4.
Leonardo fala da paisagem como uma construção humana:
Textos e imagens de José Carlos Barros. Perguntas: blogcacela@gmail.com
3.
Calcorreámos a envolvência como se preparássemos uma minuciosa cartografia em que a emoção e o território se confundissem. Subimos e descemos os caminhos de pé posto onde cresceram, por mor da ausência repetida, a urze e o tojo; caminhámos nas margens do rio a ouvir o rumor antigo das águas correntes e a pisar as ervas e os fentos que se alargavam nas plataformas sombrias de pequeno declive; atravessámos, a medo, vagarosamente, a ponte suspensa na garganta cortada na pedra, a direito, ligando assim as duas encostas por tirantes metálicos e pranchas de castanho partidas ou apodrecidas; guardámos folhas de bétulas em cadernos de apontamentos; lamentámos as manchas contínuas de pinheiro bravo; e regressámos atravessando o rio mais uma vez, nas poldras, um pé e depois o outro sobre as pedras erguidas no gralheiro como esculturas mágicas a devolver-nos a memória do tempo.
2.
As minhas indicações eram simples (o costume; o lugar-comum): respeitar o objecto a reconstruir; guardar, tanto quanto possível, as memórias antigas. Leonardo é um arquitecto jovem. O lugar fascinou-o, sobressaltou-o. E propôs passarmos ali um fim-de-semana. Era em Junho. Dormimos ao relento, em sacos-cama, sob os ramos imensos da tília do pátio. E só então senti verdadeiramente que a casa começava a pertencer-me e eu a pertencer-lhe.
10.
Adormeces devagar
lá fora os automóveis correm disparados nas avenidas da cidade
no sonho sobes a escada íngreme do coreto e tens uma folha à tua frente
será o mês de novembro será o verão
raramente escolhemos os papéis que representamos
dizes a tua deixa e estranhas o silêncio de súbito quebrado como um vidro numa tarde de domingo
«talvez na minha vida nunca tivesse perdido nada que tivesse tido»
e sentes que só então regressas a ti mesma
será o mês de novembro será o verão
na verdade só então adormeces.
9.
Há uma casa e o mais certo é que seja em novembro
que é quando o inverno irrompe nos pátios sem ser ainda o seu tempo
e no entanto há um caminho a correr na orla do rio e todas as águas nascem desse rio
e nesse rio desaguam todas as águas
e a memória devolve-te as grinaldas e o alecrim nas ruas e os mapas da infância e o largo onde haveria de ser verão se ainda lá estivesses
porque novembro podava com minúcia as roseiras bravas e no entanto as mulheres das fotografias exerciam ainda o ofício de misturar em tabuleiros de vime as flores sucessivas enquanto os homens viravam os fenos à lâmina e as cantigas de trabalho eram copiadas dos registos de michel giacometti
há uma casa e por instantes imaginaste o verão
o mais certo é que seja em novembro
que é quando o inverno irrompe nos pátios sem ser ainda o seu tempo.
5.
Os muros intransponíveis é um modo de dizer
confesso que nunca fui muito dada à inventariação dos escombros
que nunca foi o meu exercício preferido este de retirar as camadas sucessivas de sedimento
o entulho acumulado do lado de dentro das palavras e das fotografias dos aniversários
o de reconstruir a peça de cerâmica de renda
o de puxar por um fio e trazer de longe a memória dos fustes densos das árvores inclinadas nas margens antes do inverno
confesso
nunca a melancolia me comoveu da distância que vai do sonho à devolução das suas estilhaçadas imagens
eu olhava a chuva oblíqua dos poemas e via o retrato iluminado das searas pelo verão imenso
eu entrava nas represas e só ouvia o rumor das águas desenhando nas pedras o círculo imperfeito da passagem do tempo
confesso
dos paraísos às vezes é preciso fugir a sete pés
prefiro o veneno da transfiguração
prefiro ao júbilo o prodígio da ignorância ou o reconhecimento da precariedade do prazer
confesso que nunca fui muito dada à inventariação dos escombros
eu quero tudo e o seu contrário
às vezes apetecia-me dizer
«eu sou a deusa das contradições».
9.
Bem vê. Já sabe. João Pequeno veio do Brasil fugindo, se assim se pode dizer, de si mesmo. Veio quando a sua vida parecia enovelar-se irremediavelmente e correr sem rumo, e quando as imagens antigas lhe foram devolvidas no alarme da sua irreparável ausência. João Pequeno, então, não sabia que Catarina Ribeiro da Conceição ficara grávida; à espera de um filho seu. Talvez nunca o tivesse chegado a saber. A verdade é que Catarina regressou a Portugal, a Lamego, à casa junto ao Seminário e ao Paço Episcopal, e teve uma criança a que deram o nome de Margarida. Margarida é a minha mãe. Poupo-lhe pormenores. O avô de Aline e o meu avô não são senão uma e a mesma pessoa. O destino acabou por juntar-me a Aline numa noite de copos e por descobrir-nos como primas irmãs. Compreende agora porque lhe disse que falar de Aline era falar de mim?
8.
Veja; veja como são as coisas; os caminhos que levam. A história é nebulosa, como lhe disse. Mas sabe-se que Luísa teve o seu filho no Porto; em casa de Fernanda, dona Fernanda, e do professor com ar de maricas que tinha chegado à Vila na camioneta da carreira numa manhã de Outubro de mil novecentos e dezanove. Pouco mais se sabe de Luísa. Fernanda tinha setenta e cinco anos e morreu em Julho desse ano em que Mário Pequeno chegou e abriu a porta da Pensão e estendeu colchas na varanda. E talvez tivesse ficado como guardiã única dos segredos e dos mistérios desses obscuros anos.
7.
Numa sexta-feira, no dia catorze de Agosto de mil novecentos e quarenta e nove, um jovem chegou à Vila, subiu os três degraus da escaleira da entrada da Pensão Americana, abriu a porta e entrou. E, no dia seguinte, às seis e meia da tarde, quando a procissão seguia a caminho do Alto da Ribeira, estendeu as colchas coloridas no parapeito da varanda e ficou assim, belo, iluminado por dentro, quase como uma aparição, a olhar os anjinhos e os andores. O filho de Luísa chamava-se Mário e o seu rosto era quase uma cópia do rosto da mãe.
6.
É uma história nebulosa. Ninguém sabe como Luísa saiu da Vila. Ninguém a viu sair. Ninguém a viu a descer a escaleira da Pensão, ninguém a viu a esperar a camioneta da carreira no largo do Toural, ninguém a viu na rua Vinte e Oito de Maio, ninguém a viu a atravessar a Senhora da Livração. Ninguém a viu. Desapareceu. Simplesmente. Nunca mais ninguém a viu depois do almoço desse sábado à tarde de Julho. Contaram-se histórias, claro. Que a luz duma vela acesa se desenhava, em algumas noites, contra a janela do seu quarto da Pensão Americana; que uma mulher atravessava as poldras da Presa das Tílias em havendo lua, e que só podia ser ela. O certo é que Luísa desapareceu como se nunca tivesse existido ou como se o seu nome tivesse sido riscado das folhas das árvores do Noro e do jardim dos Correios.
5.
Mas, depois do almoço, Luísa fechou a porta, correu as cortinas das janelas do piso térreo, cerrou as portadas, puxou o trinco das cancelas de ferro do pátio. E desapareceu. Para sempre. E a casa ficou fechada; e ninguém entrou por essa porta, galgando os três degraus da escaleira, atravessando a sala da entrada da Pensão Americana, olhando a gravura do Rapto de Europa pendurada na parede do fundo, subindo depois até ao andar dos quartos, abrindo uma janela, chegando-se à varanda que dava para o Largo do Toural, até à sexta-feira do dia dezanove de Agosto de mil novecentos e quarenta e nove.
4.
Fernando Lalice, Agenor e Arnaldo Adão, o Lindinho, almoçaram na sala da entrada da Pensão Americana. Era um sábado de Julho, de finais de Julho de mil novecentos e trinta e um. O calor poisava na abóbada do vale como uma nuvem espessa: agarrada à pele das crianças, agarrada às folhas das árvores, misturada no ar incandescente. Ninguém sabe ao certo o que se passou nesse dia e nos dias e nos meses que se sucederam a esse dia em que Lalice comemorava a empreitada de remodelação do mobiliário do colégio do Eiró. Imagino o Lindinho a lamentar para si mesmo que Luísa já não lhe pedisse ajuda na preparação do clafouti de maçã reineta; que Agenor, sabendo embora da gravidez de Luísa, a olhasse ainda como se um rio desaguasse no seu corpo; e imagino que Lalice, muito dado à farinheira frita e à truta de escabeche, fosse pedindo «vinho, minha querida, até lhe chegarmos com um dedo». Era, como lhe digo, uma tarde quente de finais de Julho. O povo, claro, falava da gravidez de Luísa; dessa «vergonha»; e ligava o sexo (e a desonra, e a infâmia) ao desaparecimento de João Pequeno e Adriano numa noite de chuva e vento sobre os telhados e os vidoeiros e os pinheiros bravos. Porque o sexo decorria da ideia de prazer; e o prazer representava o pecado supremo de sentir-se o corpo por dentro dele. O certo é que Luísa estava feliz; ria; falava em voz alta. Lalice é assim que a recorda durante o almoço, trazendo as sobremesas, o café, o medronho de Fiães: «Cheguei a pensar que o filho da puta do João Pequeno nunca tinha saído do seu quarto da Pensão e que Luísa se ria de nós a esconder um segredo.»