já nem procuras a luz dos faróis que separam as enseadas e
as escarpas íngremes
como se aceitasses o princípio de que o
futuro depende dos processos de deriva litoral
como se nada valesse a pena
como se tudo fosse o resultado da vontade dos outros
até que alguém te dirá «talvez não seja tarde»
mas já não sabes os segredos de puxar as
estrelas cadentes com fios de ráfia
mas já não sabes respirar debaixo de água nos
açudes das penínsulas
mas já não sabes tirar o pão do forno enquanto as
pedras estão incandescentes
mas já não sabes em outubro adormecer nas avenidas à
espera da primeira e única folha dilacerada do ácer
mas já não olhas os desenhos das encostas de caducifólias a
procurar estabelecer o roteiro das perguntas difíceis
preferes desistir
secaram nos jardins os caules dos gerânios
desapareceram no horizonte o anil e a púrpura da luz tão
vagarosamente a evaporar-se
as crianças correm em desequilíbrio nos muros estreitos dos loteamentos
os velhos sobem às açoteias e olham para o lado de
dentro da idade à procura de respostas
e é tarde
já nem procuras
o passado não existe