domingo, julho 27, 2008

6.

Não sei se lhe devia dizer isto (diz Maria Teresa). Você nasceu e viveu sempre na cidade de que o vinho do Douro tomou o nome. Mas eu não posso falar-lhe do Douro sem ligar as coisas. Você ficou fascinado com a Casa a Jusante da Ponte de Arame; com a memória das pedras arrumadas do alicerce à cumeeira; com as árvores dispersas em redor do pátio; com o rumor das águas do rio descendo os gralheiros; com as bétulas da vertente e com o bosque de carvalhos que o avanço dos pinhais não afastou de todo; com a sedução evocadora dos caminhos de terra que levam à Aldeia e correm junto à margem e depois sobem à colina antes de descer de novo ao terraço breve da encosta onde meia dúzia de casas e um tanque se erguem em redor do largo e da igreja. Você, e queira desculpar-me, traz agarrado à pele o sonho dos pequenos burgueses do nosso tempo. Não há mal nenhum em que seja assim. As coisas são o que são. Mas os pequenos burgueses do nosso tempo não desejam mais que reunir bens materiais, enriquecer, para depois se darem ao luxo de viver como pobres: andando a pé por caminhos de terra ou de bicicleta pelo meio dos montes; sem rede de telemóvel; com painéis solares ou outro qualquer sistema ecológico que venha nos manuais da Quercus e substitua a energia convencional; comendo sopas de feijão ou açordas de coentros ou grelhando peças da vazia (certificação D.O.C.) em carvão vegetal; num lugar afastado da auto-estrada onde os automóveis não cheguem sem foder as jantes. Você quer comprar a Casa, em Terras do Barroso, a Jusante da Ponte de Arame. Conheceu Aline. Fez-lhe uma proposta irrecusável. E não compreendeu a sua (dela) estranheza; o seu sobressalto. Mas há bens que não vêm nos inventários; isso você demorará a compreender; ou não compreenderá nunca. É muito fácil para si descrever a chegada de Catarina a São Paulo falando da pelerine desajustada ou da boina com pormenores de flores e pétalas onde poisavam aves em ramos finos; e do modo como o lapardeiro do João Pequeno a enganou e a deixou prenha recitando-lhe uns versos e gabando-lhe a beleza do olhar. Mas que sabe você da história que precede e explica a sua vida? É sempre tudo tão complexo. Habituámo-nos a olhar as coisas a preto e branco: é assim ou não é. E no entanto há sempre uma história por detrás que baralha e confunde e só depois, finalmente, aclara se tivermos a disponibilidade de ver. Francisco, o avô de Catarina, comprou terras no Douro Superior onde a filoxera quase não atacava; meteu-se no negócio da exportação; ergueu uma casa com porta carral e até se deu ao luxo de produzir um azeite fino com medalhas em Bordéus; enriqueceu. Mas Francisco Ribeiro da Conceição tinha consciência do que está por detrás do vinho engarrafado. Sabia que era preciso, primeiro, rasgar o calhau dos vinhedos com picaretas e alavancas; e depois abrir as valas e firmar os calços; e depois, nessa espécie de tabuleiros de nível, alinhar os geios; e depois, muito mais tarde, desmadeirar e cavar em redor das videiras para guardar a água do Inverno e não deixar os fertilizantes serem arrastados na encosta; e, mais tarde ainda, podar; e depois cavar de novo para que a luz entre por igual nos torrões assim revolvidos da camada estreita acima da pedra; e depois arrimar a vide e redrar e enxofrar e sulfatar; e, então, avançar para a vindima; e escolher e eleger e separar a uva; e pisar com os pés, em lagares de pedra, os cachos ainda iluminados pelo Verão; e depurar e trasfegar; e depois, finalmente, apurar o bouquet e envelhecer e só depois, mais tarde, muito depois, olhar o vinho e bebê-lo de um copo alto. Não sei se isto acrescenta ou atrasa ao que me pediu. Porque você me pediu apenas que lhe falasse da Brasileira de Lamego. Sei lá; peço desculpa. O certo é que as palavras são como as cerejas, e uma coisa leva sempre a outra.