domingo, maio 31, 2009
{Oh se não te conhecêssemos}
mas tens que continuar a atender o telemóvel
a dizer onde deixaste a chave da Casa
quando vier o granizo e a tempestade.
Desculpa
mas não te safas com esta facilidade
ninguém acredita que não estás à nossa espera
quando começar a chover.
Desculpa
mas não é possível acender o fogo da lareira
se não fores tu a trazer os guiços de lenha
se não fores tu a estender na mesa do escano
as cinquenta e duas cartas da árvore dos segredos.
Desculpa
mas estamos todos à tua espera
com a certeza de que apenas resolveste chegar mais tarde
porque decidiste trocar-nos as voltas
oh se não te conhecêssemos.
sábado, maio 30, 2009
[Em segredo]
das águas do fiord
a sudoeste
de honningsvag. A cabana
é minúscula
e a mobília quase se reduz à cama e
a uma
mesa de madeira de bétula
junto à lareira.
Mas temos o vinho
e temos as cartas:
essas que uma vez marcámos
em segredo
para que ambos perdêssemos
quando jogássemos
um
contra o outro.
in «Os Sete Epígonos de Tebas» (inédito)
quarta-feira, maio 27, 2009
O começo
«Há um momento que pertence ao olhar. Corria o frio mês de Março de mil oitocentos e sessenta e cinco e Américo Fontes olhou a encosta e imaginou a casa a desenhar-se nas paredes alinhadas, nos prumos de sustentação dos alpendres, no pátio onde as folhas horizontais de uma tília futura estendiam já a sua sombra.»
«O Prazer e o Tédio». Edição Oficina do Livro.
quinta-feira, maio 21, 2009
[Os países mudam]
a oficina
e a parede onde se penduravam as ferramentas
com os desenhos
delas.
As carroçarias dos automóveis
riscavam a sombra
na manhã de outubro
de se altear o brilho dos metais
por ali fora
com sucessivas camadas
de tinta.
E tudo se transformava
em permanência
por via do desembaraço: alavancas motrizes,
bielas, parafusos,
embraiagens. E circulavam
sempre nas ruas
muito azuis ou vermelhos
com a música alta
e sorrisos de quantos
lá cabiam dentro
nos bancos corridos
dos estados unidos
dos anos
cinquenta. E
nas alamedas
a seiva das árvores procurava ascender
das raízes
aos ramos altos
por entre o rumor e o fumo
da gasolina
incombustível
dos motores
modificados: assim
o socialismo
ancorava com dificuldade à sua base
os pressupostos
dele.
E as fotografias
dos turistas
repetiam apenas o brilho dos cromados
e as camadas de tinta
dos automóveis
que corriam na cidade
como se a revolução tivesse ainda
num entroncamento
com semáforos acesos
uma questão
digamos assim
mal
resolvida
consigo mesma.
terça-feira, maio 19, 2009
Está quase
segunda-feira, maio 18, 2009
[A Noite]
fina
de plasma
separa o lume da lareira
e o oxigénio. O tempo
e a luz trémula
do querosene. As peças
de cerâmica
e a heráldica.
E as mulheres
sustêm a respiração
para que as crianças do inverno
adormeçam
nos retratos
das salas. E a noite do inverno
fica suspensa
sobre os telhados
e as ruas.
E ninguém diz uma palavra.
E ninguém se move em redor do lume
com medo
da repercussão
dos desastres.
in «Os Sete Epígonos de Tebas» (inédito)
Uma leitura
Ruy Ventura, a propósito de Os Sete Epígonos de Tebas: «Nos seus poemas contidos, meditativos, este livro tem contudo raros vestígios da narrativa mitológica dos “sete epígonos de Tebas” – da história dos sete chefes militares que vingaram a derrota dos seus ascendentes conquistando, em vez deles, a urbe fundada pelo introdutor mítico do alfabeto fenício no território grego. É, antes, uma reflexão alargada sobre a memória, sobre a passagem do tempo (…)»
Aqui.
domingo, maio 17, 2009
Escola pública, escola democrática
segunda-feira, maio 11, 2009
[Um poema sobre a crise económica]
de viagem do zeppelin Hindenburgo que
sobrevoava os céus de Lisboa em
1936. Tenho-o diante de mim enquanto
escrevo um poema sobre a crise
económica e sei que um dia o haverei
de vender a bom preço.
domingo, maio 10, 2009
[Só existe]
depois se bifurca na multiplicidade
de veredas que levam ao único
caminho do mundo.
sábado, maio 09, 2009
[Os sonhos]
a de que o sonho é imprescindível
a termos os pés bem assentes na terra.
Quem não acredita que as pás
dos moinhos são ameaçadores gigantes
acabará como Sancho a adormecer
com dificuldade a pensar nos decretos
de governação das ilhas fabulosas.
quinta-feira, maio 07, 2009
[A rarefacção]
seis meses
nas plataformas
de petróleo. Dizia
que os helicópteros
pareciam suspensos
de uma nuvem
de poeira
de água
volátil. E que
nesse tempo
nem as mulheres
lhe lembravam.
Do livro (inédito) «Os Sete Epígonos de Tebas»
intervalo
sábado, maio 02, 2009
[Os noticiários da manhã]
fabulosa: dois poetas construíam um edifício.
Não era um edifício abstracto. Não
era o utópico edifício do coração das obras.
Era um edifício verdadeiro: alicerces,
paredes, telhado; pedra, tijolos,
cimento. Em vez do exercício habitual
de poetas procurando destruir os edifícios
todos da cidade, um a um, disparando canhões
de pólen, estes dois poetas erguiam
um edifício verdadeiro, concreto,
tangível. E isto é de uma humanidade
comovente. E isto chego a pensar
que quase merecia um poema.
[É verdade que sinto]
pelos poetas. Por todos os poetas.
Esses seres ignóbeis que escrevem
a palavra «estrela» e uma estrela, de súbito,
nos queima os dedos distraídos. Uma
vez esteve aqui um poeta. Escreveu
a palavra «labareda». E ainda hoje as manchas
do fogo sujam as paredes e os
mosaicos vidrados da sala de reuniões
do Conselho de Administração.
[Uma leitura pública num café de Punta Umbría]
sinto que as pessoas me olham
como se esperassem uma revelação.
Como se estivessem à espera dos milagres.
E hoje, finalmente, quase cedo à
tentação de explicar os mecanismos
dos milagres. Por exemplo:
eu posso fazer gelo escrevendo apenas
a palavra «gelo». E isso mesmo
faria neste momento
se não temesse que os mais distraídos
usassem o gelos nos copos
altos do gin tónico.