quase luz ainda
a água
das nascentes
domingo, julho 30, 2006
Atenção! Novidade! Masoquismo! Um cronista de Lisboa insiste em passar férias no Algarve e fala mal do sítio que escolhe para passar as férias!
Eis o retrato, em forma de pergunta, que Clara Ferreira Alves faz do Algarve (suplemento «única», Expresso - link não disponível): «Como é possível estender a toalha numa areia preta, carregada de detritos, que nenhum autarca desses do Sul decidiu tornar habitável?».
A gente já nem fica de pé atrás: este é o discurso dos cronistas que são obrigados a escrever semanalmente e, em chegando o Verão, por falta de assunto, invariavelmente, contam a experiência dum restaurante cheio de cronistas onde os empregados não dão para as encomendas e a anchova escalada passou do ponto na grelha. A gente já compra os jornais, em fins de Julho, à espera deste queixumezinho saloio disfarçado de elitismo caprichoso. E já nem liga.
Mas, enfim, não pode deixar de preocupar-se: que praias anda a Clara Ferreira Alves a escolher no Algarve? Areia preta e carregada de detritos? Ó Clara, desculpe o atrevimento: mas quem é o seu conselheiro de férias? Vossemecê não andará equivocada com a geografia? Ou faz questão de chafurdar, escolhendo, não se compreendendo por que razões objectivas, a não ser por amor à literatura e ao efeito da frase, uma putativa praia remota onde as areias são pretas e carregadas de detritos? Aqui ao lado de onde agora se escreve, a escassas centenas de metros, uns autarcas desses do Sul garantem diariamente a limpeza das praias, pelo fim da tarde, não obstante as dificudades de remoção dos detritos que os cronistas aí espalham com desvelo. Essas, já se vê, vossemecê não conhece...
De resto, claro, Clara, estamos de acordo: nada a fazer quando um milhão e meio de gentinha decide acampar no Algarve durante o Agosto. Por mim – no problem: as probabilidades estatísticas de eu e a Clara nos encontrarmos no Algarve, durante as próximas semanas, são escassas: nós, de costume, saímos daqui quando vocês nos demandam; e só regressamos quando vocês, depois de por aqui deambularem e falando mal, regressam a Lisboa e às redacções.
A gente já nem fica de pé atrás: este é o discurso dos cronistas que são obrigados a escrever semanalmente e, em chegando o Verão, por falta de assunto, invariavelmente, contam a experiência dum restaurante cheio de cronistas onde os empregados não dão para as encomendas e a anchova escalada passou do ponto na grelha. A gente já compra os jornais, em fins de Julho, à espera deste queixumezinho saloio disfarçado de elitismo caprichoso. E já nem liga.
Mas, enfim, não pode deixar de preocupar-se: que praias anda a Clara Ferreira Alves a escolher no Algarve? Areia preta e carregada de detritos? Ó Clara, desculpe o atrevimento: mas quem é o seu conselheiro de férias? Vossemecê não andará equivocada com a geografia? Ou faz questão de chafurdar, escolhendo, não se compreendendo por que razões objectivas, a não ser por amor à literatura e ao efeito da frase, uma putativa praia remota onde as areias são pretas e carregadas de detritos? Aqui ao lado de onde agora se escreve, a escassas centenas de metros, uns autarcas desses do Sul garantem diariamente a limpeza das praias, pelo fim da tarde, não obstante as dificudades de remoção dos detritos que os cronistas aí espalham com desvelo. Essas, já se vê, vossemecê não conhece...
De resto, claro, Clara, estamos de acordo: nada a fazer quando um milhão e meio de gentinha decide acampar no Algarve durante o Agosto. Por mim – no problem: as probabilidades estatísticas de eu e a Clara nos encontrarmos no Algarve, durante as próximas semanas, são escassas: nós, de costume, saímos daqui quando vocês nos demandam; e só regressamos quando vocês, depois de por aqui deambularem e falando mal, regressam a Lisboa e às redacções.
quinta-feira, julho 27, 2006
As ameixas
jcb
As ameixas ficam sempre à espera da luz mais intensa do Verão: obstinadas, orgulhosas, como se não precisassem da água ou da sombra, como se pudessem amadurecer apenas de ser o Verão. E é assim que chegam às nossas mãos impacientes nos últimos dias de Julho: cúmplices do ar quase rarefeito e deste céu muito azul de trazer de longe as suas aves vagarosas.
As ameixas ficam sempre à espera da luz mais intensa do Verão: obstinadas, orgulhosas, como se não precisassem da água ou da sombra, como se pudessem amadurecer apenas de ser o Verão. E é assim que chegam às nossas mãos impacientes nos últimos dias de Julho: cúmplices do ar quase rarefeito e deste céu muito azul de trazer de longe as suas aves vagarosas.
domingo, julho 16, 2006
As noites de Julho
As noites de Julho descem
devagar os degraus das açoteias.
E uma luz fica ainda
nas tijoleiras vermelhas,
adormecida, como se a manhã
precisasse desse orgulho
remanescente para recomeçar
os seus trabalhos de água.
devagar os degraus das açoteias.
E uma luz fica ainda
nas tijoleiras vermelhas,
adormecida, como se a manhã
precisasse desse orgulho
remanescente para recomeçar
os seus trabalhos de água.
sábado, julho 15, 2006
quarta-feira, julho 12, 2006
Como nos livros
Falavam desse tempo como se a vida
não tivesse acontecido antes nem depois:
da neve a descer dos cumes, da chuva a entrar devagar
nos bosques de bétulas, das navalhas
a cortar a casca vagarosa dos lódãos, das águas
das presas, das tábuas de esquadria
arrumadas nos pátios. Como dizer de outro modo
que a vida pode ser um rosto,
uma única lágrima, uma única voz
que nenhum parágrafo devolve?
não tivesse acontecido antes nem depois:
da neve a descer dos cumes, da chuva a entrar devagar
nos bosques de bétulas, das navalhas
a cortar a casca vagarosa dos lódãos, das águas
das presas, das tábuas de esquadria
arrumadas nos pátios. Como dizer de outro modo
que a vida pode ser um rosto,
uma única lágrima, uma única voz
que nenhum parágrafo devolve?
segunda-feira, julho 10, 2006
O Verão
E no dia dezanove de Julho, à hora em que a manhã começava a nascer no oriente, os clientes do bar da praia riam-se e dançavam nus no areal em redor das tochas acesas. E era já de manhã e dançavam ainda. E nada mais importava no mundo. E quando os agentes da polícia marítima apareceram com megafones e com o ruído das vozes ampliado nos megafones, como que a procurar impor uma ordem contrária à ordem natural do Verão, uma aragem súbita ergueu-se na praia e fez-se noite de novo. E os agentes acenderam lanternas e holofotes e começaram um interrogatório exaustivo. Mas os clientes do bar da praia eram todos exactamente iguais, e tinham todos a mesma voz, e tinham todos o mesmo nome. Os agentes olhavam para os bilhetes de identidade e confirmavam por via oficial que os clientes do bar da praia tinham todos a mesma cara e o mesmo nome e a mesma idade. Foi então que se ouviu o agitar imenso de uma nuvem de corvos a aproximar-se. E quando o barulho das aves se perdeu na distância e os agentes da polícia marítima ergueram de novo a cabeça e tiraram a cara das mãos, já não havia ninguém ao balcão, e já não havia ninguém na esplanada, e já não havia ninguém nas dunas ou em redor das tochas acesas. E apenas a música se ouvia ainda misturada ao leve ruído das ondas a desfazerem-se na areia molhada.
As crónicas
jcb
É certo que o mundial, temendo-se um excesso de ruído num tempo em que todos, de Carlos do Carmo a Marcelo Rebelo de Sousa, são promovidos subitamente a sumidades da táctica da bola, não passou por aqui. Mas aqui, nos jardins da Casa, escreveram-se algumas das melhores crónicas da época. O resto foi essencialmente ruído, poeira...
É certo que o mundial, temendo-se um excesso de ruído num tempo em que todos, de Carlos do Carmo a Marcelo Rebelo de Sousa, são promovidos subitamente a sumidades da táctica da bola, não passou por aqui. Mas aqui, nos jardins da Casa, escreveram-se algumas das melhores crónicas da época. O resto foi essencialmente ruído, poeira...
terça-feira, julho 04, 2006
Um fio
Falemos do passado: porque só o futuro interessa.
Falemos do amor traído e da exaltação
quase inverosímil da luz derramada
nas tijoleiras dos pátios. Falemos dos rios e
desse Inverno antigo em que as águas ergueram
nos troncos das árvores das margens
os vagarosos anéis da idade.
Falemos do passado: porque só o futuro interessa.
Falemos da casa que ruiu. Falemos do musgo
adormecido nas encostas da umbria.
Falemos dos livros onde sublinhámos
as frases que sobre todas as coisas
nos haveriam, mais tarde, de perder.
Falemos do amor traído e da exaltação
quase inverosímil da luz derramada
nas tijoleiras dos pátios. Falemos dos rios e
desse Inverno antigo em que as águas ergueram
nos troncos das árvores das margens
os vagarosos anéis da idade.
Falemos do passado: porque só o futuro interessa.
Falemos da casa que ruiu. Falemos do musgo
adormecido nas encostas da umbria.
Falemos dos livros onde sublinhámos
as frases que sobre todas as coisas
nos haveriam, mais tarde, de perder.
domingo, julho 02, 2006
Os Navegantes
Alguém que conhecesse o segredo
das águas: o modo como sobem
ou descem nas margens declivosas,
o modo como circulam, intemporais,
nos seus resguardados túmulos
subterrâneos, o modo como se transformam
em nuvem ou gelo, em fogo ou iluminada
sombra na tijoleira dos pátios: para que
depois as soubéssemos recolher,
intactas, na madeira de que
reverteram, ainda frágeis, ainda
efémeras, quase voláteis,
quase tão inúteis de só moverem os astros.
das águas: o modo como sobem
ou descem nas margens declivosas,
o modo como circulam, intemporais,
nos seus resguardados túmulos
subterrâneos, o modo como se transformam
em nuvem ou gelo, em fogo ou iluminada
sombra na tijoleira dos pátios: para que
depois as soubéssemos recolher,
intactas, na madeira de que
reverteram, ainda frágeis, ainda
efémeras, quase voláteis,
quase tão inúteis de só moverem os astros.
Teresa Patrício. «Os Navegantes, Memórias». Em exposição na Casa Azul, Cacela Velha, até 31 de Julho.
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