quarta-feira, abril 21, 2010

[Uma fotografia antiga do Rio Tâmega e do Bairro da Madalena]

i.
O barco está errado: o fotógrafo
(anónimo?) o terá pressentido no exacto momento
do disparo. A vela, esse belíssimo triângulo
isósceles, deveria inscrever-se no estrito
espaço escuro entre as duas casas
e separar-se dos elementos verticais do fundo
de que acaba por parecer
fazer parte: ligeiramente mais à direita.
E o seu reflexo na água, assim,
cortaria a mancha de sombra
como uma afectuosa cicatriz ténue.

ii.
Há um momento de angústia: esse em que o fotógrafo
acredita ter-se encontrado ele mesmo
com o momento único e irrepetível.
O autor deste retrato o pressentiu
por um instante: mas disparou tarde: quando
já o barco avançara. Bem certo é
que chegamos quase sempre tarde
às coisas perfeitas que nos esperam.

iii.
O jovem está errado: há uma identidade
que se perde, uma individualidade
que se esbate: a sombra vertical
de uma das árvores, reflectida no rio, não deveria
tocar a sua cabeça e misturar-se nela.

iv.
O barco e o observador são apenas um
e mesmo elemento da composição: o barco
não existe sem o jovem que o surpreende
num lento movimento à superfície
das águas; e o olhar do jovem não existe
sem a imagem de espelho devolvida
aos seus olhos pela vela muito branca, leve,
esguia, quase imaterial.

v.
O círculo e o quadrado de luz, à direita,
sob o último arco da ponte, estão
errados: rasuram o fulgor da estreita linha
iluminada do tronco da árvore em primeiro plano:
como se a não deixassem erguer-se inteira
para o céu do fim de tarde;
como se lhe impedissem a delimitação
da pressentida fronteira; como se o fogo irrompesse
por dentro da fotografia
onde mais não deveria existir
que um lume vagaroso.

vi.
Tudo o mais está certo: a ponte
que parece continuar para onde já não está
à força de aterros sucessivos
e alicerces; o volume dos edifícios num dinâmico
equilíbrio de vãos e coberturas, empenas
cegas, trapézios; e o rio,
claro, que vem de Espanha
e resiste aos erros de um retrato em que,
como quase sempre, não foi possível unir o tempo
e os fios todos
das múltiplas variáveis em jogo.


(Poema originalmente publicado aqui: http://chaves.blogs.sapo.pt)