.
exige-se a mediação da abstracção reveladora
para que as imagens verdadeiras nos sejam devolvidas
além e para lá do que os nossos olhos vêem.
terça-feira, setembro 28, 2010
[peço encarecidamente a intervenção do fmi]
não me parece que esteja em condições de garantir
os meus compromissos financeiros
no jantar de aniversário
de sábado
da ana ruiz
no ruizinho
mesmo que o caderno de encargos
me impeça no domingo de ir ao futebol
ou comprar o último
livro do zé luís peixoto
na bertrand.
[a natureza dos milagres]
tinha o problema dos muitos interesses
por isso nenhuma das coisas o
levava nunca a elevados graus de motivação.
desinteressava-se das coisas em que se metia
por lhe interessarem todas as outras
em que não estava.
gostava tanto de tudo
que ao longo dos anos
foi desistindo de tudo.
eu
pelo contrário
tive apenas a única obsessão dos petroleiros.
desde a infância que coleccionava
estampas de navios de longo curso
e fotografias das chaminés de combustão.
não posso lamentar-me.
o meu trabalho e a minha vida
têm sido sempre
os petroleiros
o convés e a casa das máquinas
a vigia e o leme
o mediterrâneo e o atlântico
o porto de sines e a costa da nigéria
e a liberdade imensa de um horizonte sem palavras
nem a intromissão das legendas.
no mês passado
consegui que o meu maior amigo
me acompanhasse numa das viagens
ao golfo pérsico.
claro que se desinteressou ao segundo dia
(eu já imaginava)
a falar dos seus novos interesses
e da nostalgia das sucessivas desistências
e adormeceu todas as noites
quase morto de tédio
e já muito arrependido de ter embarcado
no meu tão imperecível petroleiro
em cuja sala de convívio
neste preciso momento
escrevo um poema sobre os sonhos da infância
e a natureza dos milagres.
sexta-feira, setembro 24, 2010
[as casas da várzea]
e tenho vergonha de contá-la por ser verdadeira
tão verdadeira como eu estar aqui
e saber que as pessoas em regra
não acreditam em histórias verdadeiras.
as pessoas em regra acreditam
na prosa das mentiras.
eu era então uma criança.
e é claro que quase todos nós tão rapidamente
começamos a aprender a deixar de ser
aquilo que somos
para passarmos a ser
aquilo que julgamos que os outros
a um espelho poliédrico
julgam que somos.
não admira por isso mesmo
que não acreditemos nas histórias das crianças
e não admira que quase sempre seja necessário
colocarmos máscaras no rosto
para regressarmos à identidade
que ao longo do tempo perdemos.
e está portanto explicada a razão
de ter uma história verdadeira para contar
e temer que ninguém acredite
na minha história verdadeira.
pois é dar-se o caso de eu em criança
apanhar a camioneta da carreira
no largo do toural das boticas
a caminho de chaves.
mas os milagres precisam de tempo
e deslocamento do fulcro onde se sustenta
o quotidiano concreto das coisas.
e talvez por isso mesmo
só na viagem de regresso
esse já entretanto pressentido mistério
começasse em rigor os trabalhos
fabulosos da revelação.
na garagem da auto viação do tâmega
onde funcionavam também os escritórios subindo-se
uma escaleira sem guarda
havia um cheiro permanente a gasóleo
e uma bruma que vinha dos filmes a preto e branco
e um ruído de fundo de motores
que só muitos anos mais tarde viria a saber
que revertia da insânia do levante.
e logo começavam os milagres
em saindo a camioneta da carreira dos largos portões
da garagem do canto do rio
com esse rumor contínuo
a acompanhar-nos a viagem toda
e a ficar nos ouvidos durante a noite
até se desvanecer enfim às primeiras horas da manhã
e ser apenas já um murmúrio ou a sua reminiscência
o que vibrava ainda nos vidros
das janelas do quarto.
mas saindo da cidade
e abrindo as curvas muito fechadas até
à tipografia gutenberg
que nesse tempo ficava do outro lado da estrada
num pequeno anfiteatro virado às águas do tâmega
eu via que os homens
de súbito
voavam.
os homens que voavam
pareciam vir do lado das casas da várzea.
voavam numa lentidão inverosímil
os braços muito abertos e as pernas a quarenta e cinco graus
como naves alienígenas
suspensas da rarefacção dos fins de tarde
dos meses de junho.
o meu pai nunca compreendia
a razão de eu querer ficar no banco corrido de trás
o mais desconfortável
e sujeito à oscilação de enjoo das molas oscilatórias
da camioneta da carreira:
mas só assim podia ainda quedar-me
de olhos colados ao imenso vidro traseiro
a ver os homens da várzea
a desaparecer na distância
voando sobre a veiga de chaves
tocando com as mãos na copa dos salgueiros
e dos amieiros
incendiados pela reverberação
das seis e meia.
eu próprio cheguei a duvidar
das imagens antigas da infância
e dessa memória que ao longo dos anos
repercutiu nos meus sonhos.
a verdade é que no passado dia vinte e três de agosto
numa segunda feira do ano de dois mil e dez
ao fim da tarde
quase quarenta anos depois do
episódio a que faço ingloriamente referência
por saber que ninguém no mundo em que vivemos
acredita em histórias verdadeiras
ia eu de carro a caminho de chaves
e vi claramente visto
com estes dois que só a terra haverá de comer
um homem e uma mulher
suspensos à luz rasa do crepúsculo
voando sobre os campos da veiga.
vinham ambos do lado das casas da várzea
e a mulher tinha um vestido de um amarelo tão intenso
que eu estou que o resto da minha vida
não será bastante
por longa que seja
para ofuscar na memória
o halo dessa tão intensa e concreta
revelação dos milagres.
[originalmente publicado aqui: http://chaves.blogs.sapo.pt/]
quinta-feira, setembro 23, 2010
[regresso da Guerra de Tróia]
e não sei que fazer
da merda deste Cavalo
que não me cabe em lado
nenhum.
[a flor da volúpia]
(que mal a vemos hoje
que parece mal)
atravessou uma boa parte da literatura do século xix.
tem exactamente sete pétalas
e ninguém a reconhece como sua.
era preciso
(como custa repeti-lo)
um obscuro poeta das periferias
vir assim recuperá-la no nosso tempo
para que não ficasse escondida e incógnita
nos herbários dos museus
da Rua da Escola Politécnica.
é caso para perguntar
o que anda a fazer a crítica literária
deste meu
tão
pobre país
tão
culto.
[venho para te salvar]
trago um velho helicóptero em segunda mão
e
(porque será preciso içar-te do rasteiro chão)
uma corda de esparto
da minha terra.
não te preocupes.
nunca deixei ninguém
em território inimigo
(independentemente da precariedade dos meios aéreos)
sempre que levei comigo
a corda de esparto
da minha terra.
quarta-feira, setembro 22, 2010
[«não espero nada do mundo»]
dizia o meu amigo poeta decadentista
muito displicente
muito dado à cerveja e à exaltação do comezinho
desde que leu a antologia
(que lhe emprestaram e não devolveu)
do Manuel de Freitas.
e alguém que perdesse tempo a explicar-lhe
que bem fodido estava o mundo
se esperasse mais dele
do que ele esperava do mundo.
[oiçam como eu suspiro]
ai.
a minha poesia
em finais da primeira década do século xxi
haja embora opiniões contraditórias
é de um lirismo comovente.
[no país dos narcóticos]
lembro-me de pedir um copo de água
e ficarmos todos ganzados.
[rendo-me à subjectividade]
de que outro modo escrever relatórios
num país de poetas?
quando digo pedra todos compreendem nuvem
quando digo nuvem todos compreendem pedra.
rendo-me enfim à subjectividade:
escrevo nuvem porque quero dizer pedra
sabendo que todos lêem pedra
quando escrevo nuvem.
segunda-feira, junho 28, 2010
PAUSA
quarta-feira, junho 23, 2010
[o que é dos livros]
para a montra de vidro
do café. Vês a rapariga de jeans
a atravessar a passadeira
do outro lado do vidro
e procuras adivinhar
uma vida por detrás
dum rosto: uma infância, um rio,
o amor, uma dança
a meio da noite. Ela pára
no passeio, suspeitas
que te olha nos olhos, imaginas
que se decide a entrar
e a sentar-se a teu lado.
Estás sentado de frente
para a montra de vidro
e deixas o romance
a meio do capítulo IX.
Ergues o olhar e olhas a rua: lá fora
uma rapariga de jeans
atravessa a passadeira
do outro lado do vidro
e por um instante
não compreendes o que é
do mundo, o que é dos livros.
sexta-feira, junho 18, 2010
[algumas cidades muito bem explicadas ao luís por mor dos títulos dos poemas]
As cidades não têm nada por si mesmo
as cidades são sobretudo
o que lá deixamos.
PARIS E AS IMEDIAÇÕES DA ÓPERA
Que mal empregadas
esplanadas
quando não estás.
LEMVIG E A ÁGUA
Como explicar
que este poderia ter sido
para sempre o meu lugar.
ROMA E AS RUÍNAS DO IMPÉRIO
Assim de repente
quase me pareceu o teu nome em latim
gravado na pedra.
LISBOA E A QUESTÃO SOCIAL
A greve da Transtejo
de uma a outra breve margem
separa-nos para sempre.
MIRANDELA E UMA TARDE DE SÁBADO
Sem este espelho de água
o que seria hoje
de nós.
COPENHAGA E A PRIMAVERA
Oferecer uma rosa
à jovem de olhos de nuvem
que vendia flores.
ANTIGUA GUATEMALA E OS DESASTRES
Assim lá estivesses
o vulcão
era o menos.
MAPUTO NA ZONA ALTA
A embaixada
e o tédio da secretária da embaixada
de ter numa tarde
tão quente
perdido uma partida
de golfe.
LATINA E O AMOR
E quem nessa tarde Maria Manuel
me haveria de recordar o famoso edifício
com o M de Mussolini?
FLORENÇA E AS MÁQUINAS FOTOGRÁFICAS
Em vez da polícia
fumar um cigarro na varanda
do Palazzo Vecchio
e ser
apanhado
pelos japoneses.
CHAVES E O TEMPO
Percorro hoje os corredores do Liceu
como o único lugar do mundo
onde nunca estive.
[e quase não haver]
para acolher a luz demorada a meio da tarde
nas folhas das amendoeiras jovens.
quinta-feira, junho 10, 2010
[Testamento de M. L.]
todos os meus bens
estas páginas de rascunho
dos incêndios
das florestas.
[O capitalismo e a infância]
a luz deixou de poisar nas folhas dos freixos dos quintais
um espesso lençol de sombra cobriu as paredes
e os telhados das casas
foi quando construíram as
avassaladoras chaminés da fábrica de rebuçados
chaminés imensas
erguendo-se sobre o horizonte como
catedrais góticas
ou torres de palácio de fábula
é assim quando
o capitalismo e a infância se misturam
eu é que nunca mais na minha vida
pude ver as guloseimas.
[A memória do Verão]
nas mesas de resina das esplanadas
nesse espaço de circulação
entre o jogo das damas e os copos de cerveja
o Verão é ainda a haste mais insustentável
das páginas dos livros.
Como numa história de romance
as ervas azuis dos venenos
misturavam-se
ao aroma antigo das araucárias
da praça
bebíamos
como se pudéssemos ficar para sempre
com a memória do Verão
agarrada
à inevitabilidade
de não podermos
deixar de ser jovens.
terça-feira, junho 08, 2010
quarta-feira, junho 02, 2010
[Às vezes o poema]
apenas ser uma vereda de silvas
uma cicatriz indelével de palavras.
[Não escrever]
não escrever a palavra azul
rasurar até não ficar uma sílaba.
domingo, maio 30, 2010
[Dois Poemas de Ivana Pavlek]
Espera meu amor
estou na cozinha
tenho um horário fodido
a crise é uma coisa abstracta muito
bonita que ameaça o meu emprego no restaurante
não me olhes como se fôssemos a um
espectáculo de dança clássica quando
acabar os bifes
não tenho pachorra eu
quero é sair da grelha
e chegar a casa
e adormecer
a sonhar com os astros.
dois.
Eu sei que me amas
eu sei que sou a tua admirável princesa
eu sei que desejas sobre todas as coisas
acariciar a minha pele
como se pudesses tocar uma constelação de
luzes imensas
mas deixa-me respirar meu amor
deixa-me ser a anónima empregada do restaurante
por breves instantes
além dos teus ombros e das tuas mãos
desampara-me a loja
vai ver se chove meu amor
quando chegar a casa depois do turno da noite
e só me apetecer
dormir.
quinta-feira, maio 27, 2010
[Pequenas coisas]
Pequenas coisas
a nuvem
a água das nascentes
a cal nas paredes exteriores
o vento nos ramos das árvores
quase nenhuma palavra
o exercício de mover as contas do ábaco
na transmissão dos usos.
segunda-feira, maio 24, 2010
[Jardins Reais, 3]
eixo de simetria
resiste ao exercício
quase secreto
das raízes e dos ramos
dos cedros do Líbano
a estenderem-se
sobre os labirintos
e os caminhos
de saibro.
Nos projectos dos jardins
(no sonho de os erguer
como espaço
contrário
à natureza envolvente)
é o Tempo
o mais imperativo e decisivo
elemento.
domingo, maio 23, 2010
[Depois do Verão]
caminhavam nas dunas a sentir a passagem do tempo
nas nuvens de cinza
no modo
como as areias são arrastadas pelo vento
desenhando um ondulado
roubado
às vagas sucessivas
do levante.
Deixavam as bicicletas
como se pudessem não as encontrar de novo
como se fosse possível ficar para sempre
no labirinto dos meses depois do Verão
até perder-se a chave de casa
e a memória do que
nem chegámos a ser.
sábado, maio 22, 2010
[Escolhia as folhas]
loureiro imunes ao relâmpago
a vagarosa elipse da semente do ácer
as represadas águas dos açudes
a mobilidade apenas do olhar
como se lhe fosse dado o fabuloso
e intangível e pacificado
poder das inércias.
terça-feira, maio 18, 2010
[Quase não se ouvia]
esse vento
dos primeiros meses
a desatar os nós dos fios
a desarrumar as
pedras das amuradas
tanto é às vezes o
que separa a lentidão e o erro
a glória e o talento.
segunda-feira, maio 17, 2010
[O que procuramos]
é a incerteza ou a obscuridade
o rosto que está por detrás do rosto
a palavra além da palavra
o segredo das mesas
de jogo quando vamos
no escuro.
Foi num dia de Novembro igual
a quase todos os dias de Novembro
partimos por estradas secundárias
sabemos hoje que algumas
das vitórias
são a melhor evidência
dos naufrágios.
domingo, maio 16, 2010
[Quero também regressar]
mas deixar
de lado a imagem
da luz poisada
nos pátios.
Anoitecia cedo
era já depois do Verão
tu acendias o lume
como se alguém pudesse aparecer
e trazer
de longe
o livro
das perguntas.
[Estávamos desprotegidos]
tínhamos quase tudo
um território imenso separava-nos
dos afectos
nenhum mapa nos guiava pelos caminhos de asfalto
riscados a meio da noite
nas curvas de nível
das florestas.
Uma coisa apenas nos faltava
lembro-me:
a consciência de que
tínhamos quase tudo.
quarta-feira, maio 12, 2010
[5: Outra versão]
para MF
É na simetria
e na tijoleira dos pátios
ou na iluminada cal
que começa a poesia:
entre o azul e a pedra
da água; entre
a migração eluvial
e a nascente.
O resto é coisa
de geração nova
que confunde o verso
com a prosa.
terça-feira, maio 11, 2010
[2: Outra versão]
é a desordem natural das coisas
o que mais leva ao poema.
Ou a usura e a arbitrariedade
da pedra disparada
contra o remanso
dos açudes dos livros.
segunda-feira, maio 10, 2010
[Obviamente tudo isto]
for a desordem natural das coisas. À simetria
ou à claridade extrema de um céu azul
só deveria ser dado entrar nos versos por
oposição à injustiça de poderes
devassados. De qualquer modo: em
vez de loa aos remansos
antes o poema ao serviço
da usura: onde possamos
abrir a cicatriz da intranquilidade
ou adormecermos vencidos de já nos
bastar a deserção.
Obviamente tudo isto se
o poema obedecesse a uma regra de estilo.
[Tudo é um novelo]
que o povoamento
começa? Na água ou na aluvião
ou nos relevos
que levam a uma
e não outra realidade
territorial?
Nos bosques densos de caducifólias
laboriosos animais enterram
no húmus as folhas pretéritas
da mesma
transformada
terra vegetal.
Que correspondência existe
entre os muros
das propriedades
e as paredes das casas
e esta antiquíssima
matéria inflamável?
Uma criança
corre a caminho dos largos
e ergue a sua voz
como um clamor
a invocar os astros
na manhã de cinza.
Tudo é um novelo indecifrável
de relações que ligam tudo
a coisa nenhuma?
quinta-feira, maio 06, 2010
[O Verão quente]
à melancólica exultação das pausas, à capacidade
de evocação de coisas e lugares. Foi no ano em
que as águas desceram até às curvas de nível
da raiz do junco e os retornados ergueram nos
pátios o desenho das periferias urbanas,
as fasquias e os caixotes de contraplacado,
os panos de tenda, as tábuas encostadas
às paredes de cimento dos anexos. Em cima dos
palcos, nas varandas, nos muros dos tanques,
os acrobatas ágeis moviam archotes e
iluminavam as plateias com o fascínio das frases.
Os altifalantes do largo, a música das fitas de
plástico e a cerveja a correr nos balcões metálicos
dos bares, os discursos na escola primária,
os cartazes afixados na porta dos armazéns
ou distribuídos à mão em dias de mercado. E só
depois o Verão. E eles rendidos ao lume
avassalador dos archotes, ao fascínio das frases.
quarta-feira, maio 05, 2010
[Como se lhe fosse permitido tanto]
tudo: um nome os bens uma reputação
uma biografia e estar isento
da compaixão.
[Os teus amigos enviam mensagens a gabar os versos]
movimento quase perfeito da economia
a construir a sua tão densa e apertada teia não chove
há quase uma semana isto não deve
estar ainda devidamente estudado a meteorologia
às vezes parece uma ciência vacilante à procura
de objecto. Despedimentos: a arte valoriza-se nos mercados
quando os guindastes ficam parados como catedrais
suspensas da evolução das margens de lucro os
teus amigos enviam mensagens a gabar os versos
a dizer que curiosamente estão a aprender
a gostar de poesia lá vêm de novo as nuvens
desenhadas no mapa das previsões logo
vi. O melhor é desarmá-los não vá o consenso
e a falta de obscuridade metê-los a todos e mal que ficavam
no retrato de mãos dadas com a lírica.
terça-feira, maio 04, 2010
domingo, maio 02, 2010
[Chamo-me Luísa]
sexta-feira, abril 30, 2010
[Fronteira]
quarta-feira, abril 28, 2010
[Um livro]
[Originalmente publicado em http://umpoucomaisdesul.blogspot.com]
terça-feira, abril 27, 2010
[As páginas dos romances]
voando com uma venda nos olhos
dos andaimes para o monte de areia da póvoa.
As obras da escola eram a nossa perdição:
as fasquias de alumínio, o ondulado de luzalite
das coberturas, o entulho, o ressalto
exacto do encaixe das tijoleiras, o pó quase de talco
dos sacos de cimento da cimpor. Nos sábados
à tarde erguíamos muros no combarro com tijolo
de quinze, marcávamos com estacas de pinho
o perímetro exterior do pavilhão, ligávamos a betoneira
a olhar em sobressalto os movimentos oscilatórios
do balde. Penso que era assim. Às vezes
pergunto o que fica dos livros, o que pertence
e não pertence à literatura, o que acrescentaram
à nossa vida as páginas dos romances.
segunda-feira, abril 26, 2010
[Um diário antigo: das notas de A. S., 1]
domingo, abril 25, 2010
[As barragens, 2]
que a ignorância
e também (ou sobretudo) os interesses
é que farão subir
a esta cota as águas do rio
e não o curso das nascentes
ou a nuvem
ou o modo como
nos talvegues se desenham (e inscrevem)
as vertentes das encostas.
sábado, abril 24, 2010
sexta-feira, abril 23, 2010
[Fragmento]
quinta-feira, abril 22, 2010
«Tão raro»
que os pássaros não cantam
só de olhos fechados voam.
poema de leitor; enviado por mail.
Dos leitores
quarta-feira, abril 21, 2010
[O paraíso perdido]
chamam paraíso»)
é construído contra o quotidiano
e o deserto. Com
a certeza de que nunca perdemos
o que um dia
tanto nos pertenceu.
[Uma fotografia antiga do Rio Tâmega e do Bairro da Madalena]
O barco está errado: o fotógrafo
(anónimo?) o terá pressentido no exacto momento
do disparo. A vela, esse belíssimo triângulo
isósceles, deveria inscrever-se no estrito
espaço escuro entre as duas casas
e separar-se dos elementos verticais do fundo
de que acaba por parecer
fazer parte: ligeiramente mais à direita.
E o seu reflexo na água, assim,
cortaria a mancha de sombra
como uma afectuosa cicatriz ténue.
ii.
Há um momento de angústia: esse em que o fotógrafo
acredita ter-se encontrado ele mesmo
com o momento único e irrepetível.
O autor deste retrato o pressentiu
por um instante: mas disparou tarde: quando
já o barco avançara. Bem certo é
que chegamos quase sempre tarde
às coisas perfeitas que nos esperam.
iii.
O jovem está errado: há uma identidade
que se perde, uma individualidade
que se esbate: a sombra vertical
de uma das árvores, reflectida no rio, não deveria
tocar a sua cabeça e misturar-se nela.
iv.
O barco e o observador são apenas um
e mesmo elemento da composição: o barco
não existe sem o jovem que o surpreende
num lento movimento à superfície
das águas; e o olhar do jovem não existe
sem a imagem de espelho devolvida
aos seus olhos pela vela muito branca, leve,
esguia, quase imaterial.
v.
O círculo e o quadrado de luz, à direita,
sob o último arco da ponte, estão
errados: rasuram o fulgor da estreita linha
iluminada do tronco da árvore em primeiro plano:
como se a não deixassem erguer-se inteira
para o céu do fim de tarde;
como se lhe impedissem a delimitação
da pressentida fronteira; como se o fogo irrompesse
por dentro da fotografia
onde mais não deveria existir
que um lume vagaroso.
vi.
Tudo o mais está certo: a ponte
que parece continuar para onde já não está
à força de aterros sucessivos
e alicerces; o volume dos edifícios num dinâmico
equilíbrio de vãos e coberturas, empenas
cegas, trapézios; e o rio,
claro, que vem de Espanha
e resiste aos erros de um retrato em que,
como quase sempre, não foi possível unir o tempo
e os fios todos
das múltiplas variáveis em jogo.
(Poema originalmente publicado aqui: http://chaves.blogs.sapo.pt)
segunda-feira, abril 19, 2010
[Os jardins]
no exílio o ouviu lamentar-se
dos desastres: a rasura das fronteiras
ou a distância
a que ficaram os frisos de cedro,
os azulejos dos palácios, a água
rumorosa dos tanques,
a tão concreta e abstracta
geometria
dos mosaicos dos pátios.
Num último momento
falou apenas dos jardins: do perfume
das laranjeiras em Abril.
[O que trazemos das cidades]
É o que trazemos
(tanto) das cidades: o empedrado
largo da pequena praça,
um rosto, a rua dos bares
onde o lixo é recolhido de manhã,
o milagre de uma promessa ou um nome
anotados em guardanapos de papel
nas mesas das esplanadas.
2.
A senhora
da agência de viagens, já
em desespero, insistia
no arquipélago das Quirimbas,
nas pirâmides
e um jantar
no Cairo à luz das velas, numa pescaria
no Bósforo, num programa
de seis noites no deserto
com os tuaregues. Mas
eu queria apenas fumar de novo
um cigarro na varanda do Palazzo Vecchio
depois de quatro longas horas
de comunicações
sobre a requalificação
das periferias urbanas. E
isso não tinha.
3.
Na avenida,
sob as araucárias, chovia
e não havia um táxi.
sexta-feira, abril 16, 2010
[uma nuvem de cinza]
1.
encostas os teus olhos de fogo
à matéria
combustível
e uma nuvem
de cinza
cobre a europa
2.
é uma evidência desconcertante:
os teus olhos
fecharem os aeroportos
quinta-feira, abril 15, 2010
[a glória e o reconhecimento]
isso mo diz o Amigo de modo singular
lembrando-me que a glória e o reconhecimento são vacas muito esquivas
que não posso dar-me ao luxo de escrever sobre o João Moutinho
um poeta como eu que até começava a ser considerado
em lisboa. e eu que sim
contrito a lamentar-me enquanto lia as
seis páginas dele com as apreciações ao resumo da assírio
de perder assim as noites a ver jogos de bola e
a beber cerveja
e a invectivar arbitragens provavelmente sem que
a razão inteira esteja do meu lado
a citar a despropósito o dias da cunha e
as conversas sobre o sistema
a não escrever uma linha que se diga benza-te deus
e possa acrescentar um módico de mérito
ao que um dia escrevi.
quarta-feira, abril 14, 2010
terça-feira, abril 13, 2010
[5 poemas do derby]
Não há ninguém
que dê ao Moutinho
um alfinete de dama
de modo a não estar a
braçadeira de capitão sempre
a descair-lhe
distraindo-se assim o moço de
ter que puxá-la
procurando pô-la
sistematicamente
no sítio?
2: A chuva
(Nota: poema escrito entre os 47 e os 65 minutos de jogo ou de como se vê o quanto é certo o popular ditado algarvio que diz não limpes o cu antes de cagar.)
Dei uma volta
pela Venda Nova um pouco
antes do jogo a ver (assim o suspeitava)
as ruas já desertas como
se houvesse uma revolução e
os militares decretassem
o recolher obrigatório. Também
eu (não tardou) haveria
de sentar-me em frente à TV
e aqui estou depois do intervalo
a rir-me de mim
e de todos mas
sobretudo dos que pagaram
bilhete e foram ao estádio da Luz
com bandeirinhas vermelhas
a apanhar chuva e
a acenar ao boneco.
3: Nós é mais pelos vistos o meio da tabela
O Benfica a
jogar assim estaria ao intervalo
a levar dois zero
do Desportivo
de Chaves. Mas calhou-lhe
em sorte
o meu Sporting
a evoluir no relvado
um cibo
(como hei-de dizer isto?)
fracote.
4: Isto dos apitos
Ai
que ladrão!
5: Enfim
É claro
se formos a ver
eu sei
isto é
sobretudo
dor
de cotovelo.
[não é não temer]
Não é não temer
a morte (dizia)
mas a incompreensão
de que possa ser de outro modo
o sentirmo-nos vivos
que não seja
a morte não fazer sentido.
Vocação que me não foi
dada: defender-me dessa
abstracção que a poder tocar-me
não haveria de tocar
senão o que
em mim já não era
e não poderia nunca ter sido.
segunda-feira, abril 12, 2010
Poesia Ilimitada
OS NOSSOS GOVERNOS
Numa coisa os nossos governos têm sido escrupulosamente
cristãos: mantêm a agricultura pobre para cumprir a profecia de
Cristo que diz: pobres sempre os tereis convosco.
domingo, abril 11, 2010
[10 de Abril em Moreanes]
intercalares em Mértola
para a Junta de Freguesia: uma carrinha
com altifalantes e doze
militantes de prospectos
lutavam (quase me pareceu
em vão) na manhã de sábado
contra a indiferença das casas
e dos largos. A caminho de Moreanes
era ainda o som da propaganda
que teimava em erguer-se
abrindo-se o vidro do carro
a deixar entrar o odor misturado
dos matos. Mas depois esperava-nos
na casa de pasto do Pires
a exposição anual
de pintura: o Rico Sequeira
a relembrar a importância decisiva
de Weimar para a história
da civilização, o Eurico
a falar da estranha ética
de Tóquio, a perdiz
da Graça Morais pendurada
numa parede de cal, o António
Inverno a trazer o seu sorriso
de criança às mesas
da esplanada. O certo é
que a lampreia e o cozido de grão e
os vinhos do Alentejo
ocuparam quase sempre o
lugar que estaria reservado
às artes e à reflexão
sobre as imperfeições do mundo.