segunda-feira, junho 29, 2009

[Uma possibilidade de começo]

Foi essa a sua primeira e inocente obsessão: a medição do tempo. Procurar uma ordem entre os eventos e o seu carácter aleatório; procurar estabelecer relações entre o voo das aves e a sombra estendida na tijoleira dos pátios; compreender o que separa o movimento e a imobilidade; entrar nos segredos da idade, da passagem das horas, da oscilação dos pêndulos abstractos. No entendimento de que o mundo só existe se o medirmos e se apreendermos o mistério da matéria volátil que faz mover as coisas.

domingo, junho 28, 2009

[O Castelo de Santo Estêvão]

O grupo de teatro universitário ia pois levar à cena
no centro cultural de Évora a sua primeira peça
que posso já adiantar que não chegou
à estreia. Pela razão simples de que ao encenador

 não lhe escapou a pronúncia cerrada do moço
vindo do Barroso e do liceu de Chaves
a estudar arquitectura paisagista no Alentejo
fazia eu de Afonso III. Luís Varela insistia comigo

para que acariciasse Beatriz entre a ternura do velho
bárbaro a fazer festinhas na criança que a princesa ainda
era e a luxúria intervalada de quem sente

já nos seus braços uma mulher que começava
na realidade a sê-lo. Ora eu na parte da luxúria
continha-me ali em público nos ensaios

 um cibo. E o Luís então gritava em desespero que
nem parecia ter eu nascido no sítio onde
no século XIII a coisa verdadeiramente se passara
por não serem de hábito assim tão encolhidos

os conterrâneos meus que se soubesse em
se tratando de mandar a uma moça deslumbrante
a ceitoira. E eis como foi necessário o orgulho
ferido e a subsequente lição para ficar a saber

que o Bolonhês em segundas núpcias e em primeiras
a filha do rei Afonso X se casaram nem mais
nem menos que em Santo Estêvão. E assim

se compreenderá também que durante tantos anos
visitasse sempre que podia e hoje
ainda a aldeia que de entre todas do concelho de Chaves
 
me pertencia e me pertence mais. E quando
regresso é como se regressasse a 1253 e visse
Beatriz de Castilla y Guzman a entrar na capela de
mão dada com este d. Afonso III que quase representei

 no Garcia de Resende não fora por mor dos copos uns
e outros pelo honesto estudo terem deixado 
uns e outros a mais de meio mas antes da estreia a peça
do Ernesto Leal. Aí fui portanto tantas vezes e vou agora

e sempre a imaginar nas nove ameias do alçado
e na planta rectangular do que resta do castelo
a Beatriz que em Évora demorei a acariciar com luxúria

enquanto o encenador não me puxou pelos brios e eu
não soube que Beatriz e d. Afonso III se casaram afinal
no castelo que é também meu de Santo Estêvão.

publicado originalmente aqui.

terça-feira, junho 23, 2009

[Os dias estão a ficar mais pequenos]

CHAMO-ME JOÃO, tenho vinte e três anos e garanto que os dias estão a ficar mais pequenos. É certo que deixei os estudos muito cedo para trabalhar nos bares e no que fosse aparecendo. É certo: sinto muitas vezes que me falta um pouco da ciência dos livros. Mas sei como funcionam as coisas do mundo e do universo vasto onde se perde o que de nós mesmos sabemos. Orgulho-me, aliás, de conhecer o que tantos desconhecem sobre os astros e os asteróides, sobre a passagem do tempo, sobre a Próxima de Centauro, sobre Andrómeda ou as galáxias espirais. Reconheço: aprendi com a Teresa a olhar o céu no silêncio da sua casa, nos bancos corridos do jardim de pequenos arbustos aromáticos, na açoteia onde montou um telescópio, e a ficar assim rendido ao silêncio das estrelas, dos cometas, dos outros dois iluminados planetas do nosso sistema solar: aprendi com ela, reconheço, a experimentar em mim a lancinante percepção da pequenez do que somos. Mas não é isso o que vem ao caso. O que vem ao caso é a evidência de que os dias, dia após dia, e quando deveria ocorrer exactamente o contrário, estão a ficar mais pequenos. Recordo-me: despedimo-nos com lágrimas no dia vinte e dois de Março. E recordo-me por não esquecer a frase que a Teresa me deixou como memória desse desencontro: «Separamo-nos, João, no momento em que a elíptica cruza o equador celeste». Era o equinócio: quando as águas do mar se erguem num rumor subterrâneo, afastado, vindo de longe e de lugar nenhum. Quando as aves, de súbito, deixam os ramos das árvores e cruzam o céu em largas e vagarosas elipses. Quando o dia e a noite têm a mesma exacta duração. Isso recordo-me. E sei que a partir dessa data, até que o solstício de finais de Junho inverta os movimentos do mundo, os dias continuam a crescer progressivamente em duração e intensidade de luz. Não se compreende, pois, que aconteça exactamente o contrário. Que cada vez anoiteça mais cedo, que cada vez a manhã demore mais um pouco a levantar-se da terra: hoje é dia doze de Junho, são quatro da tarde e é quase noite. E é assim, como se a sombra e a passagem do tempo tivessem uma origem comum, que a memória de Teresa regressa. É quase noite. Confuso, indeciso, rendido à evidência das sombras, caminho ao acaso na rua deserta. E uma tristeza sem nome parece caminhar a meu lado, tocar-me nas mãos, entrar comigo pela noite dentro numa noite que deveria ainda ser dia, claridade, luz e exaltação.

CHAMO-ME TERESA, tenho vinte e três anos e garanto que os dias estão a ficar mais pequenos. É estranho: hoje é dia doze de Junho, são quatro e meia da tarde (isto é um modo de dizer) e é já de noite. Demorei a acreditar que não era em mim apenas que sentia crescer a sombra e a sentir que a sombra me tocava mais tempo. Vivo sozinha. A minha casa fica quase na cumeada, erguida sobre a vertente aplanada do ribeiro do Álamo. Vejo dali, olhando na direcção da terra ou na direcção do céu, quase tudo o que me interessa no mundo: o meu pequeno mundo e simultaneamente vasto, inominável, sem fim nem princípio. O Guadiana: as suas águas, em Maio, a reflectir um outro azul ou a correr na vazante, lamacentas, depois da chuva, sob uma nuvem espessa que vem de Espanha e parece ficar poisada nas areias da península de Cacela Velha. O mar da baía recolhido ao silêncio do Inverno. O pátio. Os muros de xisto. As hortas minúsculas, as últimas. Uma eira em ruínas, uma nora, uma cisterna. A amendoeira grande. As paredes de cal. A açoteia com tijoleira de Santa Catarina. Canes venatici e cor caroli, a sua estrela alfa. Bootes e arcturus. Cassiopeia. A ursa maior, a ursa menor, dubhe e polaris. Draco, lynx, coma berenices. Mas hoje sei que o mundo não faz sentido sem as suas mãos a tocar as minhas mãos. Hoje sei que a sombra vai crescendo, dia após dia, noite após noite, à medida que vai ficando mais ténue, ou mais viva, a memória das suas mãos nas minhas mãos. Atravesso o jardim e fico por algum tempo sentada na pedra do muro do pátio a olhar a noite. Uma noite escassamente iluminada pela lua que começa a erguer-se no horizonte. Uma noite estranhamente fria, estranhamente feita de um silêncio que parece nascer das profundezas da terra. E é então que vejo um automóvel a aproximar-se. Dois faróis acesos a iluminar o estradão e os troncos das alfarrobeiras do pomar. Um automóvel a cortar o silêncio ancestral da noite em fatias descontínuas. E fico assim, por instantes, interdita, a imaginar que talvez amanhã a luz se erga mais cedo, que talvez amanheça mais cedo e que tudo regresse à ordem natural das coisas.

[Dos Anos de Glória]

1.
O baterista queixava-se:
nas alturas 
decisivas tinha 

quase 
sempre as mãos
ocupadas.

2.
A Diva até
a olhar-nos de
frente 

até olhos nos olhos
a víamos
de lado.

3.
Em digressão perdíamo-nos 
era muito nas
rotundas.

4.
O vocalista dizia
oh a Diva
e ficava 

mudo
quase quinze
dias.

5.
O nosso maior
sucesso não 
chegou 

a ser gravado
por falta
de vinil.

6.
Quando ele
e a Diva
desapareceram

a grande questão era
como arranjar um novo
baterista.

quinta-feira, junho 18, 2009

[Lamento do autor antigo]

para a Tatiana F., com amizade

A métrica é um chão que já deu uvas.
A rima é o outro chão. E agora é in
diferente o decassílabo ter vinte
ou doze ou quatro sílabas. Oh musas

de versos tão antigos: vá de retro!
Eu quero é ser moderno em estilo livre
e ter a liberdade que não tive
ao respeitar a norma, a rima, o metro.

Calhava-me ter outras companhias.
Talvez frequentar mais livrarias
e ter noção dos crimes que cometo.

Enfim, eu já merecia outro destaque:
autor tão consagrado na FNAC
e nem assim me livro do soneto.

quarta-feira, junho 17, 2009

[A contar o tempo]

Não dobres as páginas 
dos livros
no princípio 
dos romances. Não escrevas  
as promessas 
nas folhas das árvores 
do inverno. 
Não fiques a contar o tempo que passa entre uma nuvem
e outra – 
entre uma luz
e outra 
dos astros que acendem no céu
os seus demorados 
nomes. 

segunda-feira, junho 15, 2009

Convite


Terça-feira, 16 de Junho, 18h30. Em Lisboa. Na FNAC Chiado.

domingo, junho 14, 2009

[Objectos de cort/ ar]

Ele dizia eu às vezes parece
me que trago nos pulsos 
uma hélice ou uma navalha
de gelo. Objectos de cort
ar. Uma lâmina. A água fresca
dos púcaros. A toalha fi
na de linho. E depois
o movimento sucessivo das
coisas contra a ordem
do mundo e a cronologia. 

[As pedras]

As pedras que eu tirava dos bolsos 
para depois rasá-las no espelho
dos açudes. A ver na tarde 
a quase aleatória repercussão
da sombra. O silêncio a descer
de novo após os incêndios
da reverberação. E outra
vez a quietude do mundo suspensa
do arremesso das pedras
guardadas nos bolsos.

sexta-feira, junho 12, 2009

Os mais jovens


No lançamento do livro, no passado dia seis. Os mais jovens.

[Fotografia: João Pinto]

quinta-feira, junho 11, 2009

[Se a não tivesse]

Chegar ao coração das coisas
tocando-as: a pedra da varanda
e a nuvem das metáforas dos tanques;
a cerâmica dos jarros
de vinho; a página dos livros
das águas de aviação; o tampo da mesa
da cozinha se
a não tivesse levado
o tempo.

domingo, junho 07, 2009

[Avô Francisco]

O que mais lembro dele? O modo
delicado como espremia os favos? Ou 
esse gesto de censura
de subir os colarinhos
simultaneamente a dizer «as
correntes de ar são piores
que facas»? Não esquecerei nunca
o sabor exacto do mel das colmeias de Ribas
como não esquecerei nunca
o ranger da porta que eu então lhe fechava
até não ficar uma frincha
que o incomodasse.

quinta-feira, junho 04, 2009

{Elíptica}

Um dia descobrimos 
que também nos pertencem (eles 
e todos os outros) os planetas refractários
às promessas. Não 
nos livramos disso: dessas órbitas difusas
ou excêntricas; dessa característica
falta de luz própria que nem a nós mesmos 
chega a iluminar por dentro.
Talvez seja tarde. Talvez
seja apenas o tempo 
de desenharmos uma nova elíptica
geoestacionária 
no afastado lugar indefeso
do coração.

quarta-feira, junho 03, 2009

[A água]

O vedor
sentiu que a vara
apontava ao céu:
a nuvem
em vez 
das nascentes.

terça-feira, junho 02, 2009

[Pub]

O «Prazer e o Tédio», além de disponível na Feira do Livro do Porto, começa a chegar às livrarias. À Pátio de Letras, em Faro, por exemplo.

Jogar em Casa


No próximo sábado. Às 18.00 h. Em Vila Nova de Cacela.