3.
Leonor nasceu na casa a jusante da Ponte de Arame no dia seis de Junho de mil oitocentos e setenta. A casa tinha sido erguida alguns anos antes; oito anos mais tarde ficaria entregue ao abandono; até que foi arranjada para guardar um segredo e para que Leonor desse um filho à luz e ao mundo. A memória permanece dentro das casas durante algum tempo; num baixo-relevo dos caibros esculpido a navalha, nas pedras das lareiras, nos fornos de lenha, nos alpendres, nas prensas dos lagares, nos móveis velhos, nos beirados derruídos, num traço indelével no pavimento, nas manchas da parede de cal onde se penduraram retratos dos dias felizes de Verão. Mas depois vem a ruína e a tempestade; a chuva e o gelo, a luz, o vento, a sombra. Na casa a jusante da Ponte de Arame, quando a família de Américo Fontes a deixou e rumou à Vila à procura de um novo destino, a hera e a vinha-virgem subiram as empenas e as colunas de pedra dos pátios, os conchelos invadiram os muros, as giestas e os silvedos acompanharam as bermas dos caminhos e viam-se à distância, os dentes-de-leão misturaram-se à dedaleira, às moitas de parietária, à avoadinha, às urtigas, à serradela, ao trevo, aos malmequeres. A casa ficou assim, vazia, abandonada até esse dia de meados de Maio de mil novecentos e sessenta e sete em que o pai de Aline chegou e cortou as ervas, arroteou o pequeno vale confinante, despedregou a encosta, semeou centeio e um milho de regadio, fez uma horta, reconstruiu paredes, construiu anexos. Mas isso foi muito tempo depois. No dia seis de Junho de mil oitocentos e noventa e um, nessa manhã em que Leonor morreu com um sorriso enigmático nos lábios, sem que se lhe ouvisse um lamento, o soalho estava encerado e havia cortinas nas janelas e lírios numa jarra alta; nessa mesma manhã em que João, recém-nascido, foi levado aos cuidados de Lúcia e Manuel Pequeno, à casa do largo do meio da Aldeia contígua ao tanque das águas de nascente onde se enchiam os cântaros.