As campanhas contra o Algarve começavam geralmente em meados de Julho e resumiam-se à vociferação de uns cronistas contra o inferno algarvio das estradas e dos restaurantes e das bichas para a costeleta e dos lugares de estacionamento e do urbanismo e do lixo e do estado do pavimento das ruas e da chuva se chove sem aviso prévio ou do vento se levanta no ar os sacos de plástico das batatas fritas. O retrato era, e é, invariavelmente, negro: no meio de um oásis que parece coincidir com a quase totalidade do território nacional, onde o substracto cívico e o ambiente e o ordenamento se constituem como exemplos, o Algarve emerge enquanto ferida que envergonha a Pátria. Clara Ferreira Alves, por exemplo, retratou assim o Algarve, em Julho, nas páginas do Expresso: «Como é possível estender a toalha numa areia preta, carregada de detritos, que nenhum autarca desses do Sul decidiu tornar habitável?».
Há razões para afirmar que ainda vamos ter saudades do tempo em que as campanhas contra a Região eram sazonais e se resumiam a isto, a esta má-fé pré-estival de escribas pagos à lauda…
Entretanto, e não propriamente em consequência da «areia preta» a que a cronista masoquista faz referência (todos os anos a vemos em Faro, no Verão – presume-se que no intervalo de escrever crónicas lançando coriscos sobre os sítios que escolhe), o Algarve enriqueceu por efeito estatístico. As contas são feitas assim: antigamente tínhamos um peixe para o jantar; agora continuamos a ter um peixe; mas o alargamento a Leste determinou em Bruxelas que passemos a ter um peixe real mais um peixe estatístico: temos, portanto, dois peixes: ainda que ao peixe estatístico, como se depreende, não nos seja possível afivelar o dente… Mas isso bastou – o peixe estatístico, somado a um inqualificável critério de prioridades – para que ao Algarve, no próximo quadro comunitário (2007 a 2013), esteja destinado não mais que metade do montante financeiro a que teve direito entre 1999 e 2006.
O Algarve, entretanto, já assim enriquecido com um peixe estatístico e um bocadinho anestesiado com a ciência das médias e das medianas, foi assistindo, incrédulo, ao evoluir de uma lei (das Finanças Locais) que se destina supostamente a um maior equilíbrio na distribuição das receitas do Estado pelos diferentes concelhos do país. Curiosamente – mas isto há-de ser um pormenor –, o resultado é que o Algarve se «equilibra» perdendo, no seu conjunto, mais de metade do montante actual das transferências do Estado, enquanto que um conjunto alargado de concelhos, nomeadamente das regiões metropolitanas de Lisboa e do Porto, verá aumentadas as transferências em valores que rondam ou ultrapassam os 50%. Se há equilíbrio? Há: a nível nacional, no seu conjunto, há: há sempre equilíbrio se o corte de uma das parcelas tem relação, em grau idêntico, com a correspondente benesse na outra parcela. O azar – mas isto não há-de ser senão azar – é que a parcela dos cortes calhe exactamente ao Algarve… Como se, tendo um peixe estatístico que não cabe na grelha, a Região já nem precisasse de meter ao lume o peixe efectivo de que dispunha…
Assim, com estas contas de peixes e equilíbrios, o Algarve perde metade dos fundos comunitários e perde metade das transferências do Estado… O caso seria de sorrir, de brincar nas tertúlias de sexta-feira à noite, se o que estivesse em causa não fossem pessoas, desinvestimento em requalificação ambiental e paisagística, em equipamentos sociais, em infraestruturas escolares, em qualidade de vida, em competitividade territorial… Ou seja: se o caso não fosse tratar-se do mundo real e não de um filme ou de um romance sobre teorias de conspiração em que o argumento versasse sobre o Algarve como um incómodo mal resolvido pela Pátria. Nesse filme, nessa obra de ficção, até no ano em que se comemorasse em Portugal, pela primeira vez, o Dia Mundial do Turismo, a principal região turística do País ficaria de fora do retrato – e haveria muitos aplausos meio-envergonhados de mostrarem os dentes…
[Jornal do Algarve]