terça-feira, setembro 28, 2010

[a natureza dos milagres]

o meu maior amigo
tinha o problema dos muitos interesses
por isso nenhuma das coisas o
levava nunca a elevados graus de motivação.
desinteressava-se das coisas em que se metia
por lhe interessarem todas as outras
em que não estava.
gostava tanto de tudo
que ao longo dos anos
foi desistindo de tudo.
eu
pelo contrário

tive apenas a única obsessão dos petroleiros.
desde a infância que coleccionava
estampas de navios de longo curso
e fotografias das chaminés de combustão.
não posso lamentar-me.
o meu trabalho e a minha vida
têm sido sempre
os petroleiros

o convés e a casa das máquinas
a vigia e o leme
o mediterrâneo e o atlântico
o porto de sines e a costa da nigéria
e a liberdade imensa de um horizonte sem palavras
nem a intromissão das legendas.
no mês passado

consegui que o meu maior amigo
me acompanhasse numa das viagens
ao golfo pérsico.
claro que se desinteressou ao segundo dia
(eu já imaginava)
a falar dos seus novos interesses
e da nostalgia das sucessivas desistências

e adormeceu todas as noites
quase morto de tédio
e já muito arrependido de ter embarcado
no meu tão imperecível petroleiro

em cuja sala de convívio
neste preciso momento
escrevo um poema sobre os sonhos da infância
e a natureza dos milagres.