sexta-feira, fevereiro 10, 2006

[4 poemas antigos]

Não acreditou

Não acreditou nunca nas medidas da água,
nos vasos pintados onde excessivamente cresciam
algumas das plantas desse tempo. Mas o exíguo
território da casa lhe bastava, dos degraus
da entrada à pedra da varanda fechada se
movia repetindo gestos, e palavras,
e imagens. A música mudou, os tempos
e as vontades agora disfarçados pela
regeneradora sombra das crianças foram
ocupando espaços mais amplos, paredes mais
altas. Nunca partiu. Sem acreditar
nas medidas de água dos vasos, nas plantas de
interior que por esse tempo excessivamente
cresciam à luz artificial das lâmpadas.



Não ter amigos

Não ter amigos nem água por onde regressar
às manhãs claras da infância. O engodo
do excesso o procurava para o logro
da partilha, para o movimento inútil
duma casa com degraus e corredores. Não
deixar sinais de passagem, nem sob os dedos
na madeira o nome que divide os
dias em anos de sombra. Talvez
a paz difícil (mas é já tanto) do
sono. As mulheres jovens e cansadas
adormecem assim, lendo romances na pedra
junto à falésia da gravura da parede.



Não perguntas

Não perguntas nem respondes. Tinham saído
todos, levavam para sempre os livros
e os discos como quem partilha o espólio dum
naufrágio, garrafas vazias, cartas de
jogar. Um deles olhou ainda por instantes o que
ficava no espelho de sombra da parede. É
tão difícil a renúncia, o logro, o exílio.
Lá fora a noite convidava ao delírio, não custa
inventar motivos que justifiquem a traição.



Nas casas da encosta

Nas casas da encosta findavam pelo fim da tarde
os trabalhos domésticos. O calor poisava
nos armários e nas mesas como se tudo
fosse arder por dentro à visita inesperada
e pendular dum corpo que regressa
para impor no estio a ordem da paixão.
Recordas o rumor no degrau de cima
da escaleira do relógio velho, o esvoaçar
das moscas contra os vidros, um grito
pretérito que descia do cume dos incêndios
a pedir a deus um copo de água
ou uma lâmina nos pulsos. Como tudo
passa e tudo esquece à aproximação da primeira
sombra do freixo na margem do rio, recordas
ainda. Um freixo ou um corpo que retomem
a respiração dos primeiros dias do mundo,
os trabalhos domésticos contra o calor
da tarde, as mãos das mulheres a mexer
indiferentes na água fresca dos púcaros.