sexta-feira, agosto 22, 2008

11.

De Catarina, portanto, se um dia decidir dar a público esta história, conte o pouco que se sabe de ciência certa e deixe que sejam os leitores, com base nas suas experiências e vivências próprias, a preencher os intervalos do que foi público ou se depreende. Muito já se disse. Acrescente apenas que uma criada de branco avental vigiava todos os seus movimentos de criança; e que, se adormecesse à lareira, a recolheria, a ergueria nos seus braços redondos e a deitaria no quarto «da menina», garantindo que a botija de água aqueceu os lençóis no ponto e que a bambinela corrida não deixará a luz da manhã perturbar o seu sono. Explique como a ausência do pai, cortada por breves regressos à Casa do Corgo, e logo depois (tinha Catarina dez anos) ao palacete de Lamego, necessariamente a deixou com esse sentimento de orfandade que a levou a mais refugiar-se e guardar-se em si mesma. Conte que não frequentou os bailes das romarias e o quanto desejou, em determinadas alturas, sair de casa durante a noite e misturar-se no alvoroço da Senhora dos Remédios e ter um homem que a apertasse contra si e sentisse as suas mãos nas suas e o seu corpo agarrado ao seu enquanto as girândolas iluminavam as encostas em redor. Conte, se quiser, o episódio do primo seminarista e da tragédia de Catarina não sentir o desejo e se ver grávida e fazer um desmancho no Porto, refugiando-se da boca do povo e do escândalo em casa da tia Custódia na Avenida dos Aliados. E passe daí para uma mulher de trinta anos a quem a família propõe um casamento no Brasil com o filho mais velho dos Piscicelli. E conte como João Pequeno, na ausência breve de Paolo Piscicelli, à mor de negócios, a levou a passear pelas ruas do Ipiranga e a ver uma fita no Cine Theatro Brazil; e de como a convidou para uma limonada em sua casa e de como ela, de súbito recordada do sobressalto dessa noite de Lamego, muitos anos antes, em que um moço desajeitado a olhou como se o mundo estivesse a começar, tocou um corpo pela primeira vez em toda a sua vida como se esse corpo estivesse dentro de si desde sempre à sua espera. O resto é consigo. Já se sabe que Catarina ficou grávida de João Pequeno. Relate como entender o escândalo e a tragédia desses dias; o casamento que não chegou a consumar-se; o seu regresso a Lamego; o nascimento do filho (neto, pela banda do pai, de Leonor e do engenheiro das florestas, bisneto de Américo Fontes) na Casa do Corgo, num segredo que se foi aos poucos transformando em alarido e vozear; a morte de Catarina, dois anos depois, deitando-se de braços abertos, num voo de anjo trágico, do varandim do primeiro andar para o lajedo de granito do pátio. Já sabe que esta criança haverá de ser levada à Aldeia logo após a morte da mãe. Mas o resto é consigo. Você (diz Maria Teresa) é que saberá se é já o tempo de se dizer que o filho dos amores clandestinos de João Pequeno e Catarina Ribeiro da Conceição, em Janeiro de mil novecentos e trinta e um, viria a ser nem mais nem menos que o avô de Aline.