há muito tempo que tenho uma história para contar
e tenho vergonha de contá-la por ser verdadeira
tão verdadeira como eu estar aqui
e saber que as pessoas em regra
não acreditam em histórias verdadeiras.
as pessoas em regra acreditam
na prosa das mentiras.
eu era então uma criança.
e é claro que quase todos nós tão rapidamente
começamos a aprender a deixar de ser
aquilo que somos
para passarmos a ser
aquilo que julgamos que os outros
a um espelho poliédrico
julgam que somos.
não admira por isso mesmo
que não acreditemos nas histórias das crianças
e não admira que quase sempre seja necessário
colocarmos máscaras no rosto
para regressarmos à identidade
que ao longo do tempo perdemos.
e está portanto explicada a razão
de ter uma história verdadeira para contar
e temer que ninguém acredite
na minha história verdadeira.
pois é dar-se o caso de eu em criança
apanhar a camioneta da carreira
no largo do toural das boticas
a caminho de chaves.
mas os milagres precisam de tempo
e deslocamento do fulcro onde se sustenta
o quotidiano concreto das coisas.
e talvez por isso mesmo
só na viagem de regresso
esse já entretanto pressentido mistério
começasse em rigor os trabalhos
fabulosos da revelação.
na garagem da auto viação do tâmega
onde funcionavam também os escritórios subindo-se
uma escaleira sem guarda
havia um cheiro permanente a gasóleo
e uma bruma que vinha dos filmes a preto e branco
e um ruído de fundo de motores
que só muitos anos mais tarde viria a saber
que revertia da insânia do levante.
e logo começavam os milagres
em saindo a camioneta da carreira dos largos portões
da garagem do canto do rio
com esse rumor contínuo
a acompanhar-nos a viagem toda
e a ficar nos ouvidos durante a noite
até se desvanecer enfim às primeiras horas da manhã
e ser apenas já um murmúrio ou a sua reminiscência
o que vibrava ainda nos vidros
das janelas do quarto.
mas saindo da cidade
e abrindo as curvas muito fechadas até
à tipografia gutenberg
que nesse tempo ficava do outro lado da estrada
num pequeno anfiteatro virado às águas do tâmega
eu via que os homens
de súbito
voavam.
os homens que voavam
pareciam vir do lado das casas da várzea.
voavam numa lentidão inverosímil
os braços muito abertos e as pernas a quarenta e cinco graus
como naves alienígenas
suspensas da rarefacção dos fins de tarde
dos meses de junho.
o meu pai nunca compreendia
a razão de eu querer ficar no banco corrido de trás
o mais desconfortável
e sujeito à oscilação de enjoo das molas oscilatórias
da camioneta da carreira:
mas só assim podia ainda quedar-me
de olhos colados ao imenso vidro traseiro
a ver os homens da várzea
a desaparecer na distância
voando sobre a veiga de chaves
tocando com as mãos na copa dos salgueiros
e dos amieiros
incendiados pela reverberação
das seis e meia.
eu próprio cheguei a duvidar
das imagens antigas da infância
e dessa memória que ao longo dos anos
repercutiu nos meus sonhos.
a verdade é que no passado dia vinte e três de agosto
numa segunda feira do ano de dois mil e dez
ao fim da tarde
quase quarenta anos depois do
episódio a que faço ingloriamente referência
por saber que ninguém no mundo em que vivemos
acredita em histórias verdadeiras
ia eu de carro a caminho de chaves
e vi claramente visto
com estes dois que só a terra haverá de comer
um homem e uma mulher
suspensos à luz rasa do crepúsculo
voando sobre os campos da veiga.
vinham ambos do lado das casas da várzea
e a mulher tinha um vestido de um amarelo tão intenso
que eu estou que o resto da minha vida
não será bastante
por longa que seja
para ofuscar na memória
o halo dessa tão intensa e concreta
revelação dos milagres.
[originalmente publicado aqui: http://chaves.blogs.sapo.pt/]